"A vida esteve aqui, antes da sombra"
Carmen Moreno

Em pleno século XXI, não existem mais amarras à mulher. Mas liberdade tão propalada e sonhada ainda necessita de sair do papel com proteção à mulher, no que tange à liberdade do corpo, ao sexo e à criação artística. Na literatura nacional, Carmen Moreno é este nome que representa a voz feminina, a luz das palavras.

Carmen Moreno sabe, como ninguém, escrever versos fortes e contundentes, capazes de mergulhar na psique humana. Assim é esta carioca, sobre a qual a jornalista e escritora Cecília Costa disse, no prefácio ao livro Sobre o amor e outras traições, 1ª edição (São Paulo: Editora Patuá 2021), que se trata de uma gigante, seja pelos livros já publicados, seja pela delicadeza nas declamações que realiza, nos palcos dos saraus de poesia. Complementou:

"(...) a poeta carioca, pelo que se depreende de seus poemas, enfrenta a vida de peito aberto", p. 10.

"Carmen nada tem, na realidade, de pombo, pardal ou rolinha. Muito pelo contrário, cruza livre o horizonte, relampeja e nos faz ouvir sua voz sanguínea de trovão." p. 15.

Na orelha ao livro, Constância Lima Duarte, Doutora em Literatura Brasileira (USP) e professora da UFMG, Pós-doutorado na (UFSC/UFRJ) exalta a importância de Carmen Moreno na literatura de autoria feminina, com contribuição significativa para esta renovação.

Sobre o livro, Constância cita três linhas mestras: a sensualidade, o sensível trabalho vocabular e a militância, todas características da obra vigente.

Tanussi Cardoso, poeta, contista, crítico literário, letrista e jornalista assinou o prefácio do livro, intitulando-o de "O amor como traição ou superação ou As artes da paixão e da palavra".

E, aqui, uma digressão que acrescenta muito a quem conhece o prefaciador e a autora deste título, uma vez que Tanussi Cardoso e Carmen Moreno são irmãos. Os dois são intelectuais dos mais importantes do Brasil. Duas inteligências raras, cérebros privilegiados, escritores ímpares, além de humanos de nível.

No prefácio, Tanussi exalta o "auge da maturidade poética" de Carmen Moreno, "um dos mais belos nomes da literatura brasileira contemporânea", com "poemas dramáticos, românticos, líricos, eróticos, e sempre comoventes".

Segundo ele, trata-se de poesia questionadora, que não se conforma com o mundo, como ele é. Seja flor ou faca, a paixão de Carmen pela palavra é visível.

No capítulo I, "O fim", que contém a maior parte dos poemas, há a presença de um eu lírico feminino dilacerado com a dor, a separação da mulher amada e a descoberta da solidão, tudo cercado de lirismo afiado e contundente.

Sobre os títulos dos poemas, é interessante notar a presença maciça de substantivos, em consonância com o título da obra. Por isso, há poemas que contêm vocábulos pertencentes ao campo semântico do livro: "mentira", "máscaras", "separação", "angústia", "pós-angústia", "tristeza," entre outros.

À guisa de ilustração do trabalho poético em voga, há toda uma seleção vocabular marcada para a composição da atmosfera de cada poema. Some-se a isso a imagética é reforçada com diversas figuras de linguagem, a saber: metáforas, prosopopeias, metonímias, assonâncias, hipérboles, anáforas, aliterações, entre outras, afinal há de tudo na poesia de Carmen Moreno. Os versos "A verdade é líquida / escorre pelas fendas das fachadas. / Nada detém seu córrego lento (...)", no poema "Máscaras ao chão", p. 49, ratificam tal tese, assim como "O amor não sofre. / Umedece a pena para assinar o desenlace", em "Divórcio", p. 53, isto para ficar com apenas estes exemplos.

Em "Morte e vida", p. 41, "O amor morre todo dia,/ na comunhão ácida das salivas,/ no silêncio eloquente dos corpos,/ na saturação dos sons,/ na separação das sílabas". Esperar a próxima traição é um fardo, mas consciente. A leitura de "Da traição ou sobre o perdão" e "Da traição II", pp. 42 e 43, revela que há um eu lírico consciente ao dizer: "Espero a próxima dor quase pronta. / Feito o amanhã, o cartão de ponto,/ o pão inequívoco".

