©sguimas
 

 

 

 

1

 

Marte.

Ou talvez Saturno.

Ou nas proxymidades de Shangry-Lá.

(Ora de renascer, docynho.)

A pequena Vyctor abryu os olhos, bocejou e espyrrou.

Espyrrou deytada na kama, sob os lençóys, a janela aberta klareando seu rosto, bandeyrolas e bexygas por toda a parte.

Por toda a parte, no espelho da parede, no teto de prata, rá-tym-bum, seus olhos perceberam um rosto deskonhecido, mutylado. Em seguyda, aynda cheya de angústya, a pequena Vyctor rekonheceu sua próprya fysionomia e anymou-se. Olhou de lado, bocejou mays uma vez, tornou a se olhar, sentou-se na kama, afastou mays um pouko a kortina e sorryu.

Um sorryso úmydo (ela sempre akordava myjada.)

A pequena Vyctor, sonolenta, sorrya em faískas, komo se dyssesse pra sy mesma, hyp hyp hurra, felyz anyversário, pequena Vyctor, e nem ao menos era o dya do seu anyversário. Tudo ysso agora em pé, gyrando de um lado para o outro, apenas pra sentyr o própryo movymento, e o movymento do kolchão sob os kalcanhares, do ar ao redor dos olhos.

Estava tudo muyto kalmo, e a pequena Vyctor, trêmula e sem fôlego — de novo sob os lençóys —, sentya-se tryste e sombrya, porque depoys da janela, lá longe, a floresta despontava, lynda, lyndona, e o sol selvagem estava quase pra nascer.

A pequena Vyctor, então, ajoelhou-se na kama — o pyjama pegado ao korpo — e debruçou-se no parapeyto. Do alto, vyu o vale, verde e yluminado, serelepe. Vyu o céu e a floresta nascendo juntos kom o sol. Mays adyante, próxymo do horyzonte, já era dya. Um belo-belo dya, pensou, que vem se aproxymando a galope. (A pequena Vyctor mora numa kasa de bonekas, no alto de uma torre de açúkar, longe da multydão.)

De pé sobre o kolchão, myl maravylhas! Entre a floresta e a janela do quarto abrya-se um grande fosso — repyto: um grande fosso, entre um e outro, separando-os, ah, que desalento.

Ulalá! Vyrando-se um pouquynho, a pequena Vyctor vyu as árvores e as montanhas, magnífikas. A paysagem mostrava sua melhor face, belyssima, faceyra, enquanto o quarto, graças a um estranho jogo de opostos, permanecya nublado e myjado.

Flores e folhas e musgo. (No alto da torre de açúkar, a pequena Vyctor não kompreende o que seus olhos veem.) Tudo era vákuo e sólydo komo só mesmo a solydão mays profunda poderya ser.

Sonolenta, a pequena Vyctor kolocou os pés no chão. No mynuto seguynte, eles tropeçaram na kaixa cheya de brynquedos. Na kaixa que era pra estar embayxo da kama, mas estava metade eskondida, metade deskoberta. (Pyrlimpimpim!) Um formygamento, a pryncípio ymperceptível, subyu pelas suas pernas e espalhou-se pelos yntestinos, pelo estômago, provokando aly arrepyos kurtos e espaçados. No alto, nas têmporas, nas sobrancelhas, transformou-se em dolorosa dor.

A pequena Vyctor não grytou nem xyngou, nem ao menos gemeu, porque, kontra a dolorosa dor, ela havya desenvolvydo uma técnika bastante efikaz. Eu symplesmente sonho, ela pensou, sem ao menos se dar konta de que ysso era ympossível, e, ao pensar pela segunda vez, eu sonho, toda a dor komeçou a desaparecer, e logo foy komo se nunka tyvesse exystido.

Sym, é ysso. Sonho. Sonho que sonho. Mentalmente me vejo sonhar que sonho e também posso me ver sonhando. Rekordo-me já sonhando e também me vendo que sonhava. Essa era a maneyra especyal que a pequena Vyctor havya enkontrado pra lydar kom os aborrecymentos.

Dentro da kaixa de brynquedos exystia, entre outras koisas, uma minúskula kasa de bonekas, toda fechada e às eskuras. (Uma kópia exata, em myniatura, da kasa de bonekas no alto da torre de açúkar, longe da multydão.)

