©sguimas
 

 

 

 

espirais

 

 

1

seres que existimos

entre a mistura de fluidos

e a consistência do barro

o acaso da união

e a crença no milagre

verbo latejante

sangue que escorre da cruz

e imprime o manto

que nos cobre de mistério

 

 

2

odisseia encarnada

no desnudo jardim

tudo o que nasce

um dia partirá

rumo a lugares inexplorados

coisas vividas antes dos olhos

contemplações da caverna

agora convertida em história

 

 

3

por dentro das pálpebras

revela-se a escritura

do branco silêncio

palavras inauditas

que desvelam o mundo

 

 

4

corpo que afunda

e se mistura na terra

converte-se em fruto

e pó

 

 

 

 

 

 

primitivo

 

 

vida que não separa

o real do imaginário

jamais relativiza o tempo

 

renova-se no vigor da palavra

declamada no intervalo da queda

plêiade do amor que modifica

 

assombro do inevitável

para enunciar o desejo

na primeira mordida da maçã

 

angústia fundadora

que nos define

e encerra

 

*

 

desmentir o tempo

na contagem das horas

para se desvestir do éden

 

(urgência necessária

de conectar o inesperado)

 

o tratado rouba a paisagem

dos olhos que arrastam a dor

 

e são reflexos de si mesmos

 

 

 

 

 

 

unhas sujas

 

 

faltava-lhe no rosto disforme

o sorriso plástico

de quem não tinha nome.

 

olhos espetados no vazio —

traços de um corpo perdido

personagem falkneriano

 

com língua solta a dançar

sobre a sintaxe do texto.

murmúrio diante da vala

 

terra aberta debaixo das unhas

como se plantasse crisântemos

e fosse alérgico ao toque.

 

lembrança permanente

da homenagem em bronze

sobre o granito soletrável

 

visão noir da realidade.

passeio temporal

num plano contínuo:

 

sua herança urbana —

quina indiferente à cidade

que se apressa ao porvir.

 

 

 

 

 

 

à flor da vista

 

 

I

Seus olhos estáticos

dependurados no tempo.

Transe paralelo à procura

de um ponto infinito.

Ver pela primeira vez

a escritura da natureza

no hiato do invisível.

A contemplação das coisas

que realmente existem.

 

Fagulha do desconhecido.

Dúvida imensa que nada espelha.

Mas que se reconhece constante

como a sombra da manhã

atravessando a porta.

 

 

II

Trama poética que enreda o mundo

na leitura sempre imprecisa.

 

Seus olhos locupletam

acima do mistério

o poema impenetrável.

 

Escultura versada

pelo sopro ancestral do barro.

Do cheiro de terra molhada.

Da beleza revelada pela paisagem

que habita o escuro.

 

 

 

 

 

 

a infinitude é apenas uma ideia

 

 

A procura inconformada

de um instante perdido

ou do nada que restou

numa gaveta vazia.

 

O futuro despreocupa-se.

Apenas o presente importa

dia após dia passando devagar

enquanto o mundo se despe lá fora.

 

Meus passos vestiram sua distância.

Há uma voz que não deixa mudo

o tom surtado, quase exasperante,

da partícula "se".

 

Se eu virar o volante subitamente

e tomar novo rumo?

Se pular desse edifício

em seu colo metafórico?

 

Se eu apenas tomasse um porre

ou dourasse a pílula?

 

Se ela deixasse de ser

minha musa venal

e eu findasse o poema

sem verso-remate?

 

Se afônicas reticências

fossem a síntese do fim?

 

 

 

 

 

 

a palavra além da pedra

 

 

O tecido desbotado da noite

cobre a tarde enrubescida.

 

Num crescente bolero

o vento inventa assonâncias

 

reparte o vidro da janela

pelo espasmo da pedra.

 

Fratura do tempo

sem limites existenciais.

 

Corpos de superfície

nos entremundos em êxtase.

 

Antagonia do rosto espelhado

numa imagem futura

 

como epigrama de um sonho

povoado de fantasmas.

 

(Enquanto da tarde escorre

lágrimas entre escombros

 

a palavra dessa hora indesejada

carrega silêncio de pétalas

 

e a dor de pés iludidos

pisando minúsculas pedras.)