"Mácula", p. 44, apresenta dúvida sobre como o eu lírico e a amada lidarão com uma terceira mulher envolvida no relacionamento delas, isto ao assegurar: "Agora somos três", mas, ao final, o espanto: "E, na entrega do amor, dentro de mim sempre haverá / outra mulher, além de nós, a sussurrar".

A dissolução de uma relação mal resolvida é exposta de forma metaforicamente bela em "Fumaça", p. 45: "Quando o amor morreu foi só uma dor a mais. / Já corria pela casa um cheiro de corpo apodrecido: a carne da alma desintegrando-se, / na cama do quarto, / entre dois travesseiros".

"O último dia", p. 46, é um texto impactante, que começa com versos ferinos: " Na tarde em que te matei, / tuas pernas sossegaram fácil no soalho. / Estrangular-te não foi nada". Nota-se que o fim do relacionamento representa que era preciso ir além do simples separar de corpos. A morte da amada foi desejada pelo eu lírico, "sem remorsos nas mãos", pois era preciso não pedir "a benção das manhãs" no túmulo da falecida.

"Depois do fim", p. 47, é um poema que chama atenção com o verso "Quando eu morri", o mesmo que abre um poema emblemático e um dos famosos poemas de Tanussi Cardoso, irmão de Carmen Moreno. E aqui uma nota, pois os dois são poetas, contistas e intelectuais de primeira grandeza, como já afirmado.

Sobre o texto de Tanussi, o eu lírico diz: "sei não/ acho que só vou morrer depois de mim". Já no texto de Carmen, o eu lírico morre mas "sem alarde nas janelas" e "(...) só Deus provou a dor plena,/ seu lirismo drástico, intransferível, inadiável" com aquela partida.

No texto "Separação", p. 52, ao tratar sobre a temática do fim do relacionamento, trechos ou versos que reforçam a distância entre as mulheres que, um dia, foram namoradas: "cama aparentemente vazia", "a morte sobre a colcha de casal estendida", "quarto intacto"," janela trancada", "Ninguém mais mora no quarto", entre outras passagens.

Versos como "A casa, edificada de afeto,/ é partilha entre íntimos (estranhos),/ no inventário do concreto", presentes em "Partilha", p. 54, reforçam mudanças provocadas pela separação.

"Estrangeiros", p. 55, mostra mais outro olhar sobre a separação, porque, ao término do relacionamento, "(...) Partem as pessoas, sonhos diluídos por danos: / indignada, indignado, indiferentes, ingratas, partem,/ cada qual com sua malinha de mágoas".

Interessante notar como três poemas seguidos foram abertos com prosopopeias de alto impacto.

Se "O amor morto fissura a lápide da mágoa", p. 56, não há dúvidas de que o eu lírico vive um luto profundo, porque "O amor azedou o pão do sonho", p. 57, em "Sobre o pecado" e "O amor findou a fórceps", p. 58, em "Sentença". Ao fim deste último, versos contundentes e ferinos fazem jus ao título: "Deus bateu o martelo da libertação / encerrando o enredo da traição".

Quando o eu lírico escreve "Não tenho âncora no passado / nem como pão requentado na mesa do amanhã", revela certo desprezo pelo já vivido e, certo de querer mais, sabe que "O tempo lava os ponteiros dos segundos", em "O tempo do amor", p. 61.

No capítulo II, "Mudança de pele", há a fase da regeneração. Nela, há o poema de abertura, "Crença", p. 67, "Arriscar é ser mais que o medo / O medo é a coragem de costas".

Aqui, o eu lírico já começa a compreender que as mudanças são necessárias, que um relacionamento tóxico não vale a pena. Por isso, há certo comedimento nos poemas, que não são tão ácidos quanto os da primeira parte.