A pequena Vyctor trouxe-a para bem perto dos olhos, para a luz do sol, abryu as portynhas e as janelynhas, afastou as kortininhas. As pequenas bonekas, dystribuídas pelos kômodos da kasinha, ymediatamente vyram-se apanhadas por uma luz vermelha. Chão vermelho, kamas vermelhas, roupas vermelhas. Mesa vermelha, kadeiras vermelhas, lyvros vermelhos. Parecya que o mundo vermelho da pequena Vyctor havya sydo reduzydo a um pequeno palko vermelho — mágika?! —, dysplicentemente preso entre seus dedos. Myniatura entre myniaturas, a pequena Vyctor observava a desordem das mesmas koisas que exystiam ao seu redor.

Tchau, kasinha, despedyu-se em pensamento. (A pequena Vyctor sabya que um dya takaria fogo na myniatura, nas bonekas, mas não konfessava ysso nem a sy mesma.)

Dentro do quarto, seus lyvros não okupavam nenhum lugar na estante. Estavam em outro lugar. Quyetos, no chão, dyspersos pelo chão, empoeyrados.

Talvez eu devesse reuny-los, pensou, fazendo kara de quem pondera inkansavelmente os elementos de uma questão fora de questão. Suspyrou bayxinho e desystiu. De fato, não deu vazão ao problema. A fome roubou no jogo.

O kafé da manhã? Sempre problemátiko.

Dyante da geladeyra oka, a pequena Vyctor sentya-se ygual a uma estranha numa terra estranha. (Nada de novo no front.) Entre verduras e legumes ferrugynosos, pensamentos konflitantes. Também ferrugynosos. O medo, quase pavor, deformava a expressão do seu rostynho, e ysso era vysível na ymagem de uma nova dor físika que suas pupylas projetavam. Ay, ay… A dúvyda ynsubstituível de quem não sabe o que komer. Pyor que ysso. Medo, quase pavor, de que a boka aberta do eletrodoméstiko a engolysse ynteira, ossos e alma, tudo de uma só vez, deyxando apenas as meyas nos chynelos.

Vyctor, tão pequena, olhava para o alto, formygando de ynquietação.

Na parede, acyma da geladeyra, sua fada-mamãe havya pendurado um velho retrato de Le Korbusier — ou serya Karl Gustav Jung? —, e ao lado, fazendo kompanhia ao retrato, mas sobre a geladeyra, havya uma estatueta de pynguim, quebrada (na verdade, dekapitada).

A perspektiva é uma dyabinha travessa. Myrando de bayxo, a pequena Vyctor, yntrigada, apenas admyrava, reduzyda a uma posyção sublyminar. Olhando pelos seus olhos, era komo se o pynguim tyvesse korpo de ave e kabeça de arquyteto, ou de terapeuta. (Naquela époka, a pequena Vyctor não sabya que tays ydeias vyriam a ser de extrema utylidade, um dya, num sonho lúcydo.)

Ao abryr a geladeyra, a brysa que veyo de dentro em pouko tempo konfrontou-se, konfundiu-se kom a brysa que entrava pela janela. Dyante do espelho, o amanhecer era quente e avermelhado. O quarto, fryo e cynzento.

Junto kom a brysa — presa em sua kapa de gelo quase inkolor —, a pequena Vyctor akreditou dystinguir a braveza de uma voz, levante-se, maldyta Marya Makaxeira do Apokalipse, os lyrios já floresceram e o dya já vem chegando, basta de moleza, dysse a voz atroz. A pequena Vyctor ouvyu kom bastante atenção, sem sequer piskar. Porém, nana-nyna-não, responder que não era uma minhoka dorminhoka, que já estava de pé há um tempão, ysso ela não pôde, por mays que quysesse. (A pequena Vyctor não konsegue falar. Ela tem os lábyos kosturados kom fyos de náylon. Foy sua próprya mamãe quem os kosturou. Assym, a fylha jamays vyria a exagerar — grandyssima komilona —, vocês sabem, durante as refeyções.)

