©elliott erwitt

 
 
 
 
 
 
 
 

O mundo inteiro talvez seja uma casa só para o homem, igual em toda parte — conceito vasto, essencialista e genérico demais para seres que se agarram às suas individualidades com toda gana de sobrevivência psíquica ou egoísmo dos quais são capazes. Vive-se no específico de almas e lugares e a compreensão da generalidade não salva ninguém de sua particularidade sofrida.  Por isso nada há de estranho na sensação desesperada de que o mundo é em bloco um enigma hostil e que precisamos todos de um canto familiar e acolhedor onde deitar raízes e viver com aquele belo alívio diário dos aldeões que sabem quem são seus vizinhos e se alegram em cumprimentá-los diariamente a caminho de outros tantos conhecidos, alguns de décadas e décadas. A familiaridade, tão amiga do tédio e da estagnação, é mesmo assim um consolo poderoso.

O mundo contemporâneo, quase sempre urbano ou tendendo a se urbanizar, não nos dá isso. A hostilidade, com a multiplicidade da população e o gigantismo das metrópoles, só fez aumentar e tornar os caminhos de extravio muito mais frequentes que os de encontro. Os que sonham com raízes nesses cinzentos conjuntos habitacionais em cujas janelas adivinhamos movimentos de gente solitária estão perdidos — provenientes talvez de uma cidadezinha do interior onde tinham família, quintais, hortas e um galo consolador na barra da manhã, foram criados e talvez mimados com amor exclusivista por pais e irmãos que os julgavam ímpares e desde cedo se acreditaram predestinados ao amor e à admiração no calor doméstico que parecia que duraria para sempre. Isso é quase sempre a Infância, porque rapidamente a idade adulta, com suas realidades restritivas, atira o ser privilegiado na vala comum dos homens que precisam de um destino profissional e uma agenda de sobrevivência mínima e isso pode significar mudanças, interrupções de sonhos tranquilizadores, ruptura, dispersões. Fica a nostalgia de um mundo idealizado composto por alguns cheiros, ruídos, sensações, lembranças muito queridas, mundo que alguns procurarão recompor, se tiverem condições materiais para isso, com aquele sonho de Dom Casmurro de fazer com que o passado voltasse a ser presente na construção de sua casa na maturidade. O impulso tem a verdade e o patético dos muitos esforços humanos de construir abrigos tendentes mais à frustração que à felicidade. Simulacros de ideais se perpetuam assim e é certeza que lá dentro dos resultados em concreto já se sonha com outras coisas. Dentro do obtido sonha-se com o que não o foi.

 

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Querer ter raízes, querer ter uma pátria inequívoca e o consolo de presenças muito queridas, se dilui em vaguezas que, nem por serem vaguezas, são menos sofredoras. É um tipo de reflexão que me nasce em longas viagens de ônibus por lugares desconhecidos, que só se darão a conhecer na vertigem das imagens que passam velozes pela janelinha (e claro que permanecerão obscuras) ou por paradas obrigatórias e inesperadas em pontos distantes que nunca voltaremos a ver — algum velho bar de estrada a caminho de uma cidade pequena inteiramente desconhecida, alguma beira de roça onde só há eucaliptos e alguma pomba silvestre pousada em cerca de arame farpado. Para-se, respira-se, contempla-se o ponto, e, no meu caso, várias vezes me ocorreu lembrar de uma frase de um livro cujo título e autor não lembro agora: "Essa coisa misteriosa e única que é um lugar...".

Penso que esse autor talvez tenha sido Proust em suas prodigiosas descrições de Combray em No caminho de Swann. Com tal força e beleza ele escreveu aquele primeiro capítulo, lembrando lilases, pilriteiros, o ribeirão Vivonne, os caminhos de Guermantes e Meséglise, o mundo paradisíaco (mas muito verossímil) de sua infância, que é possível que os ecos que esse capítulo provocou em muitos leitores e escritores sejam ouvidos para todo o sempre e às vezes até incorporados em alguma frase de aparência anônima a bailar em cabeças que lutam com a memória para referenciá-los com precisão.

Sentimos a verdade da frase quando à nossa frente se abrem trechos de um verde denso e profundo de mato onde apontam algumas trilhas que talvez só tenham servido para o gado ou para um roceiro solitário. É um lugar que nossa atenção seduzida torna singular e pode ser que, além do arvoredo e de uns arbustos de arranha-gato, haja uma casinha acolhedora, um riacho, alguma colina pedregosa pontilhada por uns poucos bois, uma espécie de refúgio onde nossa identidade mais profunda poderá ser reencontrada na magia de uma vida dissolvida num anonimato para si mesmo que é um ideal de poeta cansado do Mundo, e então, enfim, poderá ser o Lugar.

