©sguimas [com a imagem Elza, de Vito Quintans

para a capa da revista piauí_185]

 
 
 
 
 
 

Canção Sem Nome

 

 

Para Águeda Amaral

 

 

Respondam ao tiro seco

ao sangue que não arde

das meninas sem amanhã.

 

Respondam

 

Essencial se despir do sagrado,

ascender contra vilanias

acalentar o silêncio de todas as mães.

 

Este é o nosso corpo,

a casa,

a bandeira hasteada,

o ventre a pulsar

de onde a vida,

por vezes, breve

canta a canção sem nome

sob o horizonte cinza

de um coração azul

 

 

 

 

 

 

O Poço

 

 

Perdão, Ubaldo,

Deus não é brasileiro

e nem mesmo sabe

o custo da cesta básica

ou da bala que se encaixa

na cabeça do homem negro

 

Perdão, meu filho

o poço é fundo

raso

grotesco

O poço é desespero

crânio esmagado

corpo incinerado

sob o silêncio das multidões

 

Perdão, amigo

pela pátria devastada

a morte indígena anunciada no café da manhã

 

Perdão, meu amor

por cada nome esquecido

em cápsulas de 9 milímetros

abençoadas na tradicional família cristã

 

Perdão, trabalhador

pelo tribunal que afaga o mito

e o estuprador como um irmão

Perdão

 

Mas por favor, me respondam

sem receio ou vergonha;

— até quando aceitaremos

o fascismo como religião?

 

Até quando?

 

 

 

 

 

 

 

palavra escorrega

deita, lambe a cria, come, rasga

sangra as letras, os dicionários, a bula

o refrigerante gelado, os cães no cio

o tempo, as vísceras, o corte seco na barriga

a curva, o improviso, o filme mudo, a mesa farta

o prato vazio, o beijo, o calor, o céu, o frio

a tarde cinza, a noite em teu corpo

a vida em teu colo.

 

palavra é labirinto, ponte, saudade, carícia

pão, palavra vento

a palavra pêndulo

silêncio, deserto: palavra

amanhã, quem sabe?

quero mais

você canção

todo o mundo.

 

 

 

 

 

 

Drummond and Bass

 

 

Para Carlos Drummond de Andrade e Ericson Pires

 

 

Carlos, é preciso odiar Messias

É preciso não suportar Ricardo

É preciso desmascarar Sérgio

É preciso ressuscitar os bons

 

É preciso não incendiar florestas

É preciso não comer o pão que o Jair amassou

É preciso demitir fulana

É preciso não matar crianças

É preciso não legitimar a dor

 

É preciso expurgar Olavo

É preciso resistir a Paulo

É preciso educar os inocentes do Leblon

É preciso recuperar os descontentes

É preciso desarmar os dementes

que vandalizam o amor

 

Carlos, é preciso salvar mulheres e homens:

pulsar tambor

 

É preciso não aliená-los

É preciso coragem para não anunciar

O fim do mundo.

 

 

 

 

 

 

Elza

 

 

No noticiário

Sua Santidade alega inocência

O jogador de futebol

o estuprador

o ginecologista

o juiz

o pastor

o policial

o jornalista

o ministro

o plano de saúde

e o deputado fascista:

todos alegam inocência

 

Lisa é antivacina

Bia, negacionista

Regina: demente

 

Mas Elza, que nasceu no planeta fome

responde:

"eu vou cantar até o fim"

Alguém duvida?

 

 

 

 

 

 

A Rasura do Corte

 

 

E então ele disse:

Esqueça a violência diária,

a crônica-manifesto.

No poeta não cabe

antologias e protestos.

 

Um poema não precisa

ser espelho do seu tempo.

Nem sempre a

tragédia justifica

a revolta em versos.

Seja isento, amoral,

aqueça o inferno.

Faça um soneto de amor

em homenagem ao desespero.

 

Por fim não reconheça

a morte severina

o pássaro que canta na gaiola

a rosa de Hiroshima.

 

Deixe para trás

o manifesto populista

a felicidade Macabéa

o cálice

o uivo

a cidade prevista.

 

Fotografe em linhas retas

a vida útil do manipulado.

A palavra não precisa sangrar,

viver é mesmo tão ultrapassado.

 

Então eu respondi:

Foda-se

 

 

 

 

 

 

Blue

 

 

No azul daquelas horas

as baratas mordiam as migalhas

A família fingia inteligência

Tudo se firmava

nas pedras

O mato crescia

o sangue escorria

e as flores não pertenciam

àquela estação.

 

 

 

 

 

 

 

Marchinha

 

 

Costuro frases,

faço da ofensa poesia

A cidade ergue-se ao descaso

Os automóveis seguem

em romaria

De onde o sol se levanta

a música se anuncia:

Esperança ainda que tardia,

na carne serei alegria.

 



setembro, 2022



Taciana Oliveira é editora das revistas Mirada e Laudelinas. Atua na direção e produção de audiovisuais. Dirigiu o documentário Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo.

 

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