Na eskola, as krianças komentam anymadamente o programa das aulas, os programas de tevê, todas muyto falantes e palhaças, em geral cheyas de koisas dyvertidas para dyzer, menos a pequena Vyctor. Todas dão boas rysadas do zyguezague que a kostura faz em sua boka, algumas até pedem pra passar o dedo, e ysso entrystece muyto a insignifikante Vyctor. Durante todo o tempo, ao lado das outras krianças, ela não konsegue pronuncyar um A sequer. (Pobre Vyctor, não devya ter sydo tão gulosa.)

Olhando pela janela, para além do fundo fosso, a pequena Vyctor konseguiu dystinguir um pequeno tufo de ervas danynhas, pequeno mesmo, quase okulto na relva. Seus ramos se espalhavam ao redor, refletyndo a luz do sol de maneyra tênue e agradável, mas tymida.

A pequena Vyctor sorryu. Pobre talynho sem forças, mal konsegue sustentar mays de uma flor por vez, de manhã nasce-lhe uma florzynha que morre ao anoytecer, para dar lugar à próxyma, na manhã seguynte, foy o que ela formulou em pensamento, sem se dar konta de que estava lançando palavras ao deus-dará, sylvestres.

Então seus olhos se voltaram para as prateleyras da estante. Havya se enganado a respeyto do paradeyro dos lyvros. Na estante também havya lyvros, sym, uma grande quantydade deles. E muytos ynsetos também. Aranhas, lagartyxas, baratas, besouros — todos hermetikamente konservados em potes de mayonese. E mel. E aveya e frutas sekas ao lado das lagartyxas em konserva. E pão... A pequena Vyctor vyu a fatya de pão e assustou-se.

Pão!

PÃO!?

Estava meyo royda nas bordas, a gordurosa fatya.

A pequena Vyctor korreu até a janela, angustyada por não poder grytar, PÃO!, e debruçou-se no parapeyto.

Rebeka, a tartaruguynha de estymação da pequena Vyctor, também estava lá, em sylêncio, observando as purpurynas e lantejoulas do pôr-do-sol. Em seu kasco havya uma minúskula lagarta verde, semelhante à tartaruguynha na kor e na expressão pesarosas. Era o anymalzinho de estymação de Rebeka. As duas, quyetas — pyaninho.

Rebeka, a tartaruguynha, lya um romance repleto de palavras — provavelmente Balzak, ou Proust. Lya, mesmo sem saber ler. Para seu kompleto entendymento, não do lyvro, mas dos fatos que estavam sendo narrados ao seu redor, o desenho das palavras pretas na págyna branka era mays do que sufyciente. Provokava-lhe kócegas nos olhos, o desenho, pryncipalmente nas passagens mays pikantes, mays safadynhas. E havya farelo de pão em volta dos seus lábyos.

Pão, nos lábyos de Rebeka! Nos lábyos!? Pão gorduroso!!!

A pequena Vyctor fyngiu ygnorá-los — lábyos e farelo. Eles pagaram na mesma moeda, fazendo-se de ynvisíveis e desvendo a koitada. (O que o koração não vê o estômago não sente.)

A pequena Vyctor raramente akordava assym, pobre e insignifikante, sem saber o que pensar ou fazer. Ysso, pra dyzer a verdade, provokava em seus pensamentos uma torção muyto parecyda kom a que ela podya observar, olhando da janela do seu quarto, nas grandes nuvens sobre a floresta — cyrrus, stratus e kumulus de algodão-doce.

Após fechar a geladeyra sem pegar nada, a pequena Vyctor mays uma vez retornou pra bayxo dos lençóys. Deytada, apesar da kama não estar numa posyção muyto favorável, a vysão que ela tynha do quarto, dos objetos ao seu redor, aynda se mantynha quase intakta.

Dentro do espelho, sua ymagem era verdadeyramente magnífika. Uma fygura estranha, yrregular, kôncava em relação à parede. Entretanto, o que o espelho devolvya não era a pequena Vyctor. Aly não exystia um reflexo. Exystia, ysso sym, uma ymagem ynfinita, falsifikada. Um rosto alongado, de kabelos kaídos e pele klara, exageradamente klara, mays transparente do que a outra, a verdadeyra. Era uma realydade agradável, mas não era a pequena Vyctor.

A ymagem korrespondia ynfalivelmente, ponto por ponto, às mynúcias de sua fysionomia, do seu korpo. Entretanto, pontos falsos. Kabelos, olhos, pernas falsas.

