ENTREGA



Chego a ti impenetrada

Nos vãos de um desejo antigo.

Ao teu olhar, ele reclama,

Flagrando, no peito, a flama

Que verdeja labirintos.


Não venho à revelia.

Somente eu, entre tantas,

Surpreendo a eternidade

Em tua armadura de musgo.


Ao inflamar-te por trás

Com a língua impura,

Venho certa da conquista.

Não é o tempo que me elabora,

Sou eu que invento minha própria tessitura

Na aurora de versos

Inconfessáveis.







POESIA FEMINISTA



Com o rosto no chão,

Sussurrar os segredos desse silêncio

imposto.

Fazer do infinito papel

Destino, útero, grito.

E com a glote apertada,

Arriscando rouquidão,

Entregar, na tosse seca,

O eco:

Não.


Se o outro nos louva o silêncio,

Se não aventa o vasto em nós,

Com bordado cor de sangue,

Faremos coletivo casco

renovado voz a voz.


No inverso da serventia

Fica o norte:

Ainda que fale de amor

Poesia é fio de corte.







ITACUNHÃ

(Mulher de Pedra)



Vargem Grande, o lugarzinho.

Ninguém nem sabe.

A casa que tínhamos,

com rio na frente e segredos de bosque,

é onde habita com mais nitidez a minha infância

(ao menos a que suponho ter vivido).

Foi vendida há vinte anos, mas tem larga aparição

em meus sonhos:

os bons e, sobretudo, os piores.

A casa abarca outros espaços,

como o antigo quintal da minha avó no Riachuelo,

subúrbio carioca.

Para se ver o tamanho:

nela, cabe o relevo de um primeiro amor

desfeito.

Cabem maldades alheias.

Cabe até saudade.

Na ebulição,

a casa contorce futuro e passado

— mais do que devia.

Onde cabe assentar:

resto-me,

fumaça indecifrável.

Vargem Grande é demasiado

eu mesma.







QUEBRA



Meu caminho em direção a ti

É passo que atrai o detrás.

Finalmente reconheço teu cheiro esfumaçado.

O mesmo de quando me pegaste no colo,

adolescentes.

Não tem nitidez, esse gozo de agora.

Não tem saudade.

É só o susto com as badaladas da igreja…

Elas refulgem alto, atordoa mesmo.

Na falta de estofo, não é sobre nós.

É sobre mim ao teu lado.

Esse meu gemido alto, a insolência,

tudo escapa a dedos sem asa.

Quando me tocas entre as pernas,

o que alcanças é:

pernas, o macio.

Não vês o quanto abarca

a derrama desse pulso.

Não percebes, na veemência de uma veia azul,

a cepa vitalícia de imensidão.


Velar-te o sono permite voltar

À poesia,

Aos afincos de solo.

É só um requebro, repito.

Em vão.

Porque sei: esse caminho é veio de terra.

Suave feito memória.

Sem

fim.







COVID-19



Viver no corpo a saga desse vírus

esganiça um estrondo tom.

Em minha pele, o tecido da humanidade

inteira

rompido por governantes

que açoitam cadáveres.


Um corpo — frágil palco de assombros —

vergará sozinho esse inverno?

Com perdão da esperança,

por quem dobram as brasileiras almas?







PORÕES



Nos quantos da quarentena, estamos irmanados por esse nó na garganta.

A resguardar resistência,

me alvéolo nas cavidades

da poesia.

E ela me salva

em sua cela de mel.

Ela sempre salva,

arregaçada

sob os véus da covardia.







MATRIARCAS



As avós áridas, com suas caras de chão. Minhas desavós e o afeto

raspa de prato,

sem abraço ou palavra.

Foi o que puderam, no feminino deserto. De tempos em tempos, mandavam-me potes gordinhos de goiabada,

meu doce preferido.

As avós surdas, com suas dicas de submissão e estupro marital:

amassados mapas de proteção.

Mantiveram-se lúcidas até o fim, em pleno labirinto.

Da bisavó materna, lembro uma única cena: não há rosto, mas

longuíssimos e brancos cabelos,

penteados à exaustão.

Eram cordas de amor-próprio,

cultivadas sem pressa nem alarde.

A muda resistência.

Foi uma anti-Maria, a bisavó Marieta.

É ela, a matriarca que crispa no meu nevoeiro esfogueada em si mesma,

com seus cabelos imortais.







CEDO



Acordar com você é suave. Sentir sua pele como um assoalho, incerto entre cera e solidez. Nas cavas do meu sentimento, fico querendo você para sempre. O acerto da manhã ganha intenção de tarde. Não há um galo que ouse cantar.







SOBRECARGA



O poema é poroso.

Por isso, suporta

o alvoroço da dor.

Vejo mulheres curvadas

além da justa medida.

Mulheres e seus filhos

sem o gume do pai na partilha dos pratos

do colo

da clave.

A sujeira da casa é com ela

A insônia da casa é com ela

O amparo é com

ela.

Em dias de chuva, sua fibra converge em poça.

Ela se esvai.

Mas ganha elogios e tapinhas no couro gasto

pela negligência masculina.

É um açoite milenar

sobre ela.

Quanto mais?







ESPELHO



Eu me rendo por nada. Qualquer cisco de tristeza já me tira a compostura. Mesmo distraída, prendo o arrepio do que está ao lado — meu estreito desamparo. Por ofício, quebro palavras. Sou tênue de abismos. Nada me livra.







DESENCONTRO



Sexo raso é de papel,

fácil flameja.

Tenho o seguinte lastro:

só me seduz a seda de alegrias intangíveis.

É que, sendo mulher,

meus medos carecem de pasto.

Por isso, lhe peço, só se aproxime

desenfreado,

segredos em riste, no encalço da entrega.

Querendo, pode até cantar.

Sem encolher as palavras,

aí sim,

sua voz navega algarves em mim.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Lucelena Ferreira, escritora e poeta carioca, lançou, em janeiro de 2022, o livro de poemas Fio de Corte (Ed. 7Letras), em parceria com Ilana Eleá e Angela Brandão. A crítica literária Heloísa Buarque de Hollanda assina o texto de abertura. O livro traz uma experiência inédita de escrita a seis mãos, a partir do diálogo poético entre as autoras. Inquietudes (Ed. 7Letras), seu primeiro livro de poesia, foi bem recebido por nomes como Adélia Prado e Manoel de Barros. É doutora em Educação e doutora em Letras pela PUC-Rio e pela École des Hautes Études en Sciences Sociales - Paris. Foi pesquisadora da Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio. É autora premiada pela Fundação do Livro Infantil e Juvenil na categoria "livro teórico" com a obra Por que ler: perspectivas culturais para o ensino da leitura. Em maio de 2022, lança Bela e o Balé, livro infantil escrito com sua filha Bela e ilustrado por Theo e Anderson Tibau.

 

 

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