©sguimas

 

 

 

um cão

 

 

vem de longe, talvez tenha atravessado o tejo a passo lento sobre as águas, talvez tenha surgido das névoas da fímbria da memória, sim, pode ser uma lembrança deambulatória que cruza a rua miguel bombarda em frente ao posto de gasolina, lenta, egípcia, babilônica, riscada de cicatrizes que riem sob os pelos foscos, mas faz sombra no asfalto, o danado, o tinhoso, anjo rebelde em queda livre, capiroto arrastando ainda a fome sobre as quatro patas, ainda a farejar o cio das cadelas, escravo milenar das fagulhas do instinto, o Cão, um cão, este ainda, este que atravessa a luz desse dia em que carrego meu fardo de mercadorias para comer, beber, limpar o rabo, parado diante do posto de gasolina a vê-lo na calçada oposta, velhíssimo, sublime em sua decrepitude invisível, boatswain de lord byron, sharik dostoievskiano, puro amor, vira-latas apedrejado, vagabundo comedor de lixo, irmão ilibado de solitárias criaturas pálidas, babão mordaz, molosso que faz tremerem os andarilhos de esparta, medievo mastim a molhar as patas no esgoto a céu aberto da avenue des champs-élysées, último habitante da cidade em chamas, melhor amigo da pior criatura, baleia a nadar em vidas secas, pouso os olhos de leitor hipócrita em teu pelego roto, em tua andadura de cristo insciente sob o peso da cruz dos homens, quadrúpede divino, a se arrastar pelo cheiro de gasolina através dos carros e dos passantes indiferentes e da mó do tempo, até sumir nas névoas da fímbria da memória e só nos deixar o lamento desfiado de um uivo, o eco da carne funda e cega e triste sob o plenilúnio

 

 

 

 

 

 

oroboro

 

 

o moinho roda, lento, largo, roda, vibra, rumina seres e sonhos, olhos emergem e somem como cintilações de escamas em movimento centrífugo, roda o carrossel de rostos, despetala pestanas, risos, iras, razões, roda o caleidoscópio da carne sob a roda maior dos astros, que emergem e somem como cintilações de escamas em movimento centrífugo, gira o imperioso réptil, sibila, crepita, engole, cospe paixões, poderes, poemas, punhais, esgarça verbos, a serpe de espectros, você, eu, no bojo desse medonho monjolo, no cerne incerto do oroboro, você e eu nos vimos, ventava dentro de nós, era uma noite carregada de ausências, ventava pela gente afora, você e eu, dois vultos sob a brasa do destino, tão aborrecidos de tudo, tão tontos de tudo, nos vimos através da treva, houve um sigilo de luzes, antes de nós os braços se abriram, antes de nós os lábios se distenderam, se contraíram, dissolvendo as palavras de espuma, e nos amamos nos banheiros sujos dos bares, nos terraços aéreos, e depois dormimos nus naquele quarto mínimo, humilde, houve um acordo de sonhos, a roda gemeu, se partiu, e a serpe entrou no quarto, deitou-se aos nossos pés, comungando nosso silêncio como um gato

 

 

 

 

 

 

a fábula do anão

 

 

eu não soube o que fazer com aquele fato – um corpo vazio – o invólucro do velho entre flores, círios e murmúrios – ancorado pela gravata, flutuava no meu não entendimento – a tia A disse que ele foi para o céu, a tia B que a vida era um piscar de olhos – alguém tossiu até raspar fundo o absurdo de sermos na sala – eu não fiz nada, fiquei a olhar meu irmão olhando para nenhum de nós em cada um, naquele espanto intolerável que o fez correr atrás das outras crianças – ele não suportou aquilo e desatou a viver – já eu não soube me desprender do vazio que manava do corpo aos borbotões, não soube o que fazer, resolvi levar o velho –

 

– levei o velho comigo, como um saco onde enfiar o sujeito se o encontrasse – arrastei mesmo o saco vida afora – enchi o saco com retalhos de lendas, fotos, mexericos, recordações inventadas – porque eu era muito novo e mal desiludido naquele tempo para deixá-lo ali, o corpo de que se evolou o pai – então envelheci como um anão diante do saco, vi o saco se abrir, depois crescer como um balão, confundir-se com o céu – hoje não sei se o que vejo lá em cima são estrelas ou furinhos no saco em que não coube o velho

 

 

 

 

 

 

ombro-umbra

 

 

me segue em silêncio, sorvendo sutil minha luz, lá vai ela à minha frente, logo ao meu lado, girando mesmo em torno de meu eixo malparado no tempo, e quando passo ao lado da estátua de dom pedro quarto, brinca de carniça com a sombra dele, um liame de espectros, mas não está presa como a outra ao ilusor falo pétreo da história, já arrasta o felino velame pelas paredes do rossio, pelas calçadas repisadas por séculos e séculos de espocar da carne, igualzinha às outras, liquidamente levadas para o aqueronte por suas amigas fiéis,

ao contrário do que pensa a físicaacisíf a asnep euq od oirártnoc oa

não, não somem com a matéria desfeita, em vez se expandem, vencem, vide a sombra do meu avô leon a repintar a cerca na dupla espiral para futuro e treva –

são pacientes, vão do ponto projetado pelo sol a pino nos miolos do infante ao manto reverso de velhíssimas dores, não lhes importa quem seja, eu, aquela mendiga lá sumida em trapos sumérios ou fernando pessoa, que andava por aqui infinitamente provisório,

 

stat magni nominis umbra*, diz o cão que mija no cais

 

*Lucano, "Farsália".