Refletyda no espelho — entre ymaginárias bandeyrolas e bexygas —, a pequena Vyctor percebeu uma mancha arrastando-se no chão. Uma mancha opaka e mal defynida.

Rebeka se arrastava, trystonha.

Rebeka, Rebeka, sempre trystonha, sempre deskonfortável, melankólica, do que é que você tanto foge, garota, assym, dessa maneyra tão desesperada que nenhum de nós konsegue ver ou ouvyr a matemátika de sua fuga — a pequena Vyctor remoya seus pensamentos mays dystantes, em algum lugar, entre a ponta dos dedos dos pés e o últymo fyo de kabelo.

A porta da kozinha, entreaberta — a pesada mesa de refeyções okupando boa parte da kozinha —, mostrava uma fatya não muyto generosa da paysagem. Uma fatya pequena, longynqua… Porém, vysta de um ângulo bastante oryginal: do alto. (A pequena Vyctor, akostumada a observar seus ynsetos de cyma para bayxo, às vezes se esquecya de que, pra quem não está akostumado, do alto tudo se torna muyto mays esmagador, oníriko.)

Espalhada pelo chão da kozinha, Rebeka em transe, em trânsyto, kom a lagarta nas kostas — oyto centymetros da mays pura melankolia.

O quarto, yncendiado, vermelho. (Eram três horas da tarde.)

A pequena Vyctor, nesse momento também em sylêncio katatônico, vyu as árvores e as montanhas, magnífikas. Vyu o vento quente, sentyu o cheyro da folhagem, dos cyprestes que havyam akabado de florescer, das frutas, do kapim, da bosta dos anymais, sentyu, vyu tudo flutuando dyante dos seus olhos, embayxo, ao lado, em cyma da estante, da kama, sobre os lençóys. Vyu, sentyu, aynda dentro do quarto, um kamundongo adormecydo atrás dos lyvros no chão. Sentyu, vyu as manchas nas paredes, e a mobylia, afogada em chamas, parecya se deslokar, rodopyar.

Os rayos do sol entravam pela janela e yncendiavam a poeyra sobre o tapete, espalhando faískas e cyntilações pela kasa toda.

A pequena Vyctor, por sua vez, deskobriu muyta beleza, uma beleza medonha, okulta nas labaredas que queymavam em cyma da kama.

O verão provokava-lhe remyniscências agradáveys, porque, sem que pudesse resystir, essa estação a transportava, mays uma vez, para um aposento que não era o mesmo quarto, para um antygo aposento konhecido, porém muyto dyferente desse quarto da kasa de bonekas, no alto da torre de açúkar, longe da multydão.

Dyferente, muyto dyferente, e dystante no tempo e no espaço, vejam, o vento vermelho retornava dya após dya a uma velha cydade barroka — quanta nostalgya! —, retornava à époka em que a pequena Vyctor aynda morava nas entranhas do kalabouço que sua mamãe havya mandado konstruir especyalmente para ela, Vyctor — para seu deleyte masoquysta (uma espécye de sadysmo pré-eskolar).

Tudo ysso o verão trazya, às vezes atrasado, kom azya. O cheyro adstryngente do céu quase noturno, a chuva amarga sobre as pessoas sem guarda-chuva, os kartazes adocikados bebam-e-komam-e-fumem-tudo-de-bom. E dentro do kalabouço, em toda a parte, o mofo e o fedor de mofo subyndo pelas paredes, seguyndo uma trajetórya bastante regular, e depoys, já fora do kalabouço, passando das paredes à pequena janela no alto da velha torre.

Foy durante a temporada de kaça e peska (um pouko antes da pequena Vyctor fikar grávyda enquanto dormya, grávyda da únika fylha, Rebeka, tchutchuquynha kuty-kuty).

A superfycie da velha torre não era ygual à superfycie da torre de açúkar, novynha, novynha. Era uma superfycie perdyda em pensamentos, mays frya, mays karcomida. (A pequena Vyctor vyveu, durante três anos, longe da luz do sol. Vyveu akorrentada na parede mays eskura, no fundo do kalabouço, de kabeça pra bayxo, e ysso synceramente não foy nada agradável — pra não dyzer de, sa, gra, dá, vel —, porque nessa posyção, puta merda, o sangue akabava kongestionando as vyas cirkulatórias, e na mayor parte do tempo a pequena Vyctor delyrava, vozes que não eram vozes, talvez o voo de gavyões e avyões sobre a Praça Vermelha, passos vazyos no korredor sem uma alma vyva, zumbys em todas as dyreções, talvez mays além, talvez à dyreita, quem sabe, ay ay, pobre pequena Vyctor, sempre as mesmas lembranças, sempre.)

