©frank meitzke
 
 
 
 

 
 
 
 

Passeava desde o começo da noite por Paris, deslumbrado com a cidade. Estaquei sobre a calçada alta, numa esquina, e pus-me a observar do outro lado da rua, entre cortinas e vidros emoldurados por paredes de madeira, o movimento de um bar de música latina a todo o vapor. Na rua deserta do Le Marais, um bairro de casario antigo, de madrugada, sentia o calor daquela cantoria. Estava frio e uma chuvinha começava a cair. Jamais havia pisado na Europa antes. Aí, soou o grito: "Guarabyra!".

Pensei que fosse sonho. Quem iria me conhecer ali? Só poderia ser um brasileiro. Apresentou-se. Chamava-se Paulo Lajão, era baterista e residia havia muitos anos na França. Comentou que estava indo para a casa de um conhecido, professor de guitarra na Universidade de Paris, e indagou-me se não queria ir com ele. Aceitei o convite no mesmo instante.

Desembarcara à tarde, saído de uma turnê maluca pelos Estados Unidos. Faria um show em Paris na noite seguinte e, cruzando o Atlântico novamente, realizaria mais uma apresentação em Nova York no outro dia. Dispunha de pouco tempo para percorrer a cidade, uma aspiração de anos que teria de ser vivida em apenas vinte e quatro horas. Tinha de conhecer o que fosse possível, embora estivesse cansadíssimo. Visitar um professor de música e saber como levava a vida naquele país era uma oportunidade enviada pelos céus.

A chuva caía mais forte. A noite ficava cada vez mais úmida. Chegamos a um pequeno prédio de três andares. No Brasil tudo ali seria peça de museu. Meu novo amigo deu-me passagem para que entrasse primeiro. Quando me deparei com a velha escadaria de madeira, piso desgastado por séculos de uso, perguntei-me se não a teria visto antes em algum filme. Detive-me por um momento contemplando sua beleza histórica antes de começar a subir.

Na antiquíssima e diminuta moradia, no último andar, abarrotada de instrumentos musicais e de amplificadores que se amontoavam, ouvimos um disco de Leny Andrade. O professor escutava atento e satisfeito. Lajão tinha ido ali especialmente para apresentar Leny ao francês. Terminada a audição, o dono da casa ofereceu-nos café. Desculpou-se por não ser café brasileiro, o de sua predileção. Perguntei-lhe se não gostaria de servir-nos um café que eu trouxera do Brasil. Arregalou os olhos indicando que sim. Propus-me a ir buscá-lo no hotel, ali perto. Argumentaram que a chuva iria me fazer mal. Insisti para que me aguardassem e parti.

Meia hora depois, encharcado e tiritando de frio, estava de volta à calçada do prédio, assobiando, como combináramos, para que soubessem que havia voltado. Lajão recebeu-me à porta e pude novamente curtir a escada sob meus pés. Entrei no apartamento e depositei nas mãos do professor dois quilos de pó do estupendo Café Dona Branca. O cheiro espalhou-se pela pequena sala. Enquanto preparava o café, entusiasmado, o anfitrião respondia às muitas perguntas que eu lhe fazia sobre a França, vertidas para sua língua por Lajão.

No dia seguinte acordei mal. Ainda chovia. Tossira muito durante o sono. Mesmo assim, saí de novo. Entrei num bistrô e pedi omelete. Estava ótimo o prato. Porém, antes de pedi-lo, tinha colocado em prática a estratégia que me haviam sugerido na véspera para garantir um bom atendimento. Logo que o garçom — ríspido, como avisaram — aproximou-se para tomar nota de minha escolha, mostrei-lhe um pacote de café e perguntei se conhecia aquilo. Acrescentei, pausadamente, um "brésilien", e, ato contínuo, dei-lhe de presente. Deu certo: saboreei a melhor omelete de toda a minha vida. Paguei e saí, outra vez no frio e na chuva. Precisava aproveitar.

À noite acometeu-me a febre. Fiz um show horrível, completamente sem voz. Meu parceiro de palco, Sá, vendo que eu não cantava mais nada, tentou explicar ao público num francês bem razoável o que se passava comigo. Mas engasgou no nome da enfermidade. Pediu socorro à banda, inutilmente. Arriscou solicitar ajuda da plateia: "Como se chama aquela doença que deixa a pessoa sem poder falar, assim...", e tossiu. "Comment s'appelle?". A plateia respondeu em coro: "Grippe!". Foi o melhor da noite.

Na manhã seguinte, acordei em cima da hora, tendo de correr para não perder o avião, com o motorista desrespeitando tudo o que podia. No banco de trás do carro pensava como fora louca minha passagem por Paris. Mas achava que tinha valido a pena, apesar da doença e da sensação de que ficara faltando algo muito importante. Foi quando vi aquilo. Num relance, entre os edifícios, a imagem surgiu e logo desapareceu. Surgiu de novo mais adiante, emergindo dentre as construções mais altas. E, finalmente, focalizei com estes olhos que a terra ainda há de comer aquilo que me faltara ver de Paris. Sem trocadilho, foi o ponto culminante de minha visita. Por curtíssimos segundos, brindou-me e despediu-se de mim como que dizendo um "até breve" a visão da pontinha de uma deslumbrante Torre Eiffel. Voilà, Paris. Até um dia!


 

 

 

 

setembro, 2022

 

 

 

 

 

Nota da editora: essa crônica foi publicada no livro Teatro dos Esquecidos, de Guttemberg Guarabyra (Londrina/PR: Thoth, 2020, 242 págs.). Clique aqui para a versão em papel. Clique aqui para a versão em e-book.

 

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