[ilustrações ©sguimas]

 
 
 
 
 

 
 
 
 
 

a criança e o livro


 

 

Muita gente tenta evitar a bagunça que as crianças fazem quando estão irrequietas ou fora de sua zona de conforto, estranhando o ambiente. Nesses casos, sente-se o quanto de impaciência e irritação cabe num ser humano, sobretudo se a criança estiver acometida por algum tipo de dor.

Hoje, contudo, já existem muitos ambientes adaptados para crianças e neles pode ser enquadrado o cantinho da leitura, local encantatório de recreação onde os livros são mágicos e despertam nelas o sentido lúdico além da compreensão de contextos que as fazem tomar partido em situações emblemáticas ao seu desenvolvimento.

É nesses cantinhos que a algazarra da liberdade existe e está liberada. Hoje tem muitos livros barulhentos, que reproduzem mugidos, miados, guinchos e latidos, cantos de passarinhos; que sabem cacarejar, relinchar, grasnar, berrar e rugir. Existem livros onomatopaicos e poliglotas, falam inglês, francês e espanhol.  Cantam músicas variadas e contam de um a dez. Os livros infantis só faltam andar. Muitos têm rodas, alguns têm GPS, outros servem de travesseiro ou sacola. Uns têm a especificidade de, se forem apertados, também fazerem barulho de papel amassado. Se sacudidos, uns acionam sinos e chocalhos. Pais há que vivem levando sustos à noite pisando em livros.

Alguns livros são feitos para ir à boca, e outros não são para ir pra lá também, mas coçam dentes. Outros livros servem para ajudar no banho e exalam cheiros. Uns desdobram-se em páginas que se transformam em castelos ou florestas com bichos peculiares. Tem alguns com páginas que não podem ser rasgadas e uns com sirene e campainha, reluzindo luz no escuro.

Livros há que formam consciências, expõem a base da ética, provocam gargalhadas ou choros profundos, que constroem o diálogo com protagonistas mágicos ou ensinam com o silêncio a precisão de palavras. Há livros que são cores, como Flicts. Livros de Ou isto ou aquilo, como o de Cecília Meireles. Livros que tratam de racismo, como Histórias de Tia Nastácia. Tem livro, como O meu WHYK, que transformam letras em coisas do cotidiano. Há livros para se colorir. Outros de montar figurinhas, casinhas, objetos.

Ilustrações não podem faltar em livros para crianças. Elas são como um código de aprendizado visual ou semiótico. As ilustrações tornam o livro mais atraente e, na maioria dos casos, necessárias. Sem ilustrações não há como o livro competir com a visualidade tecnológica sobretudo em 3D.

Os livros não resistiriam a uma concorrência com a avalanche de publicações que tornam a criança capaz de entender o mundo do seu mundo. Os livros ensinam porque "a criança é pai do homem.", escreveu Wordsworth.

 

Três textos tocantes de crianças coligidos por Leo Buscaglia

 

Um garoto de 4 anos tinha um vizinho idoso ao lado, cuja esposa havia falecido recentemente. Ao vê-lo chorar, o menino foi para o quintal dele, e simplesmente sentou-se ao seu lado. Quando a mãe perguntou a ele o que teria dito ao velhinho, o menino respondeu: — Nada. Só o ajudei a chorar.

 

Sempre que estou decepcionado com meu lugar na vida, eu paro e penso no pequeno Jamie Scott. Jamie estava disputando um papel na peça da escola. Sua mãe me disse que tinha procurado preparar seu coração, mas ela temia que ele não fosse escolhido. No dia em que os papéis foram escolhidos, eu fui com ela para buscá-lo na escola. Jamie correu para a mãe, com os olhos brilhando de orgulho e emoção.

— Adivinha o que, mãe!

E disse aquelas palavras que continuariam a ser uma lição para mim:

— Eu fui escolhido para bater palmas e espalhar a alegria!

 

Os alunos da professora de 1ª série Debbie Moon estavam examinando uma foto de família. Uma das crianças da foto tinha os cabelos de cor bem diferente dos demais. Alguém logo sugeriu que essa criança tivesse sido adotada. Em seguida, outro aluno perguntou-lhe: — O que significa "ser adotado"? Significa, disse a menina, que você cresceu no coração de sua mãe, e não na barriga.

