©f lemos
 
 
 
 
 
 
 
 

Houve um tempo em que o lugar do poema e da prosa literária era o suporte do livro impresso: poesia e prosa deveriam caber exclusivamente na celulose do papel, que garantia a sua validade. Para além do limiar desse universo, a arte poderia se perder, pois o papel era o seu dono. Em épocas ainda mais remotas, a literatura vivia nos pelos de animais transformados em códex, em pedras refinadas crivadas com letras vivas ou no imaginário comunitário como uma dinâmica literatura oral. Hoje os textos dançam pelas plataformas digitais, são uma espécie de animal selvagem nos velozes teletransportes de hiperlink e na incontida grande rede à distância de um clic.

Nós, os leitores de cada época, consumimos a mensagem dessa arte independentemente do tipo de bandeja em que ela está sendo servida. Assim, podemos imaginar os gregos antigos explorando os textos de Homero nos papiros e isso se valia perfeitamente como experiência para conhecer a A Guerra de Troia sem perder a imagem textual da belíssima Helena. É possível imaginar os leitores dos folhetins do Século XIX consumindo as letras de Machado de Assis ao tempo em que nutriam rancor pelo médico da Casa Verde. Finalmente, o amante da leitura nos tempos modernos tiveram a requintada chance de entrar no mundo de Milan Kundera com toda a leveza que um livro editado e impresso pode oferecer.

Em todas as épocas existiram textos condecorados e também textos rechaçados, alguns escritos foram premiados e depois esquecidos, enquanto outros foram esnobados, mas com o passar do tempos, eternizados. O que nos leva a pensar que não se trata do suporte, mas é a qualidade literária de cada obra que fará a separação entre o joio e o trigo na seara da literatura. Nos faz pensar, ainda, que a despeito do material físico em que o texto está firmado, seu valor literário será reconhecido.

Contudo, nesse passeio de nuvem da crítica da literatura, parece relevante refletir sobre os olhares que existem acerca das novas escritas que se colocam no ambiente dos bits. Com o advento dos personal computers (PCs) e da internet, qualquer pessoa letrada pode ser um escritor. Isso deve ter deixado muitos escritores enraizados no mercado editorial impresso incomodados, nem todos obviamente. A grande rede mundial alargou os trilhos da literatura e todos os modos de fazer arte com a palavra podem ser compartilhados e consumidos indiscriminadamente. É importante essa reflexão porque ainda é comum testemunharmos a frequente ideia de que os escritores do mundo digital são autores menores, desconstruídos, poetas de urgência, croniqueiros fajutos e pseudoliterários.

Estamos diante de novos conflitos da crítica da literatura que antes estava acostumada a avaliar escritas revisadas e aprovadas por um editor, agora imersa num universo de escritores de todas as naturezas, alocados em páginas que são seguidas por milhões de leitores. A partir desse esquema conflituoso, a crítica pode tomar decisões raivosas para com os instapoetas por exemplo, e, munida dessa raiva, entoar sua reprovação sob a alegação de que nesse espaço virtual a poesia não tem grandeza. Ou poderá o crítico realizar a mesma peneira que antes fazia com textos impressos. Seria profissional que uma avaliação de valor literário levasse em consideração o seu preconceito pelo suporte desprezando o que sempre foi importante para a constituição de uma literatura nacional?

Uma questão semelhante é revivida no filme O artista de Michael Hazanavicius, que ganhou o Oscar de melhor filme em 2012. No enredo desse longa, um ator celebrado no antigo cinema mudo vê a sua arte ganhar cores e sons com o avanço tecnológico do cinema, porém o protagonista não acompanha a alavanca da modernidade e fica obsoleto no trato com os novos suportes, no meio em que antes era tão triunfante.

Há, no universo virtual, tanto poetas e prosadores inovadores quanto repetitivos. Com a maior frequência se vê escritores que nada têm de interessante para o mercado editorial, mas nisso não está constituída uma proibição do seu direito de escrever e de ter leitores que queiram ler os seus textos. Também há autores de bastante valor nesse universo online, que não podem ser definidos por uma única régua.

Nessa história insólita, se olharmos com atenção, a infinidade de textos sempre existiu, dos séculos que se passaram restou para nós os melhores textos que a peneira do tempo selecionou. A linguagem literária é semelhante às nuvens, que se deformam e se reformam em infinidades de formas, mas ao sumirem no horizonte não deixam de ser o que são por essência: nuvens. Assim parece ser a linguagem humana, ela vai se constituindo de variadas combinações, e pelo refinamento do nosso olhar fotografamos as formas mais admiráveis e guardamos em qualquer que seja o suporte, porta-retratos, álbuns, quadros, no arquivo de nuvem e quase sempre na memória da nossa alma.



junho, 2022



Baktalaia Leal é escritor, poeta e professor da Universidade do Estado da Bahia. Mestre e doutor em Letras, o autor tem dois livros publicados (Editora da UNEB, 2012 e 2020), além de diversos textos literários e acadêmicos como contos, crônicas, ensaios e artigos em diversos blogues, jornais e revistas digitais e impressos. Idealizou e alimenta o perfil @versoemrefil, no Instagram, onde publica diariamente pensamentos, ensaios e aforismos. Integrou o conselho editorial da EDUNEB (2021-2022) e participou de diversas coletâneas poéticas, dentre elas, Balões coloridos (Via Literária, 2009) e Poesias escribas (Ação Cultural, 2015).
 

::  revista  ::  uns  ::  outros   ::  poucos  ::  raros  ::  eróticos&pornográficos  ::  links  ::  blog  ::