©fernando josé karl [carnaval para adriana]

 
 
 
 
 
 
 
 
 

Em memória de Fernando José Karl

 

 

 

Queria te contar baixinho,

com minhas palavras,

um pedaço desta história.

 

Com minhas palavras,

eu queria dizer que sinto muito

pela solidão dos buracos negros

e pela explosão das supernovas.

 

 

#

 

 

Nossa Senhora dos Navegantes

acenou para ele de cima do rochedo.

Ele tinha sede, ela tinha um manto.

Água brotava da pedra

e as gaivotas se agitavam

prenunciando um grande temporal.

 

Nossa Senhora dos Navegantes,

de cima do rochedo,

tomou-o em seus braços, beijou-o

e mergulhou com ele em um mar de conchas.

As gaivotas se agitaram

prenunciando um grande temporal.

 

 

#

 

 

Bem dentro,

bem cedo,

bem fundo,

foi adivinho do canto.

 

Bem cedo,

bem fundo,

bem dentro,

INADEQUADO.

 

Aprendeu a verter

PALAVRA

na página branca

do mundo.

 

 

#

 

 

Havia a casa onde respirava a senhora que não sabia do tempo.

Duas vezes por dia ela se banhava na bica do jardim e fazia orações.

Dos pássaros só ouvia asas.

O universo, superfície espelhada, era apenas uma sombra do que pulsava nela.

Toda tarde, antes que surgisse a primeira estrela, a senhora pedia que ele se levantasse da rede e fosse comprar o pão.

 

 

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A Loucura

Não Cria

Convoca

 

 

#

 

 

Morte,

noite da noite.

Dois olhos espreitam a barca

onde os amantes ainda respiram.

O Vento do Norte sopra seus cílios.

 

 

#

 

 

Era um ser muito estranho, mas alguma mulher o amava.

Deitado na esteira, fumava até a última ponta

e gozava.

 

 

#

 

 

E eis que ele segura a minha mão e chama.

Mergulho no silêncio das palavras.

O que ouço?

As pedras de amolar faca, os tesouros escondidos nas gavetas.

O que sei?

As damas e seus chapéus.

Se as vejo, elas são eu.

Se não as vejo, não estão.

Sinto a pele da sua língua na ponta dos meus dedos.

Não procuro entender, estou linguagem.

Como Algo elucidasse o que era sombra,

Como Algo iluminasse o que era antes:

DESEJO.

Na noite veloz do pensamento, solta a minha mão.

Agora fóton, me desfaço em luz.

 

 

#

 

 

Cicatrizes

Não

Doem.

 

 

#

 

 

A infância em espiral percorre meu corpo, enquanto os anjos me abandonam.

O que ainda está fui eu que fiz com as próprias palavras.

Busco a árvore da vida que se afastou de mim.

De um buraco na cerca, observo a piscina da chácara, onde a sereia sem braços percorre quilômetros debaixo d'água.

A pele que mais me atrai é a da sola dos pés.

Verto o líquido quente na xícara de chá.

 

 

#

 

 

Pronuncia com perfeição o nome do impossível.

Cultiva um piano no jardim.

As partituras, inventa enquanto, dedicado, alimenta o cão.

 

 

#

 

 

No dia em que a mãe o pariu,

o pai soprou uma grande nuvem no céu

que se desfez em formas

e se refez em chuva fina

na palma da sua mão.

 

Chuva escorreu dos seus olhos

Chuva lavou seus ouvidos

Chuva matou sua sede de canto.

 

O Céu estava claro naquela noite.

 

Saturno o abençoou com seus anéis e o entregou à âncora

que o conduziu ao azul profundo do mar.

 

 

#

 

 

Que as ondas e o ar te lavem de toda dor.

 



junho, 2022



Adriana Versiani dos Anjos (Ouro Preto/MG). É poeta e artista visual. Tem diversos livros publicados, dentre eles, A física dos Beatles (2005), Conto dos dias (2007), Livro de papel (2009), A lâmina que matou meu pai (2012), Diário de A (livro de artista, 2013), Três Pedras (2014), Arqueologia da calçada e Farmacopeuma (2018), Um bicho, dois gravetos, quatro pingos (2020), O inverno de Idea e Alejandra - Transalucinações (2021), Não me olhe com esses olhos de quem viu um lobisomem (2022). Integrou o Grupo Dazibao de Divinópolis/Belo Horizonte. Foi coorganizadora da Coleção Poesia Orbital (1997, produzida para as comemorações dos 100 anos de Belo Horizonte) e do Jornal Inferno. Fez parte do conselho editorial da Revista de Literatura Ato. Foi editora do Jornal Dezfaces.

 

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