Muitos versos sem mim não poderão existir.


[…]

É absurdo achar mais realidade na lei que nas estrelas

Sou poeta irrevogavelmente.


[Murilo Mendes, in Os Quatro Elementos, 1935]



Poesia é expressão. Poesia é testemunho. Permitam-me repetir. Qualquer outra adjetivação é isso, adjetivação. Poesia não é um tipo, um método, ou uma mensagem. Poesia não é o sentimento, ou um desabafo, do/a poeta. A elaboração artística do sentimento, ou do desabafo, pode sim ser Poesia. Muita coisa que chamam de Poesia não é Poesia. Aliás, nem sei o que seja Poesia. Sei o que NÃO é Poesia.

O Poeta é levado, ou possuído, pelo fazer poético, a poiesis, e se deixa levar. Ele ou ela deve saber COMO elaborar, como veicular a expressão, como dar vazão ao sentimento, ou ao desabafo, sem ser isso apenas: sentimento ou desabafo. Suas lembranças, seus testemunhos, seus devaneios fazem parte de uma enorme colcha-de-retalhos, um puzzle, um mosaico de percepções que são peculiares a uma consciência individual. Ter estilo é isso: a marca, o selo, o carimbo do/a Poeta.

Em Água Preta, o 'baianeiro' Almir Zarfeg, nascido Gilmar, assim o faz. Sua dicção busca originalidade ao narrar suas lembranças de infância, na interiorana Itanhém, antiga Água Preta, no sul da Bahia, às margens do rio Água Preta. Publicado em 1991, assim sendo primeira obra do autor, e reeditada em efemérides marcantes, Água Preta é uma amostra de work in progress (assim como o Selva Selvaggia, do poeta mineiro Ronaldo Werneck, como já abordei em 2011)1 quando um autor reescreve e amplia a obra ao longo da carreira.

Assim como Ronaldo Werneck canta e encanta sua terra Cataguases, no sudeste de Minas Gerais, o 'baianeiro' Almir Zarfeg canta e encanta sua terra Água Preta, ou Itanhém, lugar de plena 'geografia sentimental', como dizia Pedro Nava2, onde sua voz individual se revela também coletiva, como relato de época, como testemunho de infância. Assim, vários leitores e leitoras podem se encontrar, se identificando com a voz lírica.

Seu material de trabalho, sua matéria-prima, é farto, é maleável, é basilar, pois basta ao Poeta adentrar-se, mergulhar nas camadas do passado, escavando cenas da criança nas ruas cheias de lama, jogando bolinha de gude,


Enquanto os pivetes adestravam suas bolinhas de

gude a rua apontava suas retas para lugar nenhum;

[…]

Por que a rua virava mar de lama fazenda montanha

lagoa sapos e pererecas?


"A Rua" [p. 46]


O mundo da infância é ressignificado e elevado a uma maravilha. Sua terra é maravilhosa, com o verniz da lembrança e do 'tempo perdido'. “A ponte do rio da Ferrugem / É uma das nossas sete maravilhas /…/ A ponte do rio que não cai / Só não resiste ao óxido do Tempo” ["A ponte do rio que não cai", p. 74] numa paródia com um famoso filme sobre a guerra [A ponte do Rio Kwai3]. A terra da infância é povoada com maravilhas, verdadeiras 'sete maravilhas', o rio, a cachoeira, a ponte, a ladeira, a paróquia, o estádio.

Geografia sentimental igual àquela de Carlos Drummond de Andrade em "Cidadezinha Qualquer", com os caricatos traços da vida cotidiana na província, Um homem vai devagar. Um burro vai devagar. Eta vida besta, meu Deus, é o que encontramos nos poemas "Cidadezinha Triste" [p. 28] e "Cidadezinha Especial" [p. 48], que retratam afetuosamente o espaço da infância, Era uma cidadezinha / Bucólica quase feliz…. Era uma cidadezinha / Impressionante e dançante [pp. 48-49]

É um diálogo intertextual com Carlos Drummond, e também com João Cabral de melo Neto, com destaques para "Catando pedras no caminho" [p. 21], "Itinerário de Água Preta" [p. 66], "Aguapretices" [p. 99]



Existe arte mais digna do

Que catar, lapidar pedra?

Contudo alguns preferem

Defenestrar pecuaristas

Captar silvos de cobras

Domesticar marimbondos

Profetizar em via pública

[…]


Você se fez pedra, lenda viva

Ausência-lembrança-presença

O coração ainda pulsa, sabia?

A ponto de explodir vermelho

Inundando a várzea baianeira

O coração, que não é de pedra,

Se espraia no poema, encantado.

O que persiste no caminho —

A medrar entre ervas daninhas

E pedros — é vida, é rebeldia.


["Catando pedras no caminho", pp. 22-23]



Contudo, seu diálogo é mais que textual, pois é temporal, esforço de 'viagem no tempo', entre um eu-de-hoje e um eu-de-ontem, com o menino que existe dentro do homem, como ouvimos em "Bola de meia, Bola de gude", de Milton Nascimento, "Há um menino, há um moleque / Morando sempre no meu coração4”, ao reviver carinhosamente o mundo de outrora, com a perspectiva da infância,



Nessa rua passava boi boiada a despeito d'estarmos às

porteiras da modernidade;


Calçamento cimento progresso pregões e promessas

vãs que se perderam no tempo;


[…]


Todo menino é um rei eu também já fui rei pero nunca

vi rei nu na lua muito menos na rua;


[…]


Já estive no olho da rua e sei, meu senhor, do que se

trata, também sei que, como células de que são

constituídas as cidades, as ruas foram inventadas para

cumprir uma função social relevante, qual seja,

promover a vida do homem em sociedade, suscitando

nele o espírito gregário / solidário, o bem comum, de

maneira que um ajudasse o outro e todos se

ajudassem mutuamente, o que nem sempre é

verdade, […]



