©sguimas
 

 

 

 

INAUDÍVEL

— na tarde abafada —

 

 

Ah, se esse verso fosse uma saída…

Mas nunca foi, sempre soube disso.

 

Às dezesseis, o vapor da rua vazia,

sobe ao quarto pouco, na alvenaria

 

que apenas projeta a mesma agonia:

dar jeito para ficar — e seguir ainda,

 

diante da sua inalcançável geografia.

Na penumbra da hora, quase na linha

 

que amarra cabo ao futuro de uma vida,

agora, quando não se tem mais aonde ir,

 

a morte incorpora-se à condição de alegria.

E diga: por que o ar se sem você e a poesia?

 

 

 

 

 

 

SESSÃO DA TARDE

 

 

Às dezessete, esse coração acelera,

pois toda a luz que há no hemisfério,

inicia o fim dessa claridade imodesta,

feito se as coxias do ocaso pudessem

 

asfixiar os pulmões da tarde e os beges

que rodeiam o contorno do meu verso.

E antes das dezoito, tudo em mim ferve

mais, desde o tutano dos ossos às ideias,

 

sob as altas voltagens das minhas carnes;

e sempre na mesma — eu e a sua imagem.

 

 

 

 

 

 

TANQUES

 

 

E será de fato a vida, esse flanco

vazio que abastecemos de pranto,

de riso, e nunca sabemos o quanto

é preciso para encher o seu tanque?

 

O ocre das dezessete e quinze, emana

a mesma cena que sempre me espanta:

esta silenciosa e lenta e veloz mudança,

quando a luz vai e leva junto a esperança.

 

Tenho de pôr fim nisso e ninguém me reclama.

Nem o acetileno a três mil graus da sua chama.

 

 

 

 

 

 

TERMAL

— quase refeito —

 

 

Do que foi absoluta a tarde, só resta

a derradeira terracota daquele bege

que, há pouco, era rei no hemisfério

restrito do retângulo da minha janela.

 

Às dezoito e dez, tudo ainda se despede

em mim, quando este violeta estabelece

o domínio da noite: o rebento que desce

entre o véu do lobo e a Branca de Neve. 

 

E tento esquecer o que jamais se esquece:

você é um calor que aparece e desaparece.

 

 

 

 

 

 

PARANGOLÉ

 

 

A tarde pede bem mais; não basta a janela

— e debruço os pesadelos sobre a cerâmica

disposta ao longo do parapeito da varanda.

E não há jeito de ignorar todos os amarelos

 

vindos tão de longe, mas, aqui, tão de perto,

que consigo inventar uma geografia profana

capaz de trazer, mesmo agora, a sua bonança

de ressurgir entre as mímicas do meu verso.

 

O outono pesa a mão e recolore as dezessete

— onde você é o morro que o poema anoitece.

 

 

 

 

 

 

APARELHO

 

 

Há uma rajada que me diz, aberta,

que, sem você, eu não seria poeta;

vai e volta, de supetão, e completa:

— A energia do seu verso vem dela.

 

Às dezenove, a noite é quase repleta,

mas ainda brilha a última luz da vela

da tarde que rodeia todo o hemisfério,

onde vários roxos tingem minha janela.

 

Na guilhotina das horas que me velam,

só a sua carne de neve é o ar que resta.

 

 

 

 

 

CONTRALTO

 

 

Como se fosse por tudo taxado de proibido,

em nome dos depósitos sempre escondidos

 

e àqueles que ainda permanecem invisíveis,

que meu lápis, agora, mesmo muito tremido,

 

pretende mover as pedras porosas dos filtros,

e abrir a margem suspensa do verso que crio.

 

Porém, às vinte e uma, o que trago é repetido

— esta sinfonia masterizada dos seus gemidos

 

que ricocheteiam entre os vãos do quarto vazio

e, sob o céu da noite toda azul celeste, invertido.

 

Logo depois do poema, pego os fones sem fios,

e posso ouvir o contralto do seu último suspiro.

 

 

 

 

 

 

RANGIDOS

 

 

É seu o que restou da minha fogueira e da fumaça

que entoa a dor e a música das dobradiças da casa.

 

Irei assisti-la entre intimidades... E sobre os lados,

abrirei os meus cadeados enferrujados que faltam.