 

 

 

 

 

 

circadiano

 

 

Renascer com a nova manhã

depois da noite se perder

entre sístoles, tropeços e diástoles

 

Ver a nova manhã

e os lepidópteros seduzidos pelas flores

as formigas em seu positivismo diletante

as pitangas maduras que resistiram à queda

 

Ouvir a nova manhã

e o apelo estridente das maritacas sem pouso

Beethoven anunciando o caminhão de gás

o crepitar do solo no trimestre da seca

 

Escrever a nova manhã

e o horóscopo do meu destino diário

os erros de sintaxe desse pálido drama

nas frases que jamais forjaram poema

 

 

 

 

 

 

falta uma letra apenas para desvendar teu nome

 

 

nenhuma resposta, apenas a imagem

da cordilheira coberta de neve

sobre o fundo azul impressionista,

e a citação empírica do trajeto

 

da escalada: um branco típico

na cabeça do Aconcágua,

com destinos solitários

e íntegra paisagem de pedras

 

e capins. postal sem remetente,

tuas palavras denunciaram

o medo de se perder esquecida

na planície abandonada

 

ou entre os fantasmas alpinistas

de almas condenadas ao frio.

eu aqui continuo intraduzível

e perpasso a encruzilhada

 

como quem salta estações

à vertente mágica das flores.

devo confessar, teu perfume

mistura-se ao infindável silêncio,

 

desde a noite de ontem e o dia

ressurgido feito rascunho

de poema, verso a verso, a colar

no chão o vaso em pedaços.

 

 

 

 

 

 

geografia de um rosto

 

 

No primeiro gesto da escrita

o movimento da caneta

dava sensação de poesia.

 

Roçavam palavras

em suas mãos hesitantes.

Dedos sem ornamentos.

 

Uma língua atropelada

(desfiada pela caligrafia da voz)

esvaía-se em segredo.

 

A trama do texto

nas inversões sintáticas —

teias formais emaranhadas.

 

Disfarce de poucos verbos

para tentar explicar a vida

sem reflexo no espelho.

 

 

 

 

 

 

impressões de início

 

 

1      barro moldado

em carne viva

 

2      malícia do gesto

 

3      destreza que inspira

o corpo em luta

 

4      delírio medido

pela trêmula matéria

ao impulso da mão

 

5      dor em cadência oposta

aos talhes do cinzel

 

6      geométrico conflito

que se revela origem

 

7      equilíbrio mágico

do palpitar efêmero

 

8      desde a imagem de ontem

ao primeiro grito

 

9      sopro que lhe soa

pó do princípio

e fim

 

 

 

 

 

 

inventário

 

 

pulsos realçam o gesto

das mãos cruzadas

 

(coisas que duram

menos a melodia cantada)

 

nota dos que ficaram

com o sol da manhã.

 

deste amanhecer

dentro da noite passada

 

cobertos de nós mesmos —

íntimo registro

 

aceso na periferia

dos sonhos —

 

quadro que pintasse

a soma das imagens

 

do tempo que duramos.

corpos que alongam abraço:

 

toque quase mágico

a nos salvar do mundo.

 

 

 

 

 

 

o mundo dentro de nós

 

 

I

voo coletivo de aves

no fim de mais um dia:

 

repetição do cenário

no peso da existência

entre distância e limite.

 

lampejos de busca –

olhos entortam imagens

atravessados pela noite.

 

bússola da permanência

no silêncio do hábito:

confronto da espera?

 

 

II

na retina do mundo

as lições do tempo —

 

cuidado místico

com lugares preenchidos

pela ausência.

 

o tempo demora a passar

ao contrário das ruínas

que o circundam.

 

ao modo da tradição niilista

a procura do distante

estranho e diverso

 

para fortalecer

interesse pela vida.

 

 

III

detalhes da paisagem

na tessitura do enredo

 

embalado pela insônia.

um filme analógico

somente agora revelado:

 

aquilo que se concretizou

na memória (e que seria

bem melhor esquecer.)

 

 

 

 

 

 

rumores coloquiais

 

 

1

o mundo navega

numa geografia de ruídos

 

linha de rotas

roteiro de sons

excedem a prosódia

 

o prelúdio de vogais

na boca imutável

de um xamã

 

silêncio inexistente

além do breve espaço

sem tempo

 

dentro de uma bolha

de sabão

 

 

2

o segredo da eternidade

dentro da bolha de sabão

 

partitura de silêncio

antes do infalível arrebento

 

(modo de morte das estrelas

para o universo existir

em novo arranjo)

 

marcha tonante

de sílabas graves

na mesura do poema

 

que o mundo grita

em sua verve primal

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Sidnei Olivio é biólogo e poeta. Autor dos livros de poesia Zoopoesia (1999, em coautoria), Poesia animal (2000, em coautoria), Mutações (2002, em coautoria), Concretos & abstratos (2003), O limite da razão (2011), Uni-verso: a natureza da poesia e a poesia da natureza (2012), A transgressão da palavra (2013), As sete faces da cidade (2014), O que desmanchamos em pedaços (2017), A visão poética do abismo (2018), Poesia invertebral (2019, e-book bilíngue em coautoria), Poesia é um lugar que não se revela (2021). Tem ainda participação em 25 coletâneas, publicações em várias revistas e jornais literários e científicos (zoopoesia).

 

 
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