 

 

 

 

 

 

o Grito

 

 

estranho animal de estimação, esse, enrolado ao teu pescoço como corda de enforcado, os pequenos cascos parecem brotar do teu peito, estranho e familiar, quem sabe é aquele mesmo animalzinho da infância embotado pelos anos, às vezes infla-se, eriça-se, alguém pensaria que vai saltar, mas não salta nunca, o parasita, a sorver tuas emoções contidas, a roer tua língua pensa, veja como olha contigo a mulher vazada na ideia de amor, repara como procura também as chaves pela casa num medo atrasado de velhas portas e caminhos, o animal mítico, a olhar o bico do teu sapato quando apagas o cigarro nas calçadas polidas pela falta, tua, alheia, é ele, o infeliz, grudado em ti no espelho quando o elevador sobe e desce sem diferença sensível, sem saída efetiva para o mecanismo todo, estremece contigo quando ouves o sino tibetano de mais uma mensagem urgente, aguarda solidário o sinal abrir (e são dez os dedos que tamborilam no volante), pelo menos tens companhia, alguém vigia a senha contigo nas sucessivas salas de espera, alguém te ouve dizer que os idiotas dominaram o país, ou que num plano mais amplo todos os planos são pequenos, enfim, é preciso levar pão para casa, amigo, é preciso buscar as crianças na escola, o amor não pousará no teu ombro implume, o pré-molar está solto, a arte não basta, a paz não chega, mas ele está ali, o Grito, padecendo em uníssono as tuas tristes virtudes, cuida dele, alimenta-o com lascas do coração, deixa que beba a água turva do ventre, pensa bem, pelo menos ainda tens o bicho na garganta, sem ele é que estarias mesmo ferrado, amigo, aí sim estarias morto, um juan preciado pelos ecos de comala, um virgílio a tirar selfies com turistas no inferno, pelo menos tens a ele, acaricia-o, dorme com ele, depois solta-o, liberta-o nos campos do sonho, deixa que ecoe nos campos do sonho

 

 

 

 

 

 

fiat lux

 

 

precisavam de luz, abriram os diques, é por isso que você ouve agora o rugido, o morro já se esboroa, árvores já se dobram, pedras já rolam pelas encostas, logo chegarão aqui, as águas, primeiro estenderão espelhos para o nosso assombro, depois entrarão pelas portas tocando os dedos frios em nossa intimidade rançosa, e avançarão casa adentro e acima, nossos humores dispersos flutuarão junto a vassouras, documentos, fotos, garrafas vazias, bilhetes de amor vencido, brinquedos e livros andarão à deriva, as cadeiras entornadas comporão auditórios estranhos para o deslize dessa anaconda líquida, dos telhados musgosos veremos um cortejo desordenado de falanges, úmeros, mandíbulas, tíbias e costelas dos mortos libertos da terra, então cairemos como plumas no poço do passado, engolidos pela massa doce da memória submersa, porque eles precisavam de luz

 

 

 

 

 

 

flâmea

 

 

à beira do abismo, ela olha lá em baixo a língua saburrosa das vagas, as espumas que saltam da mandíbula de pedra, oscila, não oscila, não sei, ¿qué está haciendo esa mujer?, diz o velho de boné, varado pelo esgotamento latente do sentido possível de tudo, o sol em declínio já quer elidir o vulto da mulher, chamusca no vestido que esvoaça, não sei, digo sem ar, adensa-se o negrume da silhueta contra o vidrilho do mar, quem sabe ela vai tirar uma foto, quem sabe lançar-se para fora de toda cena, fico suspenso da mulher suspensa, a foto ou o ícaro de saias pandas, para onde vai, de onde veio, oscila, não oscila, sou eu que tremo talvez diante do subsumido passo para o nada, dela, meu, da espécie, um menino vai ao encontro da fêmea, da flama, não sabe, flâmea!, grita, mas eu não ouço, nem ela, flâmea!, o menino anda como astronauta pelas pedras de um mundo ambíguo, não faça isso, ophelia, não faça isso, digo, não dissolva nas águas o laço do nosso ramalhete de incertezas, repara, a mandíbula pronuncia vagas, rumina pó de estrelas, cospe gaivotas, peixes, sóis que se afogam e eclodem, naus e numes, são até belas as grosseiras paixões que a treva açula*, o menino grita, a mulher agora se vira, dá dois passos firmes em direção ao tempo, agarra o menino para que não se precipitem os dois num abismo só dela, é o que parece, não sei, não sei, ao que parece estamos salvos – que ninguém nos acuse, com tão líquida recusa, de não largar o osso

 

*Olavo Bilac, "Pesadelo"

 

 

 

 

 

 

notícia

 

 

a poeta foi encontrada desaparecida no sofá da sala, afirmou o oficial, restavam ali apenas seu corpo, sentado como num ônibus, e sua velha casa, silenciosos, bem arrumados, muito limpos, relatou o oficial, que encontrou também a mesa posta para duas pessoas e, na bolsinha da poeta, um bilhete escrito em papel de pão: soltei os pássaros, se quiser, leve a gaiola

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Marcos Pamplona (Curitiba, 1964) é escritor e editor. Publicou transverso (2016) e Ninguém nos salvará de nós (2021), ambos pela Kotter Editorial. Escreve crônicas regularmente para o Jornal Plural. Desde 2019 vive em Lisboa.

 

 

::  revista  ::  uns  ::  outros   ::  poucos  ::  raros  ::  eróticos&pornográficos  ::  links  ::  blog  ::