["A Rua", p. 46]



Mais geografia sentimental e intertextualidade em seu "Itinerário de Água Preta" [pp. 66-68], longo, denso, original, entre poético e prosaico, com alternâncias entre as perspectivas individuais e coletivas, de acordo com as percepções do ser 'pessoa' e do ser 'cidadão', do ser 'provinciano', do ser 'cosmopolita', do ser 'cotidiano' e do ser 'leitor', com suas citações, referências e estrangeirismos, no que sobra até para um irônico Stanislaw Ponte Preta5,



Água-pretense apreciava leite de vaca preta, amásia do boi

da cara preta, fã de Stanislaw Ponte Preta, que

espalhou a lenda de que — incrível — se extrai leite de

pedra oca! [ p. 66]



sem poupar ironia com os que buscam oportunidade nos Estados Unidos, no mercado de trabalho da potência, muitas vezes entrando até ilegalmente, no que se submete à exploração, sem aculturamento, e capaz até de ser repatriado,



Água-pretense dá um duro nos States mas, nas horas

vagas, rima 'so far away' com 'Meu rei' nos bares da

vida. [p. 66] 


Água-pretense voltou dos States mais monoglota

do que quando partira e, abestalhado, não se cansa de

repetir: vida longa aos bem-te-vis, morte súbita aos

bois! [p. 68]



Buscar o menino dentro do homem, o moleque dentro do cidadão, ou buscar o coletivo, o produto da socialização, dentro do indivíduo, a pessoa, o que faz um água-pretense ser um água-pretense, ou itanheense, ou o que um nativo de Água Preta tem de singular, folclórico, seja em fala ou sotaque ou gíria, com seus ditos e provérbios, com suas cantigas, e ladainhas, e mais referências, no que sobra até para o pensador Pascal6,



O que seria de pascal

sem o silêncio?

O que seria do silêncio

sem o ouro

os óculos

os pingos nos ii?


["Aguapretices", p.100]



Entre ipê e girassol, cultive o amarelo

Entre início e fim, invista no equilíbrio

Entre dia e noite, marque um encontro

Entre ser e estar: deixe star com leveza

Entre fusca e kombi — vá de carona

Entre amar e amarelar, não pense duas x

Entre ouro e prata: varal de poesias


["Aguapretices", p.103]



Sua busca pelo individual, pelo peculiar, pela identidade de ser poeta e ser cidadão, ser ele-mesmo e água-pretense, revela-se um questionar existencial de auto-descoberta, ou de superação do auto-engano, a demonstrar a profundidade que pode — e poderá — alcançar o autor em outras obras,



Por que sair

De mim se a cada

Vão momento

Eu me descubro

Mais e mais?

Para que me

Ocultar nas tuas

Águas pretas se

Consigo me ver

Além de minha

Silhueta triste?


["Existência", p. 20]



A preocupação com a existência e a identidade abrange toda a obra Água Preta, primeira de uma longa carreira, ao longo de três décadas, dedicada a encontrar um estilo e uma marca, sempre work in progress, nutrindo-se de si mesmo, das várias personas, ou máscaras, de si mesmo, seja criança, seja cidadão, seja itanheense, seja 'baianeiro', seja poeta, seja Almir Zarfeg, ser dividido entre idades e geografias,



Quantas vidas — me digam — alguém poderá viver

nesta vida?

Quantas vidas o artista — tão singular e plural — é capaz

de viver ao mesmo tempo?

Quantas personas — representadas — nos palcos da

existência?




["Políbios", p. 57]



Notas



1 Link para ensaio sobre Selva Selvaggia [1976; 2005] de Ronaldo Werneck. Disponível em <http://leoleituraescrita.blogspot.com/2011/08/sobre-selva-selvaggia-de-ronaldo.html>


2 Pedro Nava [MG, 1903 - RJ, 1984] é autor de obras de cunho memorialista, com destaque para Baú de Ossos [1972], Chão de Ferro [1976] e Beira-Mar [1978], com um retrato de geração, um testemunho da fase modernista em Belo Horizonte. Sua 'geografia sentimental' carregava o espaço com afeto, ressignificando, ou revivendo, seu passado como uma elaboração estética. Assim como descobrimos Paris, ou O caminho de Guermantes, de Marcel Proust [França, 1871-1922], em sua magistral obra Em Busca do Tempo Perdido [1913-1927].


3 O filme de 1957, A Ponte do Rio Kwai, do diretor britânico David Lean, tematiza a guerra nas selvas do sudeste asiático com tons cômicos. Disponível em <https://www.imdb.com/title/tt0050212/>


4 "Bola de meia, Bola de gude", canção de Milton Nascimento, em seu álbum Miltons, de 1988/89.


5 Stanislaw Ponte Preta é o pseudônimo do jornalista e humorista Sérgio Porto [RJ, 1923-1968]


6 Blaise Pascal [1623-1662] foi filósofo, teólogo e matemático francês, famoso por seu aforisma, "O silêncio eterno desses espaços infinitos me assusta”.



Referências



ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia Poética. Record, 2009.

MENDES, Murilo. Poesia Completa e Prosa. Volume I. Rio de janeiro: Nova Aguilar, 1997.

ZARFEG, Almir. Água Preta. 5ª ed. São Paulo: Lura Editorial, 2021.



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São Paulo: Lura Editorial, 2021, 112 págs., R$ 29,90
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março, 2022



Leonardo de Magalhaens. Poeta, escritor, crítico literário. Bacharel em Letras / FALE / UFMG.

 

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