As redes sociais não expandiram apenas as opiniões, mas expuseram, sobretudo, as solidões. Tal expansão instrumentalizou a língua através de um novo vocabulário que, pouco a pouco, implodiu a utopia da comunicação universal. Essas são algumas hipóteses que se levadas por leituras unilaterais do mundo telemático perdem o horizonte ficcional que pode ser posto em prática a partir de amizades virtuais. Quanto mais nos afastamos dos anos dois mil, mais a sensação de distopia ganha forma através da mistura de esferas — pública e privada. Eis a porta de entrada do romance Laurette.

Natasha Lins criou uma conta no Facebook. Essa personalidade fake passou a exercer uma certa atração por outras e, dentro de pouco tempo, ela passou a contar com algumas amizades e ter algumas interações como aquelas com a encantadora Laurette. A conversa se situa no eixo São Paulo-Lisboa, que pouco a pouco modifica sua geografia ou, melhor, sua psico-geografia: Laurette é um português que pratica cross-dressing. Afirmar que esta prática seria se vestir de mulher através do transformismo seria resumir brutalmente um ritual que merece ser compreendido mais detalhadamente. Esse é o interesse de Lins, que, mesmo com receio, entra no universo de Laurette.

Uma aventura on-line tem muitas marcas, inclusive as patriarcais, pois, como escreve a autora: "o patriarcado deixou estranhas marcas em nós, mulheres, e não sem motivo" (...) "Eis aí a sombra do masculino no inconsciente feminino". A técnica narrativa em Laurette se desenvolve a partir da complexidade do sistema das redes para além de hashtags, trendy topics, linchamentos virtuais, dentre outras pulsões digitais. Tampouco o livro não se deixa dominar pela ensaística psicologizante que encontra uma explicação plausível em termos do comportamento e da psiquê. Na medida em que a autora as apresenta ela as abandona: "deixei Lacan, Freud, Melanie Klein, Winicott e Jung de lado". E, assim, somos conduzidos ao jardim das torturas. A narradora deixou o Brasil e uma relação que não lhe fazia bem, e mudou-se para Londres. Suas condições não eram de todo precárias e isso a permitiu aventurar-se pelos mistérios do desejo.

Em Londres, Torture Garden é o nome de um local onde os desejos sexuais são plasticamente expostos. Mais que um lugar do inconsciente ao céu aberto, é lá que ela descobre a polimorfia dos desejos, ao seguir com seu amigo Damian: "Quando chegamos ao TG, os fetiches polimorfos de Damian vieram rapidamente à tona. Certo é que eu me controlava, naquela primeira vez ali, para não olhar para tanta gente esquisita, casais de cat-suit de látex presos por coleira, gente de macacão Zentai, outras e outros vestidos de Lolita em roupinhas pink e trajes infantis — às vezes segurando um bichinho de pelúcia —, montes de peitos e bundas de fora ou semicobertas por tirinhas de couro e tachas, e minúsculos cobertores de mamilos".

 

 


[Natasha Lins]

 

 

Não à toa que ela associou aquele espetáculo a um carnaval mensal dos ingleses. Pois aquele "desfile" mostrava-lhe muito bem um tipo de imaginação posto em prática. Diante desse universo, a narradora lida com um repertório novo. Laurette encarna mais que uma curiosidade, mas a concretização de um uso do imaginário feminino: "O imaginário feminino de Laurette era restrito à submissão erótica piriguete perigosa, quase sempre com a bunda empinada de costas, mostrando suas belas pernas em meias sete oitavos sensuais". Assim, a dimensão virtual e íntima é posta à prova pelas visitas da narradora a outros espaços, o que implica em criar o seu próprio na literatura.

A ficção se move por topoi que vão além dos freak e dark de uma literatura que tem autores como Sade, Bataille ou Anaïs Nin e Cassandra Rios nas figuras de precursores. Laurette é uma dessas figuras ambíguas que cabe a cada leitora ou leitor conhecer. No jogo de gêneros, o próprio leitor pode entrar na rede semântica da linguagem crossdressing, pois Laurette é uma piriguete que não apenas se transveste, mas elastece a narrativa, empurrando cada vez mais os limites do que a narradora compartilha. Laurette existe sobretudo nesta obra, pois quanto mais a autora escreve mais ela produz reações químicas: "— Falo com a minha dona e fico empinadinha. É sinal de como eu gosto dela". A mistura de sintaxes na mesma zona linguística, produz fricções de desejos que se poderia muito bem chamá-los de contragolpes pós-coloniais. Mas isso em um primeiro momento, pois, a partir desse contragolpe de Natasha Lins, que o desejo entra no seu jogo metamórfico e encontra sempre uma personae diferente para continuar sua dinâmica. "Meses depois, conheci uma linda submissa num site de namoro. Chamava-se Chloe. Era doce e tímida (...). Tivemos um romance surreal, lindo, tóxico e penoso, quase psicodélico, que contarei em outro livro". Aguardaremos então o próximo livro de Natasha Lins. Enquanto isso, Laurette prova que nada deve ficar de fora da literatura.

 

 

__________________

 

O livro: Natasha Lins. Laurette.

São Paulo: Folhas de Relva, 2022, 106 págs., R$ 46,90

Clique aqui para comprar.

__________________

 

 

setembro, 2022

 

 

Natasha Lins é o pseudônimo de uma escritora e psicanalista brasileira que vive na Inglaterra. Laurette é seu romance de estreia (Folhas de Relva, 2022).

 

Mais Natasha Lins na Germina

> Poesia

 

 


 

 

Eduardo Jorge (Fortaleza, 1978) é poeta, tradutor, ensaísta. Publicou San Pedro (2004); Espaçaria (2007); Pá, pum (com Lucila Vilela, 2010); Como se fosse a casa (com Ana Martins Marques, 2017); Teoria do Hotel (2018); A origem das ambulâncias (Demônio Negro, 2022), entre outros. Traduziu com Marcela Vieira o livro Justine: ou os tormentos da virtude (pérolas furiosas), do Marquês de Sade. É professor da Universidade de Zurique.
 

::  revista  ::  uns  ::  outros   ::  poucos  ::  raros  ::  eróticos&pornográficos  ::  links  ::  blog  ::