 


 a dificuldade da criação do hábito de leitura


 

 

Vivemos numa sociedade cada vez mais complexa, dadas as mutações sociais constantes, mormente por causa das novas tecnologias e a sede de informação que impõem a precisão da adaptabilidade, a opinião crítica, com competência para a inovação e a abertura ao novo. É verdade que em nossa sociedade as práticas leitoras são pouco incentivadas e desenvolvidas, razão de serem elas impostas ao cotidiano de crianças e jovens, o que diminuem — e muito — o prazer do aprendizado. É sabido não ser fácil tornar o hábito de leitura palatável, um ato prazeroso, isso porque a leitura não pode ser confundida com a decodificação ou com respostas emergentes e estímulos escritos pré-elaborados. Esta confusão decreta a morte do leitor, tornando-o num consumidor passivo de mensagens não significativas e irrelevantes.

Ter aceso à boa leitura é dispor de uma informação cultural que alimenta a imaginação. Segundo Maria Helena Martins, é preciso que professores e alunos façam inferências a partir do contexto ou do conhecimento que possuem no sentido de atrair benefícios óbvios e indiscutíveis à sociedade, forma de lazer e de prazer, de aquisição de conhecimento cultural, das condições de convívio social e de interação. Saber ler e escrever significa possuir as bases de uma adequação para a vida. É preciso praticar, na escola e fora dela, uma abertura reflexiva, visando com seu conteúdo a formação do cidadão integral para a vida. Há que ser a leitura responsável pela formação do pensamento crítico do que é lido.

Ensino e biblioteca não se excluem, completam-se. Assim como a mídia é um meio fundamental para a compreensão crítica do mundo, ainda hoje estamos nos perguntando: qual é hoje o papel, a função da escola, dos pais, dos leitores? Formar sujeitos sociais, leitores da realidade, cidadãos críticos e dinâmicos depende — e muito — da leitura reflexiva na construção do mundo histórico e cultural, o que só se pode garantir através de uma ação educacional voltada para o desenvolvimento da competência comunicativa do aluno, de sua capacidade de interpretar construções simbólicas, de modo tal que este se torne capaz de ler e pronunciar o mundo.

No contexto do aprendizado é relevante o papel da família: criança que vê pais lendo por certo que "imitará" o bom exemplo. Os meios de comunicação, sobretudo o computador, não deve prestar-se somente ao lazer, mas à capacidade de tornar o lúdico objeto de aprendizado.

Existem projetos de criação do hábito de leitura no Brasil, reconhece Maria Fernanda Rodrigues, além dos mantidos pelos governos também os particulares e da rede privada de ensino, como O Brasil Que Lê, do Instituto Interdisciplinar de Leitura, o da Cátedra UNESCO de leitura através da PUC-Rio, em conjunto com o Itaú Cultural e com a consultoria da JCastilho.

Os pesquisadores envolvidos na realização do hábito de leitura destacam a ausência de investimento por parte do governo federal nesses e em outros projetos, alertando para a necessidade de criar e fortalecer políticas nesta área, conforme afirma José Castilho Marques Neto professor e consultor especializado na questão do livro e da leitura.  A grande lição político-educacional da situação atual expõe que nada sairá do atual governo, mas que o Brasil não parou: o Brasil quer ler mais. A pesquisa O Brasil que Lê mapeou as iniciativas e a resiliência em prol da leitura, identificando 382 projetos de quase todos os Estados brasileiros. Gerar dados é fundamental para fomentar o estoque de conhecimento para a criação de políticas públicas e de ações para não levar o país a se desinstitucionalizar em diversas áreas, afirma Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural. A pesquisa mostrou que 74% dos projetos identificados são liderados por mulheres. Na maioria dos casos, as atividades são desenvolvidas por pessoas físicas e bibliotecas (34%). Entre os mediadores, 60,2% são professores, 53,1% são contadores de história e 42,4% fazem mediação entre eventos culturais e 31,4% são bibliotecários. Quase metade, 44,7% atuam voluntariamente e 39% utilizam recursos próprios para avançar em seus projetos. Em sua maioria os projetos são realizados em instituições, 44,2% em bibliotecas e 42,75% em escolas públicas. Chamou a atenção dos pesquisadores o fato de haver 16 projetos sobretudo online, na pandemia. O Facebook é a rede com maior popularidade com 62% das iniciativas; 57% dos projetos utilizam a plataforma. Gilda Carvalho, da UNESCO, afirma que a pesquisa concluiu quem são as pessoas e instituições que estão formando os leitores pelo país afora.

 

 

paixão


 

 

Matracas

 

Matracas são maracas sacras - gritos para dentro, agônicos - estalos secos, vozes magras - de luto, motetos monotônicos. - Avisos de que suas carcaças - arremedam a paixão do orto. - A eternidade está sem graça. - Deus é a vida. E está morto.

 

 

Olhares de manjericão e rosmaninho

 

Quando o Marlon toca o sino - Deus vira pombo - morcego - andorinha - às vezes, menino.