Em "Ensaio sobre as manhãs", p. 70, "A porta do fim dá num beco inusitado,/ repleto de recomeços/ (...) / O certo é que nunca se sabe o que a manhã assina: / e a sorte é o não saber!". Vê-se que, após a aceitação do estado natural das coisas, há certa calmaria no eu lírico, que se ajusta para o amanhã.

A começar pelo título, "Novo endereço", p. 73, traduz que "A vida não me descansa. / Deus é um ser cheio de novidades!", ao final do poema, o eu lírico já consegue se espreguiçar na cama de casal. Não há mais frustração por não ter de dividi-la com a pessoa amada. A dor transmuta-se em conformidade.

O verso "podar-se para florescer" encerra o belo poema "Da casa", p. 76, no qual fica evidente a reconstrução do ser para, em um futuro próximo, ter outras experiências. E não bastasse a presença do fonema bilabial /p/, caracterizando aliterações, há ainda: "rasurar", "retoques", "pertencer", "para", "poder", "paredes", "perder". Jogos de palavras como "ascender" e "acender" despontam, rebelando todo um trabalho de seleção vocabular na carpintaria verbal de Carmen Moreno.

O cotidiano surge no livro com "Náusea", p. 78, no qual o eu lírico demonstra certo mal-estar no domingo, porque "Passos esparsos distraem a solidão das calçadas./ Tevês idiotizam bares, casas, quartos de hospitais./ O futebol traz da infância / a melancolia dos rádios de pilha. / O domingo é uma agonia".

"Angústia" e "Pós-angústia", páginas 80 e 81, evocam a consciência de que havia vida antes de separação. O verso "A vida esteve aqui, antes da sombra", associa o substantivo final a algo negativo. Todavia, os versos finais do segundo poema ratificam que, após voltar para si, o eu lírico tem condições de "Esbarrar em si, sem se tocar, desprender-se do miolo,/ descaroçar-se".

São comoventes os poemas "Susto I" e "Susto II", páginas 83 e 84, por serem homenagens póstumas. O primeiro a Dalmo Saraiva, multiartista que combinava a poesia, o folclore, a mímica e a dança nos palcos. Já o segundo texto é para um jovem não identificado, mas cuja vida fora ceifada tragicamente, por meio da violência.

Nesta mesma linha, "Paracambi", p. 87, é outro texto comovente, no qual o eu lírico sensibiliza o leitor, ao narrar o drama de uma irmã que faleceu enclausurada no Dr. Eiras. Tal lembrança é viva e "A irmã nunca morre", nem em pensamento.

"Poema para Irayde", p. 88, diz: "Ninguém se despede de uma irmã./ Não basta chorar / um mar inteiro".

O conjunto de poemas ("Quarentena", "Escritos da pandemia" e "O vírus ou relatos da clausura", páginas 91 a 95,) mostra que o eu lírico não ignorou o quadro vigente relativo à pandemia da Covid-19 no Brasil. A literatura foi, portanto, a saída em meio à reclusão involuntária, pois o pedido era: "Não quero que me roubem mais os meus".

No capítulo III, "Incêndios", aparece um eu lírico pronto para a reconstrução. Depois de ferido e magoado, há o espaço para se reerguer. Se em "Genética", p.  107, "Desafeto não me afana o amor — minha feição. / Expurgo seus danos no engano de nova paixão"; em "Desejo", e "Adivinhação", páginas 108 e 109, respectivamente, há a vontade de estar com essa mulher, mas cuja existência ainda não se fez presente na vida do eu lírico.

Se "Amar é sempre um fim, desde o início.", "Poema para o próximo amor", p. 111, "Os nomes se perderão dos seus significados, / o mundo será pano de fundo, / e o coração fará sentido.", no poema, "Domingo", p. 110.

Extremamente consciente de que nova relação pode lhe trazer agruras, embora não queira isso, mas sim a felicidade de amar e de ser amada, "Já sei sofrer, perder o prumo e morrer, / sangrar e reviver, pela mão do verso", no "Convite", p. 112.

No capítulo IV, "O amor (que não traiu)", dedicado à memória materna de Carmen Castilho Cardoso, o sentimento aparece de forma mais pura e verdadeira, afinal o amor materno é verdadeiro e sem traições, mas, fora dele, sempre haverá enganos e frustrações.

