©sguimas
 

 

 

 

Pescar

 

 

Duas mulheres estão pescando. As varas erguidas contra o céu azul. Pernas descobertas escorrendo entre as pedras no pontal. A da esquerda usa um chapéu de abas curtas, a trança lhe escapa pela nuca. A outra, cabelos grisalhos bem cortados, enfrenta o sol com galhardia e óculos escuros. A cesta ao lado esperando os peixes. Estão rindo de alguma coisa que pode ser o fato de não pescarem nada há horas. Ou de um bolo que embatumou pouco antes de saírem de casa. O olhar para o horizonte parece buscar o fio da conversa. Lembram-se de alguma coisa antiga? Um desencontro, uma viagem, a letra de uma música? Um nariz é pequeno de perfil, os olhos se apertam na risada. Um brinco colorido chacoalha e brilha. Desnivelados, os ombros não se tocam. Estão tão juntas que dão fé que serão para sempre. Vão pescar um único peixe, preso nos seus anzóis, uma só boca, uma só cauda a se debater na cesta. Vão limpá-lo. Corpo com corpo na pia da cozinha. Deus ali. A travessa prateando. Vão devolvê-lo ao sal e assá-lo. Vão comer a carne branca e macia comungando a aventura cotidiana do fundo do mar até a mesa, sem procurar significado ou relevância no acontecimento extraordinário que se dá. O milagre.

 

 

 

 

 

 

Um par

 

 

O varal tem pernas de bambu fincadas na grama, corpo de arame retorcido e uma franja de pregadores de madeira. Pela janela do quarto da minha avó, observo as roupas balançando e tento adivinhar a quem pertence cada peça. Depois, conto as meias em pares e sinto pelas ímpares, suas metades perdidas antes de chegar ali. São meias separadas, perdidas, viúvas, meias sem serventia, sem respeito, sem razão de existir. Digo que quero ficar com elas e acham graça por eu ter pena das meias solitárias. Tenho é medo. Quando elas voltam cheirando a amaciante, emboladas nas suas diferenças, ajeito-as com carinho na gaveta, fazendo a conta mentalmente: Deus está vendo isso e vai me arrumar um par perfeito um dia.

 

 

 

 

 

 

Albinas

 

 

Escurecia e o playground na praia estava inabitado. A sombra dos brinquedos refletida na areia pela luz da Lua. Haveria um pezinho de sandália, uma pá enterrada, uma mamadeira, sinais da passagem das crianças por ali. Diariamente, debaixo do sol carioca e sob os olhares modorrentos de pais e babás, as crianças escalam degraus, escorregam em rampas coloridas, balançam-se, erguem castelos, abrem buracos. Corpinhos bronzeados, cabeças suadas, risadas, choros, gritos atravessando o ar quente, areia voando na enorme gaiola a céu aberto. Mas não àquela hora. Àquela hora, o parquinho era uma estrutura erguida no deserto. Esvaziada de sentido. Fantasmagórica.

E então, brilhando no escuro, surgiram as meninas albinas. Duas irmãs ainda pequenas, branquíssimos os cabelos, pelos, cílios e sobrancelhas, rosada pele, olhos de bolinha de gude, fadinhas esculpidas em delicada porcelana.

Vinham com a mãe e assim que soltaram-se dela, correram para os brinquedos, significando o vazio, reacendendo o lugar. Como se uma luz emanasse de seus corpinhos, as irmãs albinas cintilavam na noite quente. Saltitavam descalças chacoalhando as alvas cabeleiras encaracoladas, espuma do mar, indo e vindo, entre risadas, suor e areia, divertidas como as do dia, as criaturas noturnas.

A um chamado, voltaram o olhar translúcido para o calçadão onde a mãe esperava ao lado do pipoqueiro, ele também vaga-lume, o carrinho aceso, enchendo os saquinhos de pipoca doce, cor-de-rosa, encantada, pigmentando tudo. Agora, a Lua baixa alcançando o mar, a volta para casa e o sono das meninas que não podem dormir.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Marina Moraes é jornalista e escritora. Não nasceu em Guaxupé, mas foi criada naquele caldo mineiro. Viveu em Nova York, onde nasceram duas das suas três filhas e trabalhou para a Folha de S.Paulo, TV Manchete e SBT. No Brasil, foi editora da National Geographic, na Editora Abril e Diretora de Comunicação das agências Leo Burnett e Dentsu Aegis. Tornou-se cronista durante o tempo em que viveu no Rio e segue o ofício, agora em São Paulo. Mais, aqui: www.marinamoraes.com.br.

 

 

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