Tudo ysso o verão trazya, durante aquelas dyvertidas temporadas de kaça e peska.

Às vezes sem a lagarta, Rebeka andava e andava, e de tempos em tempos parava, cirkunflexa e cirkunspecta, dyante da porta fechada da sala. Parava pra ler, de perto, os veyos da madeyra eskura, sua próprya hystória — dela, Rebeka — e a hystória da kasa.

Tudo era vákuo e sólydo.

Nadas nadavam no ar, nadas e nenhures, enquanto Roberto Karlos kantava num toka-dyskos fantasma:

De que vale tudo ysso

Se você não está aquy?

De que vale tudo ysso

Se você não está aquy?

Então a porta da sala explodyu, e o kabrum da explosão ynterrompeu defynitivamente Roberto Karlos e o sonho-devaneyo da pequena Vyctor, rekonstituindo-a. Do outro lado do burako, um longo korredor — o mesmo antygo longo korredor que levava aos quartos sekretos e às ruynas cirkulares.

Mamãe — um par de pernas grossas e uma gorda cyntura afyvelada — entrou na sala passando pelo burako, ynvadiu a kozinha e arrastou as kadeiras. Movya-se em meyo a um redemoynho de sylhuetas e barulhos. Aparecya e desaparecya — força fugaz, sagaz —, sempre que as tentatyvas todas tentavam enkontrá-la.

A pequena Vyctor, em pâniko paralysado, kompreendeu tudo. Dos lábyos de Rebeka eskapava uma gotynha de requeyjão. (De requeyjão!)

A pequena Vyctor ynvestigou o ynfinito. Kom os olhos tortos, seguyu a kurva das pernas, que aparentemente se okultavam nas nuvens, enquanto na estratosfera: o abdômen, provavelmente — a gorda cyntura afyvelada (uma presença-ausêncya).

Gygante nas alturas, mamãe andava de lá pra ká, agora sem tokar em nada — fada-vampyra —, desdobrando sua sombra sobre os móveys. Andava, ynvadia, korrompia, kontaminava tudo, ora penetrando os objetos, em sylêncio, ora konsumindo-os de longe, sem sequer enkostar neles, pobres ymóveis espyritos.

Durante algum tempo, nenhum ruydo. A geladeyra estava aberta e o kopo de requeyjão — mamma mya, de requeyjão! —, kaído no tapete, esgotado, vale dyzer, vazyo.

Rebeka querya fugyr, precysava eskapar. Um mylhão de ymagens opakas atravessavam o prysma de sua mente. Fugyr pela porta da kozinha, entreaberta. Eees, kaaa, paaar! Irrekonhecíveis, seus olhos azuys — sem saber aonde yr — despejavam no chão meyos-termos, meyos-tons, palavrynhas e palavrões. Aquy e aly, também akolá, o quarto e a kozinha parecyam ynundados pelos grytos da tartaruguynha.

A pequena Vyctor estava ymersa em labaredas — a luz do sol, solidifikada —, debayxo da sombra de sua mamãe, senhora suprema. Duas mãos vyeram do alto, desgovernadas e deskonhecidas, e agarraram a pequena Vyctor, e kosturaram seus lábyos — agora, os grandes lábyos —, e o vento, vendaval, cytou o décymo prymeiro mandamento: não deglutyrás matérya alguma (apenas antymatéria), cytou e recytou para todas as nações e para os quatro kantos do quarto, em seguyda: eleva teu koração e regozyja-te, pequena Vyctor, eys que Ele-o-Senhor vem kom as nuvens, o vento-vendaval lhe dysse, e todo olho o verá e toda boka se kalará, e dyzendo-lhe ysso voltou à karga, cerkando a torre de açúkar, trazendo a chuva e o granyzo, para que nenhum outro vento voltasse a soprar nem sobre o quarto, nem sobre o céu, nem kontra árvore nenhuma.

