©sguimas
 

 

 

 

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Abrupto

laço interrompido

anseio de comunicar

suspensão da pena

caneta sem tinta

queria ver de longe

ousou desejar de perto

o coração aos pulos

um par de olhos azuis

atropelamento no corredor

vergonha da palavra

orgulho da caligrafia

e antes de arder o tapa

negou tudo, três vezes

A rejeição é uma carta

de amor nas mãos

da pessoa errada.

 

 

 

 

 

 

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Meus pés perguntam

porque não fomos

quando a intensidade

do desejo tingiu o

céu azul da espera

Frente ao precipício

o corpo oscilou

pra frente e pra trás

quase perdi o equilíbrio

pra frente e pra trás

A vida inteira parada

no alto do edifício

com os braços abertos

e os dedos dos pés

agarrados ao parapeito.

 

 

 

 

 

 

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Desaguei

corri, corri

não estava lá

Escovei os dentes

com a escova

de engraxar sapatos

Rebentei (abri)

todas as gavetas

Procurei nos cadernos

artigos da infância

uma página arrancada

Vovô viu a uva

A babá é boa

Teu retrato 3x4

Bilhetes de amiga

Carta de mãe

O celofane pink

daquele sonho-de-valsa

embrulhado em desculpas

difíceis de engolir

Um bilhete de

correio-elegante e eu,

deselegante, fugi da festa

o mais rápido que pude

Perdi o ar

de tesão e susto

Sinto (senti)

viscoso, inesquecível

o gosto do teu olho

em minha boca.

 

 

 

 

 

 

Instruções de Voo

 

 

Romper a casca

Renascer à própria

Imagem e semelhança

Regurgitar o leite materno

Rejeitar qualquer nutrição

Abandonar a ideia

do amor e da cabana

Desacreditar o amor

Destruir a bússola

Gozar é permitido

entre almofadas

então: cuidado,

faça tudo escondido

Atravessar um país

jamais retornar

ao ponto de partida

Lembrar: vinte anos

quase uma vida

Deixar em cima

do piano a aliança e

um copo de veneno.

 

 

 

 

 

 

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Amanhece meu corpo

esse dia cinza

Primavera, dizem

não se veem flores

escura e úmida

a marca da mordida

sob lençóis ainda mornos

só mais cinco minutinhos,

dizem

o sol não nasceu ainda

Subverter o tempo

se hoje, fosse ontem

aquela viagem

seria ainda

Contar as horas

pelo que valem:

quantos suspiros cabem

em tua boca

na hora da pequena morte.

 

 

 

 

 

 

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Esse poema é sobre mim

e sobre você

É sobre você sobre mim

eu, sobre você

Concertina se esgueira

pelos pés da cama

sobe e desce

vai e vem

Abre os olhos e vê

a sutileza da avenca

crescendo ramos

em direção à luz.

Lembra do filme francês

Brigitte Bardot 

sobre o cavalo, nua

sobe e desce

vai e vem

Esse poema é sobre elegância

é sobre Brigitte Bardot

sobre o cavalo

Abre os olhos e vê

fantasias se tornam memórias

e mais fantasias

Concertina. Vai e vem

Esse poema é sobre fantasias

É sobre Brigitte Bardot,

Sobre o cavalo, nua

É sobre memórias e fantasias

É sobre você sobre mim

Eu, sobre você, nua

Abre os olhos e vê.






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Azul do olho azul

que sempre a-traiu

Parece com o avô, não

Parece com a tia-avó, não

Parece com ninguém

Parece tão séria

tão inteligente

tão reservada

parece uma farsa.

É claro que te dá medo

É claro como o dia que

escurece como a noite

É claro que não sabia

como acender o cigarro

com lábios tão finos

e esse nariz em pé

Aprendeu a ler sozinha

Parece que não aprendeu nada

Parece que tem escamas

Parece um rosto de pernas

Parece que não vai longe

É claro que ouve música

É claro que não queria

É claro que sente fome

Sente fome e é claro

que não come.


 

 

 

 

 

 

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Porque sobre nós

passam todas as luas

E porque continuo

a te mandar poemas

que você não entende

e gosta

porque você não precisa

entender tudo

Para isso servem as luas

e para isso

servem as pernas

e a lua quase cheia

sobre nós

há subentendidos explícitos

essa lua quase cheia

as minhas coxas entre

as tuas pernas

essa tua boca

na minha boca

quase cheia

que de tudo é capaz.

 

 

[Do livro Isso também é realidade. Jandaíra, 2022]

 

 

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Um passo

Maior que a perna

Um passo

Em falso

Pensou que

Dava pé

Frente ao buraco,

O joelho tremeu

Sabia que não

Dava pé, mas

Era um convite

Irrecusável

Não tinha como

Mais uma vez, só

Mais uma vez e

Volto pra casa

Figurinha repetida

Não completa álbum

Sim, sabia que não

Dava pé

Um passo

Maior que a perna

Pra quê tanto barulho?

Foi só um

Quase beijo

Não! Três,

Quase beijos

E naquele dia

Choveu

 

 

 

 

 

 

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Avisar que

acabou o jogo

Devia ser

A primeira regra

do amor.

Não importa se

grande ou pequeno.

Uma nota de

cortesia, um

exemplo de fair play.

Há sempre os sinais,

você pode dizer,

quando a bola

não vem.

Hoje penso em

Sam Bartram

guardando aquele gol,

em meio ao nevoeiro,

sem saber que

A partida

já havia sido

suspensa.

85 anos de história

nos separam

e perdemos,

Eu e ele,

a hora

de sair de cena.

 

 

[Poemas inéditos]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Patricia Widmer é psicóloga clínica junguiana, com doutorado pela USP e professora universitária. Participou de oficinas de escrita na Casa das Rosas em 2018 e dos cursos de Escrita Curativa e a Poética da Serpente, com a poeta e escritora Geruza Zelnys. Devora poesia desde a adolescência. Acredita na simplicidade do cotidiano e em abismos profundos. Escreve agora, para transbordar. Publicou Isso também é realidade (poesia, Jandaíra, 2022).

 

 
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