 

 

Verônica

 

De rosto coberto - a mulher descobre - o rosto de Cristo. - Sua voz está de luto - e sangra.

 

 

Turíbulos de incensos venais

 

A festa tem cheiro de lágrima sabeia,

o bispo pisa hóstias do jardim de areia.

Os sinos, hinos, foguetes de melopeia

ao ópio que exala in censo ao  corpo da ceia.

A ilusão é ver a Deus exposto em carne e osso,

de igual ao povo que adora e andora o totem;

é ver real além da fumaça ébria o endosso

em dor, em dorso, em dobro, em déficit, post-mortem.

Toalhas em nafta expõem dotes das sacadas,

véus de eus ao léu disfarçam culpas no andor,

a procissão pasta promessas perfumadas.

A imagem tem o asco de tapetes esmagados

por fiéis de uvas de serragem e cal em cor,

tradição não futura: e Deus fica adiado.

 

 

Em tons de vinho e bronze

 

Qual crepúsculo talha o

timbre de evoés festentes,

dobra a têmpera de sons

únicos em pradarias,

sacralidade das nódoas

e cicatrizes plangentes,

lembranças de réquiens

e de profanas euforias.

Borras de outonos secos

viçam grãos germinais,

e consagram em solo as

excelências temporãs;

torcel do tempo, função

plúmbea de mel e sais

penetram os ecos e o

mercúrio de aldebarãs.  

Brinde aos bens melhores

ou signo que anuncia a morte

sob chuva que enferruja

ligas de capelas ocas

e triunfa no estio a história

de ser a sua sorte:

quem se dobra pelos sinos,

doublê de festa e espinho?

Quando se fecha uma, sedenta

abre-se outra boca,

e celebram-se os extremos

em tons de bronze e vinho.

 

 

Calvário dos homens

 

Pelos homens-bomba na Ucrânia - por Joe Biden, Zelensky e Putin - pelos políticos de achaque - pelo Bolsonaro e seus bandidos - pelos caminhos da Nasa - pelos traficantes da Rosinha - pela corrupção de Brasília - pelos que rodam bolsinha - pela paixão que humilha - pelo sumiço de gente - pelos invasores de terra - pela cartilha de cinismo - pela ignorância das guerras - pelo recorde mundial de juros - pelos milhões de analfabetos - pela manchete cheia de furos - pelo salário dos espertos - pela usura do trabalho infantil - pelos assaltos à mão armada - pelo mundo, pelo Brasil - pelos mortos de alma lavada - pelas balas e vidas perdidas - pelo desemprego em massa - pela força da esperança vã - pelas CPIs da devassa - pelo Katrina, El Niño e tsunami - pela faixa de Gaza e Schiavo - pelo amor sem dar vexame - pela memória dos escravos - pelo buraco negro e as pandemias - pela angústia dos reféns - pelo que alimenta as crenças - pela morte da natureza - rogai por nós, Senhor - amém.

 


 love story: carta de cláudia que soren não recebeu


 

 

Dói. E a dor além de me deixar sem nada, me torna ousada por pensar que o que me faz doer deveria, nesse momento, ainda que de solidão e sangria, estar feliz à distância. E dói muito porque com a dor vem a coragem de confessar que é onde parou o tempo que deixou de ser. Dizer que mesmo o sonho azedou o imaginário, fez opacas as imagens que antes tornavam a vida possível, ainda que difícil, ainda que besta e momentânea.

Dói porque me admito em palavras, eu que fui só gestos, olhares que me confessavam refém dos seus olhos, silêncio a prolongar o prazer do seu corpo, manto da vida, com a certeza invisível de o amor ser as mãos que pensam lugares com a inspiração de Deus quando criou o mundo.

Dói por me arrancar de mim mesma, me tirar do sério e me fazer repetir o meu fracasso amoroso, o meu orgulho de longos nãos, a minha pétrea indiferença desmanchada em lágrimas que se transformam em trilhas sôfregas nas veredas do coração.

Dói porque doer me faz cafona. E me faz ser e sentir o que se desfez em desamor. Dói porque só agora é que compreendo Shakespeare dizendo que "nossas dúvidas são traidoras e nos fazem perder o que, com frequência, poderíamos ganhar, por simples medo de arriscar".

Dói porque a sua ausência me passa sustos. Me deixa decomposta, fugida do mundo. E porque a alma assume a vingança de não comer, pois, disse-o Pitágoras, "até o mel mais doce azeda num recipiente sujo". E minha alma está suja de sofrimento. Suja de cinzas que o incêndio da paixão queimou sobre céu candente.

