©miguel laino

 
 
 
 
 
 
 

Emaranhamento



Nenhum dos dois saberia dizer se a mensagem se originava nele ou nela:

Eu não te amo mais.

Mais que um pensamento, uma sensação que desavisadamente irrompia sem sujeito ou objeto, afeto maior que os egos, sem bordas, sem começo ou fim. Não fazia sentido perguntar onde se manifestara primeiro, ou se havia emissor contra receptor.

Estiveram unidos enquanto durou a paixão, e também no declínio  o compasso foi um só. Impossível uma sincronia mais acurada.

Ao fragmentar o átomo nos afastamos de sua verdade, temos apenas partículas despedaçadas e o que se passou entre os dois só pode ser entendido como uma viva dinâmica que a ciência é incapaz de acompanhar.

Não há instrumento com que compreender a música de duas almas. No caso deles, o improviso foi tão orgânico, tão harmonioso, que a perfeição implorava por um término afinado, onde os dois soassem juntos uma mesma nota.

Ficaram igualmente surpresos com o fato de ter durado tão pouco, e que nenhum dos dois quisesse insistir, tentar resgatar o fogo que os consumira tão intensamente. Logo concordaram, porém, que não poderia se prolongar algo que os arrebatava a ponto de dissolver a individualidade, sobrepondo-se a qualquer decisão consciente, superando a cisão dos corpos a tal ponto que já não saberiam caminhar sem a contraparte.

Era peremptório: ou sabotavam aquela relação, esforçando-se para se desapaixonarem, ou teriam de abdicar de todo e qualquer contorno.

Jamais viveram algo tão radical, e reconhecem, até mesmo com certo alívio, jamais poderão viver nada semelhante novamente. O que ainda não sabem, sendo o rompimento recente, é que os ecos se farão ouvir pelo resto de seus dias, arrepiando-lhes os pelos como uma espécie de maldição.

Ele estala os ossos dos dedos, tantos quanto pode.

Ela confere o caimento da saia, alisando os vincos.

Um último sorriso nervoso antes de se despedirem, e cada um segue uma direção diferente na vã tentativa de deixar o passado para trás.






Princípio da incerteza



Fora de foco, difícil dizer se o homem veste um jaleco branco ou uma camisa-de-força. Sotaque alemão, talvez escandinavo, a língua tropeçando no correr das frases: Einstein disse, no final da vida, ser ilusória a distinção entre passado, presente e futuro. A voz rouca, breves pausas regurgitativas, os pigarros como de máquina rangendo. Um estalo oco dos lábios. Dispara:

As ínfimas partículas de que somos feitos, as inenarráveis partículas subatômicas, nos escapam como um sonho mal recordado. Não se pode jamais precisar onde elas estarão a seguir, não se pode rastreá-las, fracassamos milhões de vezes ao tentar obter suas coordenadas. Apenas uma nuvem de probabilidades. Estão e não estão.  Você diz aqui, e no instante seguinte, a realidade é apenas um palpite.

O espaço-tempo deformado, recurvo. Os corpos se atraem; também as temporalidades de uns e outros se atraem e se comunicam. Mergulhamos em ritmos alheios, ajustamos nossos relógios de acordo com o que nos envolve.

A vista turva, como se eu precisasse de óculos. Por um segundo eu pisco, e ele não está mais à minha frente, teleportado para a minha direita. Mais uma piscadela, e eu o vejo à minha esquerda:

O futuro já existe, já acontece, atua sobre o presente. Como matéria escura que não vemos porém assina seus vetores. E quem poderá provar que o presente não transforma o passado, deformando-o sutilmente sem que percebamos? Tempo e espaço irregulares, condicionados pela incerteza.

A silhueta dele, a forma exata de uma pera. Ele parece querer se aproximar, mas ao menor gesto, se afasta.

Emaranhamentos, sincronicidades, reações aparentemente não-causais. Matéria = energia = informação. Mas: não espere por uma sintaxe legível do universo. Encadeamentos aleatórios nos envolvem em uma rede de significantes sem propósito. O mundo material, intangível como a mente, elusivo como o inconsciente,

discorre como se não percebesse estar de costas para mim, virado para a parede. Um cego que, na ausência de respostas minhas — e o que eu teria para lhe dizer? — na ausência de respostas minhas, revolteia pela sala, e é o estudo dos ecos que o ajuda a me localizar.

Universo ou multiverso? Você acredita em realidades paralelas? Múltiplas histórias de cada um de nós e do cosmos.

Você, ele me disse, você que é poeta, atente para os deslocamentos.

Uma obra de arte tem o poder de alterar temporalidades. Passe de mágica contra a frieza das equações. Uma esperança de que o futuro não esteja pré-determinado.

Ouvindo-o como ao chiado de um rio — eu que só queria saber se, em um mundo paralelo, bastaria não ter dito aquela frase sem pensar para que ela continuasse comigo. Apenas na ficção posso averiguar: que em uma realidade paralela, ajustadas as coordenadas, iríamos nos querer bem por um longo, longo tempo.

À janela, ouço uma voz, não me lembro mais se dele, dela ou minha:

Faça o tempo respirar com você.



março, 2022



Ivan Hegen (Ivan Hegenberg) nasceu em São Paulo, em 1980. Formou-se em Artes Plásticas e tem mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP. Publicou os livros A Grande Incógnita (Annablume, contos, 2005), Será (Ragnarok, romance, 2007), Puro Enquanto (E Editorial, romance, 2009) e Rock Book — Contos da Era da Guitarra (org., Prumo, 2011), A Lâmina que Fere Chronos (Prumo, 2013), Clarice Lispector e as Fronteiras da Linguagem (Ed. Benjamin, 2018). além de artigos para diversos sites e revistas sobre estética e política.


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