 

Antes de despertar, serei o seu dia, o chá, a torrada

Petrópolis, o vento de fora e a nuvem almiscarada

 

das seis; serei a sua folha de outono, o seu mágico

no final da manhã, no beijo das onze: o seu atraso

 

claro; um grito silencioso ou aquele vapor abafado

ao deitar na sua rua e me asfaltar no seu passado.

 

E virá a tarde: e serei seu; a noite e a madrugada,

e serei seu, todo, enquanto for a nossa temporada.

 

 

 

 

 

 

DEZ PONTO ZERO

 

 

Sim, você é a tirana absoluta dos meus versos,

manda e desmanda, pinta e borda, e acontece.

Às dezessete e seis, na fumaça da tarde quieta,

o volume máximo das caixas não reverberam

 

esse terremoto dez ponto zero, desde as pernas

até ao bucho mais escuro que a gente carrega…

E mergulho em toda a poesia encarnada na neve

fina da sua pele — que nem Deus tem a maquete.

 

O morro permite que um bege claro o acoberte,

mas só pela metade, pois na outra, prevalecem

os tons das ardósias que ladrilham os alicerces

predominantes no quadro vivo da minha janela.

 

Onde está mesmo a tal palavra, tão longe e perto?

E às dezoito, fecham cedo os amarelos do inverno.

 

 

 

 

 

 

CALABOUÇO

— 23h42 —

 

 

Vejo um verso na poeira

camuflada sobre os tacos

da sala — e na luz acesa,

inútil no meio da tarde.

 

E na fuligem eu escrevo

sua partitura com lápis

sem ponta, sob esta regência

da batuta longa das almas

 

que sobrevoam e desdenham

das madeiras velhas do quarto,

e do vapor que as desenham.

Mas noto, antes da virada,

 

que, em mim, não há o poema

dissociado das imagens

fixadas na cal das paredes

— a perfeição dos seus buracos,

 

entre as neves dos seus seios.

E são tão claros os detalhes:

o colo, a bacia farta,

e a delgada silhueta

 

da sua rosa orvalhada.

Pelos loopings das suas cenas

que mantenho minha estada

na masmorra da noite quente.

 

— E tudo, por fim, se acaba.

 

 

 

 

 

 

MONÓLOGOS

 

 

Quando fui córrego, as pedras

me ensinaram que o critério

do que em tudo permanece

nunca está nelas, inertes,

mas nas águas que se mexem

com vário e distinto aspecto,

de modo que não repetem

o que antes foi (e era breve).

 

Ivan Junqueira, em "Prólogo"

 

 

Decantar do tempo o que dele é mais intenso:

não morre nem nasce; não é calmo nem tenso

e mora na nave do pêndulo de ocasos e auroras,

entre o ocidente e o oriente, e azuis e terracotas.

 

Quando fui nuvem, ouvi o vento dizer em silêncio

que ele esculpia no meu corpo raso, tão somente

um desenho, mas que seria dos raios todo o colorido

de modo sempre inédito de um instante breve e infinito.

 

Quando fui verso, o poema me ensinou — em sílabas —

que a poesia é a pausa de uma rara respiração sibilina

(uma presença despercebida) e que a utilização da rima

deve estar a serviço dele — e nunca de sua alegoria.

 

Descobri depois que jamais seria nada além da maresia

que predomina. Quando fui alegria. Lá nos confins da vida.

 

 

 

 

 

 

CABECEIRA

 

 

Permaneço invariavelmente preenchido

de quase tudo o que pareça ser químico,

 

daquilo que interage na cadeia do infinito,

a fim do menor estado de energia possível.

 

Às cinco e meia, úmido desse ar novinho,

vejo a cabeceira e o paiol de comprimidos

 

que sopram a pólvora e molham meu pavio.

E somente o verso é o que venta no moinho.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Marlos Degani (Nova Iguaçu/RJ) é jornalista e poeta. Em 2006, lançou o seu primeiro livro de poesia Sangue da Palavra, cuja apresentação é do poeta Ivan Junqueira, imortal da Academia Brasileira de Letras, falecido em 2014. Em 2014, publicou Internado e, em 2021, pela Editora Patuá, o livro Uniplural. Participa como poeta convidado da edição número 104 da Revista Brasileira (2021), editada pela Academia Brasileira de Letras, ao lado de grandes nomes da literatura nacional.

 

 
::  revista  ::  uns  ::  outros   ::  poucos  ::  raros  ::  eróticos&pornográficos  ::  links  ::  blog  ::