Sua ausência dói em mim porque me torna louca. A sua ausência me fez — e faz — acreditar estupidamente no amor, porque ele é a força que move os que não têm coragem de desistir de si mesmos. De antecipar o que o amor não foi capaz de terminar. Sofrer por amor é confessar-se a Deus e negá-Lo. Modo covarde de destruir o Exemplo a fim de a consciência não sucumbir por remorsos. Porque é a Deus que peço para me matar.

Porque o amor faz a falta de sentido mais sentido do que a falta. Porque não se aprende a sofrer. Ele ensina a crescer da dor, mas não ensina a deixar de sofrer. Ele é o espinho da rosa, mas a rosa morre, e o espinho torna-se cicatriz. E a experiência que ela conta dói na memória cada vez que se dá sinal para o amor entrar.

Dói porque não se justifica amar com palavras. Se a dor faz a alma agigantar-se, tornei-me anã passional. Com palavras de D. H. Lawrence: "O amor é uma forma de conversação em que as palavras agem em vez de serem faladas". A dor me apequena e obscurece a razão, desampara o que se supunha sólido, expõe o não-ser a não ser nada. Eis o perigo. O receio até de perdoar. O medo de o amor ter no espelho da procura do outro o reflexo do que se encontrou antes, mudou de cara e sorriu maliciosamente o mesmo enredo, o mesmo filme, a mesma distância que o colocou entre mim e o abismo. Dói porque você ainda faz sentido. E porque eu não sei lidar com a falta de sentido.

 

 

suspiro seco: imprescindível

 

 

Suspiro seco é um romance muito bom, de fácil leitura, com uma trama fiel a uma época (anos 70/80) em que os detalhes da vida marcavam personagens que se entrelaçavam no cotidiano e nas consequências da ausência da convivência.

O livro narra tanto o arroubo das paixões — por pessoas, por livros, por situações — como os interstícios e veleidades que alimentam o texto com recalques e ousadias. Trata-se de uma publicação imprescindível de um autor imprescindível de livro para livro, seja Violeta trindade ou Outono atordoado.

Edgard Pereira Reis sabe lidar com a palavra contextualmente, sendo além disso, exímio autor de descrições bem urdidas, seja para enriquecer cenários interioranos como situações urbanas, de ex-seminaristas a catrumanos, todos marcados por um perfil realista. Seus personagens vão de pessoas simplórias a estudantes de Letras, de adoradores de cinema a tomadores de cachaça. As mulheres são apresentadas como mulheres, com sonhos e devaneios, e singelas mesmo em tempo perigoso do regime de exceção.

Diogo, por exemplo, tinha consciência de que "a ambiguidade lhe acompanhava os passos na cidade grande" [quando] confrontar a hipocrisia social podia ser uma atitude libertária" (52).

"Nos tempos de Suspiro seco, os personagens vivem uma compulsória iniciação: "a descoberta do sexo, o uso de drogas, o consumo de alcoolismo". As primeiras paixonites, as indecisões ante os desafios, as provações de faixas etárias — tudo tangido "pelo gosto do inusitado, da descoberta" (53).

As posturas questionavam o homossexualismo como um desafio à definição de gênero nos alvores da discussão quando o tema leva à discussão dos personagens a "limites extremos" (56) e o autor assume: "A adolescência, por natureza, é uma época problemática, ainda mais para quem a experimentou em ambiente de internato, sujeito a um processo diferenciado de formação" (62).

É quando todo ser pensante depara-se consigo mesmo "como se as relações fossem fixas, imutáveis, calcadas em paradigmas rigorosos". Alírio, Inácio, Diogo, Macedo, Acácia, Raquel, Graça, Diana, Fátima, justificam o menu de personagens que tornam o livro rico em vidas. Encontros e desencontros, dadas as circunstâncias e o contexto, "dissipadas as emoções, reciclados os interesses", os personagens estão cientes — depois de muita experiência vivida —  de que "viver é ajustar-se ao lugar adequado, procurar não complicar as coisas" (169). "Tudo é uma questão de se conectar ao espaço (...), ajustar as tralhas no próprio lugar" (140).

O "suspiro seco" é "o cotidiano aparentemente raso dos afetos" (147), quando as palavras têm mais do que o "poder de evocar, mais do que isso: inventar". Porque existe o "aspecto subterrâneo, a necessidade de fundar sólidos alicerces" (146).

 

 

setembro, 2022

 

 

 

CORRESPONDÊNCIA PARA ESTA SEÇÃO

Av. Américo Leite, 130 – Centro

35540-000 – Oliveira/MG

 
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