Quando se fala do escritor inglês Rudyard Kipling (1865-1936), duas coisas vão ocorrer aos brasileiros medianamente informados: é autor do célebre poema "Se", que já se viu muito emoldurado em casas e consultórios e vários outros lugares onde, no passado, ficava bem ostentá-lo, e da história que deu origem ao desenho Mogli, o menino lobo, filme dos estúdios Disney, amado por muitas gerações de cinéfilos. Gente um pouco mais informada ainda se lembrará de que Kipling foi adaptado para o cinema por cineastas como George Stevens (Gunga Din) e John Huston (O homem que queria ser rei), dois filmes de aventura que ofereciam suas delícias, mas que podiam também ser ofensivos pelo viés ideológico. 

Pois uma frase de Kipling se tornou tristemente conhecida nesse aspecto, e é sempre lembrada quando o escritor é associado ao problema. Para muitos, seria um epítome de racismo e colonialismo: White man's burden. "O fardo do homem branco", era assim que ele se referia ao colonialismo inglês na Índia, certamente repleto das boas intenções que sempre caracterizaram os demônios encarregados do dito "processo civilizatório".

A típica arrogância do colonizador britânico, que nessa frase não se dissimulou com felicidade, fez mal à imagem de Kipling. É uma tirada antipática, vilanesca, e foi parar até na boca de quem? De Jack Torrance, o escritor enlouquecido que em O iluminado, de Stanley Kubrick, a pronuncia no balcão do bar do hotel Overlook, conversando com o fantasma de um barman psicopata de quem herdará simbioticamente os instintos homicidas.

Mas quem quiser conhecer Kipling, é bom que dê uma conferida em Histórias sobrenaturais (Bertrand Brasil, 494 páginas), volume de contos editado por Peter Haining, que recolheu inclusive contos pouco conhecidos em edições piratas e fez um trabalho meritório. A tradução é de José J. Veiga. O livro é interessante para os que querem enveredar por um Kipling menos óbvio.

O curioso é perceber que os contos passados na Índia são, de longe, os mais fracos, não porque não assustem (o livro, com uma janela entreaberta para uma paisagem feita de olhos humanos na capa, é um convite aos apreciadores do Terror) ou não sejam curiosos, mas porque a ideia de que os ingleses são um povo superior e os indianos meros bárbaros temíveis e dominados por horríveis superstições, bons apenas quando inteiramente servis, é tão entranhada em Kipling que o ter ouvido falar mal de seu colonialismo só fará se confirmar para quem for ler Histórias sobrenaturais.

O bom do livro está naquilo que já foi apreciado por gente acima de dúvida como Henry James, o conto "Eles", ou "A casa dos pedidos" (louvado por Jorge Luis Borges, em seu livro de entrevistas ao radialista Oswaldo Ferrari). É curioso também encontrar um conto como "O signo da Besta", que é uma variação da clássica história do lobisomem. Um inglês se torna um lobisomem, e a maldição que fez com que se transformasse nesse monstro parte de um indiano leproso que o praguejou por ter maculado a estátua de um deus macaco. Pode haver maior desprezo por um povo dominado? 

 

 

Em E. M. Forster e Thomas Mann

 

 

O conto nos remete ao romance Passagem para a Índia, de E. M. Forster, onde uma reprimida e infeliz Srta. Adela Quested vai à Índia e descobre a sua sexualidade misturada ao horror em cavernas com ecos misteriosos.

Outro sinal dessa propensão a estigmatizar a Índia como fonte de horror e autodescoberta perigosa se desenha também de maneira típica no tigre que sai de uma selva quando Gustav Von Aschenbach, o personagem de Mann em Morte em Veneza, desce para a equívoca (sob o ponto de vista de um alemão puritano) Itália. Chegando à cidade mitológica, onde pretende tirar breves férias, num daydream muito simbólico, surge-lhe, entre outras, a imagem desse tigre, prenúncio da cólera indiana que por fim se espalhará na cidade e acabará matando-o. Mas matará não sem antes lhe trazer, misturada à morte, a presença do garoto Tadzio, por quem se apaixona irremediavelmente. Sexo e morte, cabendo sempre ao Outro, o estranho, o exótico, o oriental, o colonizado... Que fardo o homem branco não representou para seus dominados, sempre! — além de servi-los, tinham que ser moralmente rebaixados por eles.

Deixando a ideologia de lado, Kipling escreve bem e, ainda que parte de seu trabalho esteja datado e pareça ingênuo, os contos desse livro têm o que contos de terror precisam ter: sutileza, engenho, atmosfera. Por isso, ele vale uma leitura cuidadosa.

 

 

março, 2022

 

 

 

 

 

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