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ARQUEOLOGIA DO PRESENTE

 

 

Mil e uma cruzes espalhadas

pelas trincheiras de uma vida,

anjos subterrâneos ao redor

 

Furor sobre horror, bicho bruto,

o demônio dos dicionários —

das analogias e seus batismos trágicos

 

Arqueologia do presente, máquina

de inconsolado brilho, engenharia

desmemoriada do cotidiano

 

Véu escarlate de salto,

fina flor do asfalto,

menos brilho do que fogo

 

De verso a reverso, as cidades

embrutecem os sonhos

e multiplicam os silêncios

 

Entre o crepúsculo de um deus

e a aurora de outro, a cólera,

unidade imediata do real,

 

vinda do fim do mundo,

estrela sombria de um Oriente

por desassombrar

 

Menos depurados de sol

os deuses exigem sangue

— para viajar só é preciso existir

 

 

 

 

 

 

POLAROIDE 2022

 

 

Tudo está partido, tudo despido,

não há mais passado seguro

para o qual se retornar

 

Mal de aurora, mal de horror

— um jardim para cada rosa,

uma esfinge para cada origem

 

Temos a idade dos bárbaros:

a flor do absurdo e o urinol do sol,

a justiça que não é justa

e a saúde que não salva

 

A loteria sombria de um país

de almas inumeradas, a fogueira invertida

de uma biblioteca sem paredes

a arder numa presença multiplicada

de imagens, no centro nervoso do dia

 

Astro conflagrado por dentro,

poema ilimitado da cidade

— a noite, terminologia trágica de tudo,

a bomba e o vírus, aurora radioativa de flores

 

 

 

 

 

 

CANÇÕES DE GUERRA

 

 

Imantadas de astros desastrados

divisas suspensas entre as distâncias,

tão raras quanto mais atuais

cidades se fortificam de mais a mais

 

Desde estórias sem História

imagens significam mais do que dizem

com as raízes aéreas de um presente absoluto,

com o metal numérico de outro anonimato

 

Sempre por compor

nascendo noutros cimentos em flor,

noutras selvas inventivas de signos,

noutros cemitérios de asas (sub)traídas

 

Vende-se dinheiro — o desencantamento

é um de seus nomes de ira:

o arco sem a lira, o grau zero do espetáculo,

sujeito-objeto de um olhar e de um fazer

 

Guerra à guerra, ódio ao ódio,

morte à morte, vida à vida,

já diria o poeta: Ninguém jamais

vence, em absoluto, numa guerra

 

 

 

 

 

 

BRILHO-MANIFESTO

 

 

Quando as fogueiras queimarem,

quando as cidades arderem,

quando a primavera acabar

eu quero estar do lado do brilho

 

Do lado dos loucos, do lado dos bruxos,

do lado dos beats: dos vencidos e malditos,

do lado mais noturno dos sóis

 

É preciso viver como quem chove,

brilhar sempre, brilhar em todo lugar,

com os cem sóis de Maiakovski,

com a linguagem viva de um relâmpago

 

Ser estrela, ler estrela, num limiar de molduras,

num perpétuo e renovável jogo do sol, com a escultura

plástica e a noite nômade de outro clarão

(o observador perturba a coisa observada)

 

Tudo que brilha faz sentido

tudo que cria sua própria lei

Tudo que brilha faz sentido

tudo que é radiante de mar

 

 

 

 

 

 

DAS AURORAS

 

 

Num prenúncio sem acabamento

certos edifícios se curvam ao pó

— pela universalidade das distâncias,

pela língua indomesticável das auroras

 

Esculpido o futuro dos vencidos, vencedores

partem para outras despedidas de pandora:

poeiras acumuladas em estrelas inquisidoras,

vertigens prolongadas em cicatrizes noturnas

 

Construtores de ruínas

arquitetos-engenheiros assistem

a novo um emaranhar do mar

quando as primaveras afiam suas garras

 

Num prelúdio de dilúvios,

à revelia das armaduras do olhar,

mapas de sóis transbordados,

estátuas desabadas pelas nebulosas

 

Com a mesma chuva oblíqua

de objetos sem nomes prévios,

selvagens corações transfigurados

se aproximam das geografias inconstantes

 

Desde séculos de séculos

a aurora é um coletivo de pássaros

Desde tempos sem inícios

as flores triunfam sobre os furacões

 

 

 

 

 

 

RUA DO ORIENTE

 

 

Querer abraçar o mundo e ter

as mãos atrofiadas em nuvens

de almas inúmeras e inumeradas

 

Querer plumas e pulsar navalhas

dentro da pele, com os braços

entreabertos em irresolução

 

Querer incendiar os barcos

e inflamar as asas

num acelerar de átomos

 

(num alfabeto de estrelas,

num estilhaçar de projetos,

num manto de galáxias)

 

Piscando no escuro

em seus lirismos de abismos

os pássaros diminuem a noite

 

Numa partida infinita

a ser arriscada com o acaso

as flores derrotam os canhões

 

 

 

 

 

 

A MELANCOLIA DOS DINOSSAUROS

 

 

Pós-contemporâneos de toda impermanência,

com as máximas abstratas de verdades parciais

vanguardistas distópicos se mobilizam em torno

de alguma nova versão do deus Presente

 

Despindo-se de todos os véus,

decadentistas do novo se reinventam

por imperativos de mapas

e outras fronteiras de localizações transitórias

 

Dos deuses desempossados

com suas distopias utópicas

vanguardistas centenários se movem com as ruínas

de uma linguagem sempre por cicatrizar

 

Em transe e em trânsito, a meio caminho

entre o esquecido e o imaginado,

seus corpos se confinam noutras

ressonâncias de verbos e nomes

 

Entre o som e o conceito,

entre o signo e a coisa,

entre a posse e a possessão,

entre o pensamento e a visão

 

Todo texto encerra, neles, um enigma luminoso

de realidade perpétua e estranha a compor

um novo coletivo de palavras sem dono

 

Com os corações ligados por cordas,

numa mínima iminência corpórea,

a eles se iluminam o real e a ficção;

através deles os objetos alucinam o Livro do mundo

 

Pedra sobre pedra, muro sobre muro,

toda revolução nasce de um ventre

de brilho contestador do Brilho

(estrela rebelde à própria constelação)

 

Com lamentos para o infinito,

num novo museu de vertigens,

por territórios de deslocamentos súbitos,

foi de melancolia que se abismaram os dinossauros

 

 

dezembro, 2022

 

 

Augusto Guimaraens Cavalcanti é escritor e pós-doutorando do PACC-Letras da UFRJ, tendo publicado, entre outros: Poemas para se ler ao meio-dia (2006, 7Letras), Fui à Bulgária procurar por Campos de Carvalho (2012, 7Letras) e Máquina de fazer mar (2016, 7Letras).

 

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