©sguimas
 

 

 

 

Voltou-se para um apanhado de ladrilhos azuis e brancos, que juntos formavam um montinho. Eram ladrilhos que soltavam do canto da parede no ponto que apagava seus cigarros. Acendeu mais um e começou a empilhar aqueles que estavam caídos. Os ladrilhos insistiam em escorregar para a direita conforme a construção subia, ao que Teobaldo teimava em equilibrá-los sob uma base torta. Preferia contornar o problema estrutural o ignorando, e continuava a fazer a torre subir, com contrapesos ou novas colunas que oferecessem alguma segurança. E quando enfim o último ladrilho ali em cima ficou e tudo indicava que ali continuaria, no topo da pequena torre branca e azul depositou sua aliança.

 

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Um dia a pequena Esmeralda fez um movimento na direção dele, no começo da missa, lhe entregou uma bíblia. Ele se constrangeu. Corou. Nunca tinham lhe dado algo. Segurou a bíblia no peito, e se entristeceu ao pensar que ele deveria deixá-la na saída junto à mesa próxima à porta, com tantas outras bíblias simples e iguais. Folheou e correu os olhos pelos versículos como se cada palavra ali fosse escrita para ele, mas elas eram distantes e estranhas para ele que mal sabia ler. Um bilhete caiu a seus pés. Dizia "oi". Ele sorriu sem se permitir, aquele "oi" era maior que todo o Evangelho.

 

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No dia em que sua mãe foi embora, o pequeno Teobaldo dormiu sozinho na praia. O que sentiu naquela noite, deitado na areia úmida e gelada, foi inútil. E de tudo que lhe atacava o corpo encolhido, além do frio, do que tinha a  plena lembrança era da esperança de que Sardinha reaparecesse e o encontrasse ali, salvando-o como no dia em que ele o encontrou. Esperava Sardinha e não sua mãe. No dia em que ela desapareceu, deixou uma carta sobre a mesa. Foi o pequeno Teobaldo quem encontrou. A letra tremida não parecia de sua mãe. De qualquer forma, era o nome dela assinado. A aliança estava sobre a mesa, junto à carta. Ele não conseguiu ler, ainda não conhecia sobre as letras, mas o pequeno soube que sua mãe tinha ido embora. Não podia compreender a dimensão daquilo, porque ao mesmo tempo em que, de alguma forma, sabia que ela tinha ido embora para nunca mais voltar, nunca-mais era imensurável. Em seu pequeno tamanho, esperava por uma espécie de volta. Não o voltar do ter-ido-embora, mas a fantasia do voltar para casa como se nada tivesse acontecido.

 

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Júlio comeu quase tudo em seu prato, até mesmo aquelas partes um pouco mais durinhas que em outros tempos lhe causavam um certo nojo e sua mãe tinha o cuidado de retirar para ele. Deixou apenas os ossos. Recostou-se na cadeira, esticou os braços para cima e suspirou sem fome. Olhou a coxa deixada pelo Velho quase inteira no prato, espiou pelo corredor. Sabendo que ele não voltaria, a devorou também. Olhou para os ossos. Não sabia se eram de galinha ou peixe. Olhou para seus braços, imaginou se teria um osso igual ali dentro. Riu da ideia, se levantou e levou os pratos para a pia. Recolheu as embalagens de alumínio e se sentiu privilegiado por poder beber aquele suor do frango acumulado no fundo da embalagem, virando-a como se fosse um copo. Passou os dedos na gordura e os lambeu, amassou a embalagem e jogou em um lugar da cozinha que achava ser o lixo. Caminhou pela sala, depois voltou para a cozinha. Olhou ao redor sem saber o que procurava. Abriu a geladeira. Fechou. Desamassou as embalagens e verificou se ainda tinha restado um pouco de gordura ali.

 

Suas mãos estavam lisas e escorregadias. Espreguiçou-se, sono? Se sentou na poltrona e limpou suas mãos no apoio do braço. Bocejou, sono, sono, sono, e espiou a televisão com mulheres seminuas lutando na lama. Nãnaninanão!, era hora de dormir, correu para o quarto e cobriu a cabeça com o lençol.

 

Na manhã seguinte, Júlio esperava sentado na poltrona o som do pires se quebrar na parede. "Feche os olhos e pense que está no lugar mais feliz do mundo", era o que sua mãe lhe diria. Apertou as pálpebras, bem firme, e dentro de seu próprio escuro suspendeu a aflição, libertou-se da poltrona, do pires. Livre, crescia de tamanho, virava um Gigante. Percorria as ruas do bairro do qual pouco lembrava, cumprimentava pessoas que já tinha esquecido, ajudava velhinhos que já tinham morrido. Ia à escola em poucos passos e todos comentavam "como o Júlio é grande" e, o Gigante Júlio sorria abobalhado em sua fantasia dos olhos fechados. Tudo alcançava, tudo levava e trazia, era só mandar! "Como o Júlio é... bonzinho!" Bonzinho? "Sim, bonzinho... bonzinho". O que mais poderia ser, o que mais poderia fazer um Gigante?

