KATMANDU

 

 

escrevo isso

dando corpo

a um rascunho de histórias

cruzadas

sempre acaba sendo

uma questão de perspectiva

você matar uma barata

esmagando sua barriga seca

o tutano

a gosma

a massa amarela

está cheia de ovos, me disse

elizabeth

na escola

veloz, ela era a primeira

a ser escolhida pro vôlei

da hora do recreio

 

elizabeth me disse

melhor não pisar nas baratas

nem matar com chinelo

pros ovos não saírem

e nascerem mais

e mais

baratas

eu

nunca tive medo de barata

nem nojo, nem nada

na verdade, na verdade

meu medo era mesmo

ficar grávida

como a elizabeth

no pátio

o barrigão

longe da quadra de vôlei

e um dia, um grito

 

e o medo se espalhou

como o grito

entre nós

todas nós,

umas meninas

assustadas

 

às vezes

continuo torcendo pra elizabeth

ela salta e bate, imagino

saque viagem perfeito

uma porrada

bem no meio do grito

alta potência

tão forte, tão forte

quem nem as porradas que ela dava

na bola de vôlei

e eu

nem tinha transado

mas tinha medo

de ficar grávida

 

adolescente

 

nem tinha beijado

na boca

e eu era a elizabeth

 

eu carregava

o bebê da elizabeth

 

eu recebia

o convite que ela recebeu

para se retirar

 

encarecidamente

 

da escola católica

 

quando eu transei

 

então, minha mãe

o primeiro que fez

foi ligar pra farmácia

um entregador com um capacete

em forma de nave mãe

me entrega uma caixinha

tomar no primeiro dia

da menstruação

nunca esquecer

da pílula

coloca o despertador, me disse

a minha mãe

 

e a minha filha está salva

do terror da classe média

procriar antes de quê?

faculdade

encontrar emprego

comprar casa

casamento

decorar quartinho do bebê

comprar bercinho pro bebê

 

mas agora sim

 

toma aqui o seu passaporte

para a alegria

da maternidade

um presente

só as mulheres mesmo

as merecedoras

santo útero, benza deus

 

mas o meu medo não me faz forte

nem mulher

nem mãe

nem nada

e o sangue, o alívio

 

o sangramento de privação

 

o alívio cheio de dor

mas me ensinaram

que mulher aguenta bem a dor

e é preciso aprender

a viver com a dor

porque um dia quando você for mãe

essa dor passa

mas depois, me disseram

vêm as preocupações

 

de uma mãe

 

que também não deixam

de doer

 

me ensinaram

 

que ao doer eu me preparo

 

para gerar

alguém que talvez um dia nascerá

para gerar

outro alguém que talvez um dia

 

doerá

 

um ciclo de sangue de mãos dadas

unidas

pela dor

 

me ensinaram

 

sem saber do meu desejo

de participar da roda

sem saber

se não quero

ou se quero

sem saber

se não posso

ou se posso

ser mãe

o sangue pelo ralo

do banheiro branco e limpo

 

sem mancha

sem vermelho

sem coágulo

sem vestígio

da minha dor

 

a aprendizagem da dor

acompanhada

por aquele medo antigo

de ficar grávida

medo e dor

sem finalidade

 

a dor doendo sozinha

 

o medo vivendo

no passado, no presente

mas o passado

é danado

ele persegue o presente

que nem sombra

 

a mesma sombra

de uma barata

que eu encontrei

num quarto de hotel

depois de ter

casado

acabado faculdade

divorciado

encontrado emprego

comprado casa

sem quartinho de bebê

sem bercinho pro bebê

e aquela barata bem em cima

do meu passaporte

na mesinha de cabeceira

de um hotel

 

em katmandu

 

uma barata imensa

e a voz da elizabeth

 

não esmaga porque sai os ovos

é pior

 

e então

eu peguei um chinelo

eu dei uma porrada

na barata

eu esmaguei

tão forte, tão forte

a barata

os ovos

o grito

o capacete do entregador

o despertador da minha mãe

o medo, o medo, o medo

as baratas não têm sangue.

 

 

 

 

 

 

NOTÍCIA DE JORNAL

 

 

Lide (o que vem) à frente

quando

e se amanhã

tempo e espaço abraçados

em loop de sono

ou de orgasmo

os olhos batendo fechados dirão

lá fora

prometem moedas

de ouro no chão.

 

Onde a rua de sempre

as árvores

outubro jardim

bolhas de sabão invadem o cenário

elas são sílabas jogadas ao longe

alheia semelhança

com jangadas desfeitas ao vento.

 

Quem era esta mulher

com as roupas manchadas de lama

como esteve no quintal

depois da chuva

como fosse planejado

agarrou do chão uma folha seca

no entanto, isso — um impulso

enfiou a folha inteira

pela boca.

 

O que sentiu com a folha serena

rompendo vidro em sua boca seca,

intenso caramelo morto

cuspiu.

 

 

 

 

 

 

É PRECISO

 

 

É preciso mastigar a folha

sentir o ranger da planta

no epicentro da língua,

sugar a saliva,

desidratar a gengiva.

 

É preciso engolir a folha

saborear o seu sangue

amargo

ocre de ferrugem

e hemoglobina.

 

É preciso secar a boca

com as folhas mortas

de árvores derrubadas

como os olhos dos animais feridos

que respiram lentamente

abatidos

em posição de adeus.

 

É preciso tragar a argila

o resultado da folha mastigada

junto com a saliva

o óxido hidratado

em massa adstringente

 

É preciso digerir a folha

e depois,

voltar.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Lívia Lemos Duarte (Niterói/RJ, 1981) é licenciada em Letras pela UERJ e mestre em Ciência da Literatura pela UFRJ. Atualmente, é professora de português e tradutora em Barcelona/Espanha, onde reside. Possui diversas publicações de seus poemas em revistas eletrônicas nacionais e internacionais. Em 2021, publicou Anfíbios, seu livro de estreia, pela Editora Patuá.

 

 

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