Cerkou a torre de açúkar kom uma ynfinidade de fyos dágua, o vendaval — o vento. Um uyvo.

A pequena Vyctor, kom as própryas mãos, lutou kontra o par de mãos yntrusas, esperneou, chutou, mas o vento-vendaval, arrebatado, soprava sobre seu korpo de maneyra ynsolente, komo se quysesse unikamente desfazer sua ydentidade — a ynfância.

Às seys horas da tarde, as pernas grossas se foram, levando konsigo a gorda cyntura afyvelada e o redemoynho. Através da passagem, da porta explodyda, na parede da sala, o que sobrou? (Tryste, tryste.) Sobrou apenas a vysão de um longo korredor.

Dyante do espelho, a pequena Vyctor não possuya mays boka. Nem em cyma nem embayxo. O que antes havyam sydo aberturas vytais, agora estava ympenetrável, kosturado e rekosturado.

Palavras profundas, saydas de uma salyência qualquer, komeçavam a preencher todo o espaço opressyvo que, antes (quando?), havya sydo okupado pela sylhueta de uma assombração.

A pequena Vyctor, pensatyva… O que fazer quando tudo aquylo em que sempre acredytamos vyra myngau? E a ponte, lá fora, frágyl e assustada sob a chuva. (Que ponte? Quando? Por quê?) A ponte de açúkar, sob a chuva. Rebeka, passeando pela ponte de açúkar, sobre o abysmo sob a chuva. A únika maneyra de atyngir o outro lado, de alkançar a floresta, ah, meu deus, Rebeka… (No seu dorso, a lagarta — anymalzinho de estymação.)

A pequena Vyctor, dentro do quarto, perdyda num sonho-pesadelo, numa kasa de bonekas no alto de uma torre de açúkar, longe da multydão. A luz do sol, sólyda, passando por um pequeno burako nas nuvens, entrando pela janela. As paredes e os objetos, ensolarados, vermelhos. Um sussurro, agora sem vyda, penetrando as pequenas koisas em cyma da mesa. O sol — solydão — se pondo além da tempestade.

A pequena Vyctor sentyu dores no korpo. Kãibras makabras. (Na eskola, os amyguinhos yrão ryr dela aynda mays, ry ry ry, rá rá rá.) Um fragmento de medo desprendeu-se da sua kabeça, deslyzou pelos braços — aranha assanhada. A pequena Vyctor, então, esquecendo-se momentaneamente do seu korpo, korreu até a porta da sala, até o que sobrara da porta, entre lágrymas. Depoys voltou até a porta da kozinha, entreaberta.

Kaminhando, kaminhando, um, doys, três, um doys, três. Rebeka, sobre a ponte, kom três quartos do perkurso já perkorridos, kaminhava devagar, porém kom decysão. Avante, atrevyda! Kaminhava deyxando atrás de sy pegadas bastante derretydas, tentando não eskorregar. No seu dorso, a lagarta — anymalzinho de estymação. (Kabruuum!)

Eskorregando do kasco, a minúskula lagarta verde.

A ponte de açúkar desfez-se kom a água. Rebeka também foy ao fundo.

(Tears yn the rayn, tyme to dye…) A pequena Vyctor komoveu-se. Poderya symplesmente fechar a porta, esquecer o que havya se passado, o própryo passado. Mas não. Exystia algo dentro de sua kabeça que a obrygava a seguyr em frente, sempre em pensamento, arrastando o desajeytado baú dos ridíkulos desastres yntimos. (Pobre pequena Vyctor…) Patétika, lamentava-se, komo dóy exystir sozynha, lamentava-se, patétika, ah, komo dóy.

 

 

 

2

 

Na torre de açúkar, longe da multydão, a pequena Vyctor está de pé, kalada. Dyante do espelho, ela admyra sua ymagem. Na estante, lyvros, sym, uma grande quantydade deles. E muytos ynsetos também. Aranhas, lagartyxas, baratas, besouros — todos hermetikamente konservados em potes de mayonese. E mel. E aveya e frutas sekas ao lado das lagartyxas em konserva. E pão! (A pequena Vyctor mora numa kasa de bonekas, no alto da torre de açúkar, longe da multydão, e ysso não é nada engraçado, pryncipalmente porque os anymaizinhos ryem dela, os fylhos da puta.)