Aqui, a leitura dos poemas revela um filme na mente do leitor. E mesmo que cada texto seja único, com início, meio e fim, a composição deles em sequência retrata a série do amor da filha para com a mãe, a doença e a morte. E ainda que haja o fim, o sentimento mais puro do mundo irá além da finitude. Seguirá ad eternum. Em "Fábula da filha que virou mãe", p. 119, já experiente na vida, a filha cuida da genitora e, apesar de a morte ser "(...) sempre súbita, por mais que bafeje no cangote dos relógios", "A mãe nunca partirá, costurada que está na alma da menina".

Em "CTI", p. 120, o eu lírico sofre, pois "a dor é um bicho gigante". A seguir, o primeiro verso de "Sempre-viva" revela a única certeza da existência humana, quando o eu lírico extravasa: "Amanheci sem mãe". Bastaria este verso para traduzir a perda, mas o poema se alarga e chega até o colo de Deus, como um misto de tristeza, dor e aceitação do fim. Versos antológicos coroam o encerramento do poema, com jogo rítmico, mesmo em momento difícil: "O cordão fluídico se rompeu/ Seu espirito, na asa do Arcanjo, alça o voo do retorno./ A mãe de volta aos seus./ A mãe no ventre de Deus".

Há uma "Herança", p. 122, porque "A mãe está aqui./ Transcende o porta-retratos", já que "Trago minha mãe (do berço ao túmulo)/ dentro do peito.", em "Aniversário", p. 126. A leitura de "Foto da infância I ou inspiração" e "Foto da infância II ou quase um lamento", páginas 124 e 125, traz à memória o poema "Solar", da mineira Adélia Prado: "Minha mãe cozinhava exatamente/ arroz, feijão-roxinho,/ molho de batatinhas./ Mas cantava". Tanto em Adélia quanto em Carmen Moreno há a figura materna que canta, apesar dos afazeres domésticos na cozinha. É uma imagem bela e simples, encantadora também.

Com aliterações e jogo sonoro, a concisão vocabular está em "Rima", p. 129, "Nosso amor, mãe, viga. / Encaixe, lego liga".

Já no capítulo V, "Outras traições", a poesia de Carmen Moreno é um grito contra a hipocrisia social, o feminicídio, a homofobia, o racismo, as agressões sofridas pelas mulheres, o desrespeito masculino ao corpo feminino, ou seja, as traições mostram-se presentes. Há seis fortes poemas, nos quais estes temas preponderam, com textos alusivos à vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco, assassinada em uma emboscada, em 14 de março de 2018, e à figura de Maria da Penha, mulher que sofreu violência doméstica na pele e lutou pela condenação do agressor. Um exemplo na luta pela igualdade que não foi em vão, pois, através dela, veio à luz uma lei protetiva a outras mulheres. Em suma, ler Carmen Moreno é fundamental para compreender como a poesia é importante para a construção de um mundo mais igualitário, com respeito às mulheres em todas as searas da vida.



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O livro: Carmen Moreno. Sobre o amor e outras traições.
São Paulo: Patuá, 2021, 167 págs., R$ 40,00
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março, 2022



Luiz Otávio Oliani cursou Letras e Direito. É professor e escritor. Em 2017, a convite de Mariza Sorriso, representou o Brasil no IV EPLP em Lisboa. Participa de mais de 200 livros coletivos. Consta em mais de 600 jornais, revistas e alternativos. Recebeu mais de 100 prêmios. Teve textos traduzidos para o inglês, francês, italiano, alemão, espanhol, holandês e chinês. Publicou 15 livros: 10 de poemas, três peças de teatro e os livros de contos A vida sem disfarces, Prêmio Nelson Rodrigues, UBE/RJ, 2019, e Ingênuos, Pueris e Tolinhos, 2021. Recebeu o título de "Melhor Autor Apperjiano 2019" pelo conjunto da obra. Em 2020, teve poema publicado nos Estados Unidos da América, na Carolina do Norte, em Chapel Hill, na coletânea internacional VII Heron Clan, a convite de Todd Irwin Marshall.

 

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