[Poema do livro Encontro das Águas, 2010]

 

 

aquífera ferida

 

 

veios e chamas

finos frascos

serpentinas filigranas

miragem

 

toda água já é isto:

sangue fezes lágrimas

documentos desencontrados

 

chover chove

e os rios em desalinho

perdem cursos, leitos, costas

tambores e vozes sem bocas

rastro sinuoso de tempestades

o azul já não é água

é norte que desperta

 

não haverá céu, planetas

— é possível sonhar?

 

 

[Do livro Encontro das águas V – aquífero poético.

Florianópolis: Secart/UFSC, Casa da Poesia, 2011]

 

 

/

 

 

vivemos de ancoragens

deslizando na areia fina

a pressa que nos aprisiona

 

 

 

 

 

 

/

 

 

veios frágeis definham

na correnteza fugidia dos bambuzais

tardio gesto do leito sem alento

em busca de rio e mar

 

 

 

 

 

 

/

 

 

as rosas caem, às pencas

e sob a luz da lua

vingam a dureza do sol

 

petala por pétala

é assim o meu amor

brihando no sereno

 

 

 

 

 

 

/

 

 

as plantas beberam comigo

as águas daquela noite

no riacho agora límpido

exalam antigos desejos

 

 

 

 

 

 

/

 

 

o vento era você

correndo atrás da nossa música

bebendo nossa xícara de momento

 

o vento atravessa as poeiras e a serra

a brisa de novo

os lençois e os cantos

 

 

[Do livro Encontro das Águas, Edições Bichinho Gritador, 2010]

 

 

/

 

 

dos eucaliptos

cigarras agonizantes

cortam raios, recordações

 

é o verão

com suas mesmas promessas

 

 

 

 

 

 

/

 

 

a casa pulsa

 

coisas almas

objetos

reincorporados

 

a casa pulsa

poeira

viva

 

 

[Do livro a bom bordo. Edições Bichinho Gritador nº 1, 1994]

 

 

VIDA A DOIS

 

 

Viver com você

é difícil por isso:

remexe minhas gavetas

minha cabeça

e meus rabiscos

e não sabes a diferença

entre o que sou

e o que és

 

Por mais que tudo se aclare

nunca fica claro o que posso

e um osso me rói

me dói a barriga

a própria fatia da vida

até onde não sei

Só sei que estou ficando

uma mulher sábia e egoísta

 

 

 

 

 

 

FOTOGRAFIAS

 

 

Posso ver nas fotografias

que hoje sou da cidade

como todos vieram e ficaram

acreditando ser necessários:

contingentes buscantes atrapalhados

que catam migalhas nesse anonimato

 

Posso ver nas fotografias

que a cidade ficou velha comigo

eu e mais todo mundo: submissos

parecendo até mais civilizados

espremidos nas latas — contando papo

que estamos crescendo com a cidade

que entre ela e nós há cumplicidade

 

 

 

 

 

 

A MULHER E A SOLIDÃO NUMA TARDE DE INVERNO

 

 

Conseguirei sentir frio

nessa cidade quente

onde estou?

Por que os passageiros

sempre preferem as janelas

ao invés da quentura dos corpos

no interior dos coletivos?

Por que o corpo foge

e sente choque?

 

 

 

 

 

 

POSSE

 

 

Meu amor

me fez um discurso

pedindo pra eu ser só sua.

Aí eu lhe respondi:

Toma, pode arrancar um pedaço.

 

 

[Do livro Sanguínea. Belo Horizonte, 1981]

 

                  

 

 

 

[Poema do livro Encontro das Águas, 2010]

 

 

 

 


Ilka Boaventura Leite (Pirapora/MG, 1956). Historiadora, poeta e antropóloga. Realizou sua formação em História e Antropologia na UFMG e na USP. Concluiu o doutorado em 1986, na Universidade de São Paulo. Fez carreira docente no Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina, onde se aposentou em 2020 como professora titular. Atualmente é professora do Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC – área de concentração "África e suas Diásporas". Na área acadêmica, publicou vários livros e organizou algumas antologias. Participou do Grupo e da Revista Cemflores desde a sua fundação, nos anos 1980, apresentando trabalhos em todos os números. Publicou os livros de poesia Sanguínea (1981), A bom bordo (1994) e Encontro das águas (2010). Organizou, em Florianópolis, encontros de poesia entre 2009-2011: o "Encontro das Águas" e o "Aquífero Poético", o último registrado em dois livros. Vive em Florianópolis/SC.

 

 
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