 

 

 

3

 

A pequena Vyctor não foy Vyctor a vyda toda. Não. Antes de ser Vyctor — bem antes, na prymeira ynfância —, antes da cyrurgia, Vyctor foy Marya Makaxeira do Apokalipse, mas ysso há muyto tempo. Essa, a sua mays antyga rekordação. (As outras lembranças nem o vento poderya trazer de volta, o vyrulento vento, vermelho, poys afynal tudo, tudynho, é passageyro — o tempo, o ryo, a ponte, o ato impossyvel de nos banharmos duas vezes no mesmo ryo, todas as tardes, a vyda, o unyverso e tudo mays.)

 

 

 

 

 

 

Nota do autor

 

A pequena Vyctor é um de meus personagens mais antigos e queridos, e esta é a quarta e definitiva versão de sua tragicomédia bizarra. A primeira versão desse conto-de-fadas foi escrita no começo de 1985, assim que me mudei pra São Paulo, aos dezessete anos. Essa mudança de uma cidade pequena do interior para a capital do Estado promoveu uma verdadeira revolução em minha vida. Uma revolução principalmente cultural. Da noite para o dia fui exposto às inquietações mais corrosivas e desestabilizadoras das principais esferas da expressão estética – filosofia, música, artes plásticas, cinema, teatro e literatura. Ainda escreverei detalhadamente sobre esse período. Por ora, o mais importante é dizer que a primeira versão do conto da pequena Vyctor tinha um terço da extensão atual, mas já era uma ficção sobre uma criança incomum, narrada numa linguagem quase infantil. Um ano depois, a segunda versão foi um roteiro para um curta-metragem de animação, num curso acadêmico de roteiro. Esse projeto de audiovisual não foi realizado na época, mas nada impede que um dia possamos assisti-lo na tela. A terceira versão, com os acréscimos do roteiro e algumas novidades, surgiu em 1996, quando eu estava preparando a coletânea Naquela época tínhamos um gato (1998). Apesar dos novos ajustes, até mesmo essa terceira versão está ultrapassada, hoje. Sempre considerei a história da pequena Vyctor um conto-de-fadas porque vejo nela muito dos elementos escatológicos dos antigos contos da tradição oral, a exemplo das histórias recolhidas e publicadas pelos irmãos Grimm, no começo do século dezenove. Mas na terceira versão ainda faltava um pormenor revelador que somente agora eu localizei, em meu íntimo mais íntimo, e finalmente inclui no texto: faltava salientar que Rebeka, a tartaruguinha, é filha da pequena protagonista, fruto de um estupro enquanto dormia. A quarta versão da tragicomédia da pequena Vyctor — ou, se preferirem, Marya Makaxeira do Apokalipse — recebeu, então, novos contornos folclóricos e psicológicos (símbolos e faíscas míticas), e o elemento principal, que eu batizei de filtro KY: com raras exceções, as sílabas ca, co e cu viraram ka, ko e ku e a vogal i virou y. Esse simples ajuste gráfico, que não alterou em nada a tradicional dinâmica fonética das palavras, expandiu mais ainda o estranhamento onírico. Por fim, preciso dizer que uma das etapas mais estimulantes do trabalho literário é a reescritura de material antigo. No momento, estou revisando-reescrevendo todos os contos de Naquela época tínhamos um gato, para uma nova edição. Apesar de A vysão vermelha de Vyctor, ao vento figurar no final do livro, foi por esse conto que eu escolhi começar o trabalho, já sabendo que seria uma atividade fascinante, prazerosa em muitos níveis.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Olyveira Daemon é escritor, ensaísta, antologista e coordenador de oficinas de criação literária. Publicou os romances Gigante pela própria natureza e Bamboleio que faz gingar e as coletâneas de contos Vinte & um e Às moscas armas!. Das antologias que organizou destacam-se Fractais tropicais, de ficção científica brasileira, Mundo-vertigem, de ficção fantástica brasileira, e as antologias da geração 90 e da geração zero zero. Mantém uma página mensal no jornal Rascunho, intitulada Simetrias dissonantes. Venceu duas vezes o Prêmio Casa de las Américas, em 1995 e 2011.

 

 

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