 

De olhos fechados, com o Gigante indo e vindo, a manhã se passou. Onde estaria o som do pires, afinal? Estava demorando mais do que o normal. O Gigante cresceu. Seu pensamento seguiu selvagem por caminhos perigosos. E se nunca mais quebrar? O Gigante continuou por si, abandonou aquela historinha boba do Júlio. Caminhou tanto que chegou à praia. Sua vida seria melhor sem o Velho, mas ali, junto ao mar, não tinha certeza, a única coisa que tinha era medo, tudo aquilo lhe parecia perigoso e o escuro não era mais agradável. Lágrimas ou maresia lhe salgaram a boca. Desejou abrir os olhos, ouvir o pires e sair dali, mas não conseguiu. Morreu? O Gigante conduzia, e a dúvida virou uma afirmação sedenta e furiosa que o fazia beliscar a própria coxa, morreu! O mar avançava e o Gigante não temia, sabia que isso iria acontecer. Mas Júlio, este sim, temia muito e chorou esfregando os olhos para tentar fazê-los abrir. Morto! Morto! E pela primeira vez se sentiu aliviado com o som do pires se quebrando.

 

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Morava ainda na praia. Tinha cinco anos. Esmeralda, quatro. Todo dia sua mãe lavava a roupa pela manhã, estendia ao sol, depois passava um pano pela casa, lavava os banheiros. As meninas almoçavam pão. Enquanto o jantar cozinhava, ela passava o pano mais uma vez, limpava os vidros. Os brinquedos não podiam sair das prateleiras, só uma ou outra boneca, sem bagunçar a casa. O dia ia nessa limpeza, dos cantos e dos detalhes. O jantar ia para a mesa e depois vestia as filhas com roupas de festa, que serviam para ficar em casa ou ir à igreja no domingo. Sempre os mesmos vestidinhos e, em Esmeralda, uma fita rosa no cabelo. Daí em diante, não podiam brincar para não se sujarem. Não podiam comer ou beber, para não bagunçar a casa. Ficavam sentadas, esperando por horas, as vezes noite adentro, o momento em que seu pai chegaria. A mãe mantinha-se à beira de um choro que nunca vinha, Esmeralda, cansada de não fazer nada, dormia sentada no sofá. Ivone aguentava, chupava balinhas escondida da mãe, guardava as embalagens dentro do sofá. O pai chegava e as brigas começavam. A mãe, enfim, chorava na cozinha, o pai vinha cambaleante para a sala, chamava-as "minhas doçuras", entregava balas para as duas, um beijo em cada uma. Iam se sentar para ouvir o rádio, não importava a hora. O caminho era feito com Esmeralda no colo e, com o pai sentado em sua poltrona, lá ficava. Ivone andava e tinha que se sentar no chão. "Por que Esmeralda é que vai no colo do papai, mamãe?" perguntou certa vez, ao que obteve como resposta, além de um sorriso azedo, "Não pergunte, Ivone, pelo amor de Deus, não pergunte, vai incomodá-lo". A menina insistiu na dúvida. "Assim você só piora as coisas, Ivone! Você piora tudo!". Um dia, encontrou a sua resposta: a fita rosa. Oh! Como era sublime! O modo como prendia a trança da irmã, fazia com que ela parecesse um lindo presente! Precisava dela, daquela fita! Ofereceu à irmã caçula todas as suas balas e conseguiu o que queria. Neste mesmo dia, trançou o cabelo, colocou a fita e esperou. A mãe, é claro, não aceitou a troca, ficou muito nervosa, tentou arrancar a fita rosa à força, tirando tufos de cabelo, mas Ivone se manteve firme, defendendo-se com suas mãozinhas e correndo pela casa. Esmeralda chorava, a mãe disse: "Você piora tudo, tudo!", mas cedeu à fita na trança bagunçada da mais velha. Esperou o pai chegar, a briga começar. Sem balinhas para pôr na boca, chupando a saliva, sorriu quando ouviu sua mãe chorar na cozinha. Logo ele viria para elas e seria ela quem se sentaria no colo dele. Esmeralda ficaria no chão. Ajeitou a fita no cabelo. Quando o pai se endereçou as duas e disse com seu hálito estranho da noite "minha doçura", entregou balas apenas para a irmã e, ainda por cima, foi escutar música com ela no quarto. Sequer a olhou. O que teria acontecido com "minhas doçuras"? Foi aí que sentiu aquele gosto ruim na boca. Uma ânsia insuportável subiu por sua goela. Tentou vomitar no banheiro, pensou em ir ao quarto reivindicar atenção, onde o pai e a irmã estavam sem dar qualquer falta dela. "Você estraga tudo, Ivone". O gosto não saia, o vômito não vinha. Viu seu reflexo na água da privada. Buscou entender, procurou em si mesma onde estava o problema; será que havia prendido as tranças de modo errado? Foi no espelho que encontrou, um aspecto rude, com olhos pertos demais um do outro, sobrancelhas excedidas, arcadas para baixo. O nariz era uma batatinha, com as cavidades voltadas para cima e a boca, bom, a boca era torta, com os lábios finos, os superiores maiores que os inferiores, provocado por um queixo que ia para dentro. Não era a fita que deixava Esmeralda linda e doce. Percebeu que aquele amargo era ela".

               

 

 


Renato Fonseca é paulistano e pai de três crianças (Dora, Tom e Teresa). Além de escritor, psicólogo e supervisor clínico, é mestre em filosofia. Trabalhou durante anos em instituições de saúde mental e psiquiátricas e possui ampla experiência no atendimento de pacientes com quadros clínicos graves, como psicose e esquizofrenia. Também trabalhou como professor universitário e supervisor de estágio. O último bom homem (paraquedas, 2022) é seu livro de estreia e reflete seu caminho de se aproximar das dores e aflições da existência humana.

 

 
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