©sguimas
 

 

 

 

Remanso

 

 

Era domingo de manhã

Fui sentir o cheiro de mato

Caminhei pelo capim verde

E observei o doce regato

 

Sob o olhar manso das vacas

Entre as mangueiras carregadas

Percebi que uma vida pacata

É digna de ser celebrada

 

A casa simples, o pomar

Cercado de plantas e frutas

Conversas e goles de café

De delícia absoluta

 

Das árvores a gente desfruta

À sombra fresca e convidativa

E bate uma certeza arguta

De que aquilo sim é que é vida

 

O leite tirado na hora

Seu sabor bucólico na boca

A inquietação de quem vai embora

Mas se prepara para outra

 

Assim são as visitas no campo:

Um sentimento oceânico profundo

Enche o meu coração de encanto

Faz-me sentir um com o mundo.

 

 

 

 

 

 

Ela

 

 

Grávida de risos

Ela caminha a passos lentos

Admirando a paisagem

Como águas de rio

Seu olhar expressa serenidade.

 

Sorriso afável

Voz tranquilizante

Ela sabe que seu futuro

Merece mais do que um retrato na estante.

 

Merece livros, risos, estações

Primaveras resfolegantes

Como quem se recupera do amor

Prazer intangível da liberdade

Sendo mulher, ela sabe

Que não existe nada mais atraente

Do que o encontro entre dois corpos

Gozando simultaneamente.

 

Mas tem convicção

Que a cumplicidade é essencial

Numa relação

O prazer do encontro com o outro

Não substitui o encontro consigo

Diante do perigo de alienação.

 

Amar se aprende amando

Está no poema preferido

Amor-próprio não tem preço

Não pode ser vendido

Como uma mercadoria

Na prateleira do supermercado.

 

Grávida de risos

Ela caminha pela cidade

Observando a loucura da humanidade

Que não sabe ser prenhe de nada

Tampouco de amor.

 

 

 

 

 

 

Encontro de almas

 

 

Num encontro de almas

Um sorriso que acalma

O inevitável

Mergulho no olhar

Desnudando vitrais, luz colorida

Tez negra, voz suave

Epiderme que deseja tocar

A superfície espalmada da vida

Entrelaçamento

De pés, expressões linguísticas

Encostando a superfície áspera do desejo

No sal do corpo sob a língua ávida

A perpétua sensação de mordidas

Paradisíacas

Na ânsia do beijo

Abraços duradouros de lábios

Nós entrelaçados em nós

Amando o inefável das coisas

Dançantes no ladrilho baldio

Vadio desejo do arraial, inequívoco

Que se apossa de nós

Atando nossos corpos

A sós.

 

 

 

 

 

 

Brancura paranaense

 

 

A sua brancura paranaense

Sobre o meu corpo moreno

Cavalgando me convence

Do nosso encontro sereno

 

O vaivém ritmado do seu quadril

Seios bem torneados latejando

Nas papilas da minha língua febril

Sinto a sua pele se arrepiando

 

Subitamente a conjunção gostosa

Nossos corpos se amalgamando

Seus gemidos enquanto goza

 

Nossas bocas se misturando

A brancura de sua pele sedosa

Na negrura do meu corpo baiano.

 

 

 

 

 

 

Alma água-pretense

 

 

Na manhã de ontem

Senti um gosto estranho na boca

O mesmo sabor de ferrugem

Do meu riacho de infância

E isso fez meu coração confuso

Cortado por navalhas e espadas

Punhais de outros carnavais

Sangria desatada

 

Num haraquiri cortei-me o ventre

De onde saíram memórias felizes e tristes

Como pássaros selvagens fugidos de gaiolas

 

Há uma espécie de tristeza água-pretense

Que invade as vísceras e insistente[mente]

Refugia-se nos tempos nostálgicos

De outrora

 

É a alma água-pretense que governa

Fazendo escoar o coração para o mesmo destino

Jangada na floresta, amigos sempre em festa

 

Água Preta, eterna fonte e chegada

Em suas águas mergulho as pedras ocas [lascadas]

Do meu peito demasiadamente humano

E coração palpitante

 

Na manhã de ontem

Cada pedra "escrevida" fez saudade

A nostalgia de brincadeiras juvenis

No barro de olaria abundante

Invade os sentidos e a razão

Cortando a nado as águas pretas

Escuras como a passagem do tempo

Nas memórias de meu coração.