Isso estaria perfeito se a singularidade não fosse tão repetitiva — outra parada em outro lugar, a breve visão de uma porteira dando para alguma fazendinha com uma alameda de ipês amarelos à entrada, e pronto: outro Lugar entre muitos lugares surge como promessa de redenção e magia. Temos a impressão de que possuímos um coração elástico e volúvel que se apaixona sempre por aquilo que não poderá alcançar e que, se alcançado, se dissolverá em algo muito banal e tedioso. E aí entendemos que o tempo todo, no mundo todo, o viajante só terá como escolha o lugar onde lhe foi possível ficar e onde poderá sonhar com tantos outros lugares. Da pátria ideal só podemos fazer reconstituições, fragmentos do passado, fragmentos do desejo que se juntam a outros tantos fragmentos do presente e da especulação passional que resultarão em arte, que parecerão comoventes a quem acredita neles reconhecer coisas que lhe são caras ou com as quais já sonhou. O ideal se desfaz em mil caquinhos reluzentes que, nem por reluzirem, deixarão de ser arbitrários e removíveis a qualquer esforço mais consciente.

 

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Aquela estradinha que passava por uma velha capela repleta de santos já meio esfacelados e tocos de vela, flores de papel ou plástico, paredes esfareladas sem nada além de uma janelinha dando para o nada, aquela estradinha onde alguém se deteve com capricho para fazer uma bem arrumada sebe de margaridas, alguém que com certeza rezou fazendo um pedido secreto, onde ficava realmente, o que era, que espécie de rumo ou destino simbolizava?

Era estreita, de uma terra que era de um alaranjado quase cor-de-rosa, e andar por ela era garantia de um trajeto em que os únicos sons seriam os dos muitos pássaros e dos mugidos bovinos distantes. Nada nela daria sobressaltos que não fossem o das rápidas fugas de passos-pretos, rolas, chupins e tizius nos capinzais ao avistarem o homem de muito perto, nenhum veículo que passasse, nem mesmo um lento trator de algum agricultor que nos sorrisse e, chapéu tirado, se preocupasse em nos saudar. Pensava-se no perfeito que o mundo seria sem a presença humana, mas estávamos ali num produto da cultura com a sugestão de proprietários rurais ausentes, agricultores trabalhando e rústicos seguindo suas vidas em alguma parte, e esquecermo-nos disso seria esquecermos o quanto da mão humana pode trabalhar num esforço por um simulacro de ideal que permanece tristemente incompleto.

"Paisagens, isto é: ninguém", dizia o poema de Fernando Pessoa, que concluía com "Tenho a alma feita para ser monge/ mas não me sinto bem..." Os monges que sonhamos ser, ao passarmos por lugares assim, são apenas ideias brotadas e favorecidas pelo bucolismo, veleidades que se diluem tão facilmente quanto aquele pó rosado da estradinha.

 

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V. S. Naipaul, escritor nascido em Trinidad, fala de sua juventude como literato, ambicionando ser reconhecido num mundo maior que sua ilha caribenha, no livro em que analisa sua vida numa Inglaterra rural onde um senhorio aristocrático vive em decadência luxuosa padecendo de acídia, em O enigma da chegada. O livro nos mostra um forasteiro tentando se ajustar a um mundo em que a opacidade dos seres, a estranheza da regularidade das estações, do trabalho rural ainda a ser decifrado por ele, a pessoas que o percebem como estrangeiro irreconciliável com aqueles hábitos, tradições, atavismos. O que temos aí é um tema caro a escritores contemporâneos num mundo em que os desenraizados são muitos, e os desenraizados com talento para nos dizer quão duro é o desenraizamento existem como faróis necessários. Os escritores, talvez nisso melhores do que ninguém, sabem que estão no mundo de exílio em exílio e que seu coração não fica em parte nenhuma, embora miragens de refúgios ideais não cessem de lhes ocorrer.

Fadados a vagar por um sem-fim de paisagens opacas, dispersivos e inquietos, é possível que na velhice nos contentemos com uma parada decisiva em algum canto nem melhor nem pior, nem ideal nem imperfeito quanto tantos outros. Era um dos muitos lugares avistados fugazmente na janelinha de ônibus e agora, por uma janela de alguma casa longínqua, em meio a roçados e matagais, cigarrinho entre os dedos, avistamos o que é possível avistar. Com um pouco de compaixão por nós mesmos, tomaremos essa parada, esse refúgio inevitável de nossos achaques e juntas doloridos, sem outra autoridade que não o desejo, como o Lugar.

 

 

setembro, 2022

 

 

 

 

 
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