Naquele
dia de 2007, acordei e notei que havia um recado à
espera na secretária eletrônica. Era um amigo avisando que minha
vitória com Margarida no Festival Internacional da
Canção completava 40 anos. Tomei um susto. Quarenta anos. O tempo
passa. Havia
quatro décadas, eu, aos dezenove anos, tinha despertado certa manhã e
ficara
ouvindo rádio em meu quarto, no legendário Solar da Fossa, no Rio,
morada de
dez entre dez artistas da época, do MPB-4 a Tim Maia. De Maria Gladys a
Gal
Costa, de Caetano Veloso ao ator Antônio Pedro, de Guilherme Araújo a
Paulo
Coelho. E, ainda, Zé Rodrix e toda a turma que formaria, bem mais
tarde, o
conjunto Boca Livre e que participaria também do trio Sá, Rodrix &
Guarabyra, além dos vários iniciantes dos quais não lembro os nomes,
mas que
podem ser revisitados no livro Solar da Fossa, de Toninho Vaz.
Fiquei
ouvindo rádio. Jogados no chão, três dos grandes jornais do Rio
estampavam
minha foto na primeira página. A cidade, eletrizada, preparava-se para
assistir
à grande final em que eu despontava como franco favorito, concorrendo
com
Milton Nascimento, Chico Buarque, Vinicius, Pixinguinha, Edu Lobo e
outros
monstros sagrados. Aliás, Milton está fora dessa relação de
celebridades, pois,
na verdade, estreava juntamente comigo, cotado, ele também, entre os
favoritos.
Minha
impressão era de que aquilo tudo não estava acontecendo comigo. Eu só
havia me
inscrito no festival devido à insistência dos amigos de minha turma de
bar, que
condicionaram o empréstimo para a compra de uma passagem de volta para
o sertão
— de onde nunca deveria ter saído, segundo minhas próprias palavras,
repetidas
à exaustão naqueles dias — à inscrição de minhas canções no torneio.
Fiz o
registro com prazer. Feliz, ganhei a passagem e embarquei para a longa
viagem de
volta. Ao chegar, prometi a mim mesmo que jamais me aventuraria
novamente pelo
Rio de Janeiro, comendo o pão que o diabo amassou, sem ter tido chance
de
emplacar. Mas duas das três canções inscritas foram classificadas, e a
notícia
espalhou-se pelo Brasil, chegando até mesmo a Bom Jesus da Lapa, onde
me
escondia. A badalação foi tão grande, que até meu pai, pastor batista,
que
antes havia vibrado com minha desistência da vida artística, começou a
sugerir
que eu deveria voltar e concorrer. Acabei voltando.
E,
assim, depois de ter enfrentado a primeira eliminatória, num
Maracanãzinho
lotado por 40 mil pessoas, e de ter me tornado conhecido da noite para
o dia,
lá estava eu, olhando para o teto e fazendo o que mais apreciava:
ouvindo
rádio. Tudo parecia tranquilo; porém, na verdade, eu tinha um
problemão. Havia
amanhecido completamente rouco. Lembrava como os calouros se portavam
no
histórico Programa Ary Barroso, na
Rádio Nacional, quando estavam roucos: "Pedindo desculpas por
encontrar-me
afônico, interpretarei de autoria de...". Quem sabe a solução não fosse
me
apresentar diante dessas 40 mil pessoas — mais os milhares de
telespectadores e
ouvintes das emissoras de rádio Brasil afora — dando a mesmíssima
desculpa? Só
não foi assim porque, à tarde, compareci à consulta marcada com Pedro
Bloch, o
dramaturgo também fonoaudiólogo competente e abnegado, que me livrou
milagrosamente da rouquidão.
Mas
tive que ficar no consultório até quase a hora do início do festival.
Quando
fui liberado do tratamento e pude regressar ao quarto no Solar, mal
tive tempo
de tomar um rápido banho, vestir o smoking,
colocar a gravata borboleta — completando o traje obrigatório — e
partir para o
tudo ou nada da final. Desesperado com o atraso, procurava por um táxi.
Quando
vi um deles parando um quarteirão abaixo de onde eu estava, disparei
para lá e
o invadi, gritando: "Para o Maracanãzinho, urgente, por favor!". O
motorista, português, olhou-me de cima a baixo e disse: "Tu és o rapaz
que
está a concorrer no festival!". Confirmei aliviado, pois, se estava
acompanhando o concurso, sabia do apuro em que me encontrava.
Graças
a Deus o motorista não se fez mesmo de rogado e saiu desabalado em
direção ao
estádio. Só que, de repente, começou a fazer um caminho estranho.
Imaginei que
deveria ser alguma manobra para escapar aos congestionamentos da hora
do rush. Mas não era nada disso, e apenas
percebi a artimanha quando entrou por uma ruazinha, em Vila Isabel, e
imediatamente estacionou diante de uma casa. Diante de sua casa! Saltou
berrando como louco para que a mulher e as filhas viessem ver quem
transportava
no táxi. Eu, àquela altura estupefato, no banco de trás, não esbocei
reação
alguma quando as três, duas filhas e a esposa, despontaram no muro e,
em
seguida, cercaram-me em busca de autógrafos.
Nem
sei como mantive o bom humor. Aliás, saquei de imediato que se tratava
de uma
aventura que, certamente, viria a recordar muitos anos depois. Como
ainda
recordo que, apesar de ter chegado em cima da hora da apresentação,
ganhei o festival
com muito alto astral e cantando com uma voz limpa, sem sinais de
rouquidão. As
fotos nos jornais do dia seguinte, algumas comigo até hoje, são prova
de que me
sentia muito bem naquela data querida cujo aniversário o recado na
secretária
eletrônica não deixou passar em branco.
Só
lamento que, devido ao descaso com que a grande mídia de hoje passou
a tratar os festivais, os jovens músicos, que bem poderiam ser
revelados por
eles, não possam mais contar uma história como esta no futuro.