 

 

 

 

 

 

Amor troiano

 

 

Encantado pela beleza de Helena

Páris vislumbra o encontro carnal

Enamora-se da esposa de Menelau

E transforma a Grécia numa arena

 

Guerra como nunca ocorreu igual

Pelo amor de uma mulher plena

Amor que aos homens envenena

E converte todo o bem em mal

 

Embora Troia tenha caído

O amor sempre se reerguerá

Mesmo que as mãos de inimigos

 

Venham contra ele guerrear

E pareça que tudo está perdido

A força do amor sobreviverá.

 

 

 

 

 

 

Sancho

 

 

Qual Sancho desvairado

escudeiro fidelizado

empunhando a espada,

encolerizado

arremeto contra moinhos

sem chances

sem seixos

Quixotesco

só Sancho

 

 

 

 

 

 

Apolo & Mário

 

 

Apolo corria na areia

Enquanto Mário surfava

O sol mostrou a que veio

E os dois iluminava.

 

 

 

 

 

 

Amor & sexo

 

 

amor

amoral

a moralizar

o mal

 

sexo

casual

a sexualizar

o caos

 

sexo

nexo causal

complexo

 

amor

anexo emocional

do sexo

 

reflexo

sexual

a unir

o casal

 

convexo

singular

a generalizar

o plural

 

 

 

 

 

 

Não estamos interessados

 

 

Prometeram acabar com a guerra

Desnudar a terra do que a consome

Prometeram acabar com a violência

Extinguir a existência da fome

 

Prometeram, sabemos bem

Palavras esquecidas ao vento

Vontades mortas não movem moinhos

Palavras tortas não endireitam caminhos

 

No fim são apenas palavras

Que não podem mudar o mundo

Ações talvez resolvam, talvez

Mas no momento, não, obrigado

Não estamos interessados.

 

 

 

 

 

 

Gladiador

 

 

Não sou nada

Senão um gladiador

Insano

Lutando contra leões

No Coliseu romano

Ou um guerreiro negro

Africano

Na luta diária contra a colonização

De peito aberto

Sangrando

O banzo incontido

Da escravidão

 

Não sou nada

Senão um caçador

Pré-histórico

Entesando o arco

Heroico

Ou um lutador hebreu

Arcaico

Cercado de pentateucos

Laicos

Protótipo estoico

O espírito aflito

Na tradição

 

Não sou nada

Senão um poeta

Balzaquiano

Traço incontido do desejo

Humano

Na divina comédia

Ou um prosaico suburbano

Lutando como um guerreiro

Insano

Essa batalha dantesca

 

Não posso ser nada

Senão a carne que regenera

Com o tempo

Senão o musicista que demarca

O andamento

Do mundo através de palavras

 

Não posso ser nada

Senão a incerteza do eco

Desses gritos perplexos

Ante a humanidade

Desumana

 

Não posso ser nada

Senão a incontestável solidão

De humano, demasiado

Humano

Num planeta deserto de intelecto

Bélico

E alegadamente

Plano

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Maurício de Novais é um filósofo, pedagogo e poeta baiano. Autor de diversos livros em prosa e versos, ocupa a Cadeira 7 da Academia Teixeirense de Letras (ATL). Alguns poemas desta página foram extraídos das obras Não estamos interessados (2008) e Um dia de chuva e outros poemas de amor (2019). Já outros — como "Alma água-pretense" — são inéditos. Na prosa, destaque para o romance Um crime passional (2010).

 

 

::  revista  ::  uns  ::  outros   ::  poucos  ::  raros  ::  eróticos&pornográficos  ::  links  ::  blog  ::