©sguimas [com imagem de i gorda]
 

 

 

 

ensaio

 

 

elas as letras

nós os números

 

eu 7

ela D

 

o sete segura a dê na linha do tutu

ela ergue os bracinhos gira ele olha

 

e olha

e olha

e olha e mais nada

 

na coreografia não se permite graça

aos números.

 

 

 

[de O caderno rosa da criança viada, no prelo]

 

 

 

KENJI

 

 

ao Kenji, meu amigo imaginário

 

 

ele apareceu em cima do quadro de força

comia uma azedinha

disse:

 

vai pro Japão             e

come sushi com rashis

vermelhos.

 

ele tinha o cabelo do Astro Boy e olhos verdes

e gostava de viajar com as botas de foguete o mundo todo

 

por isso apareceu em cima do quadro de força

rua redenção da serra número 377

jardim flamboyant flores vermelhas como rashis botas corações

pegou o mapa seguiu o Douro até a nascente dançou no planalto

¡OLÉ!

e viu a torre e o Stonehenge nadou todo o Danúbio

 

gosta de viajar e escrever tirou dez na ginástica olímpica

do sonho

 

eu queria me casar com ele voar de botas de foguete só que

 

ele sou eu.

 

 

 

 

 

 

HOLOCAUSTO, 1978

 

 

Acreditei-me só,

e só me fiz,

como nas escrituras:

 

páginas banhadas a ouro indiscretas guardadas

ao lado do armário de uísque da propaganda na tv

atrás da segunda porta à direita na parede onde

as mãos as palmas de coqueiro dedos agudos pinicosos

sai e caminha no deserto escuro ou devora-te faraó

sombra-papão comedora de miojo de legumes

oferenda de caim em tuas mãos deus odeia vegetarianos

vegetarianos desejam o egoísmo do sangue que não espirra

dos animais brutos dentro da tv no holocausto

avançam sobre a menina de cardigã marrom molhado

as duas mãozinhas amarelas agarram o colarinho

mas a calça arriada do soldado nazista avança

as pernas louras fortes o soldado faminto ela grita

um gritinho ensopado crispado de frio e lágrima

no gueto da Varsóvia que já não existe mais

mais soldados no círculo ach ach ach ach

a menina chora eterna no trem no campo

chora e chora desconhece por que a câmara de gás

 

mas soldado eu sei por favor soldado eu sei

por que ela soldado se ela é minha irmã se ela

sou eu mais triste antigo sim eu soldado eu sei

sou um menino bonito oito anos de idade soldado

por que ela não eu porque minha irmã se ela

abaixe as calças diante de mim soldado

já conheço o outro lado da calça arriada

escondido da câmera e dos dedos sombra de palma

escondido dos oito anos de olhos que sabem soldado

eu sei soldado gritar sei viver quarenta anos depois

por que ela morreu soldado

por que ela e não eu.

 

 

 

 

 

 

STRETCH

 

 

lindo oferecer canções na rádio

pedir Arlindo do Jardim Paraíso oferece

a voz de Ted Robinson o locutor do coração

Ted que é Abel e vai de Kawasaki aos microfones

cara de fuinha ao contrário da voz que

sobe molhada pelo meio das pernas e

Arlindo me desculpa mas isso tem nome

os americanos vendem no Wal-Mart e se matam

nas Black Fridays para comprar cuckolding

e por isso com a boca no microfone ele é

nem Abel nem Arlindo eu me deito com Ted

ao som de Jim Diamond e são os lubed-up eighties

eu não sei de letra diamantes de sangue chama o bombeiro

a carne virgem espicha amarrada no lençol florido

e fura o colchão e do buraco um chafariz

esguicho cilíndrico rosa happening no teto

antes do tempo do desejo do grito

 

e agora Arlindo

e agora Abel

e agora Ted e agora Jim

eu vou oferecer uma canção

 

e enquanto ela toca

vocês morrem.

 

 

 

[Poemas de Matinée, no prelo]

 

 

 

burnout II

 

 

saldos cheques especiais créditos indenizações

mais a história neocolonial dos endividamentos

transmutados em moedas de metal inferior

a liquidez empapa bolsos e calças com ácido

tendões ossos derme epiderme um mingau

visgando do assento para as pernas da cadeira

um oceano de células estrangeiras — a classe

brim de camisas filigranadas em ouro de tolo

veste a maionese exaurida e coletiva e suada

 

uma moderna casa da moeda agora faz cédulas orgânicas.

 

 

 

 

 

 

tempus fugit

 

 

eles estão lá fora, é isso.

 

o

suor a

lágrima as

veias saltadas os

dados do

instituto que sabe a verdade e a divulga e orienta e planeja e indica que absolutamente todo mundo menos você está errado

 

— é a lua em conjunção com halley nos primeiros graus de tardígrado —

 

ninguém vê

é isso

sossega

penteia os cabelos

ouve umas pj harvey

carpe um terreno.

 

 

 

 

[Poemas de Last chance saloon, inédito]

 

 

 

passaporte, por favor

 

 

entesourar

uma rua marginal com uma casa amarela

na estrada que volta para e foge de

um dourado pacífico

uma suspensão de fôlego

cem metros até a pracinha e a engrenagem

em torno da fonte horária anti-horária até

o casamento ou a morte

à hora do sorvete aos pés do herói

cagado pelos pombos espera

a véspera da tourada:

 

coisas pintadas no vidro

que dá na carretera interamericana?

 

entesourar

um catálogo de quartos de hora

bater as pálpebras até formar o fotograma

abrir o álbum de envelopes plásticos

lamber as páginas e selos e envelopes

colar o último passo antes do mausoléu

uma gota de suco de romã e

sua expansão imperial no algodão

o corpo de Tamerlão sob o sol da Ásia Central

sapatos de camurça decorados de lama morta

fantasmas bentônicos do mar de aral

 

qual a biblioteconomia do desejo de fuga

espatifado nos mil espelhinhos do palácio

em teerã em versailles em bangkok?

 

uma breve descrição dos cafés e alamedas

a biografia do grande espírito único

de uma urbe improvável no hemisfério meridional

onde se comem borges e croissants

segue o cabeçalho que diz:

 

1. em maio acontece o espetáculo (é setembro)

2. absolutamente incontornável celebração da devolução da colônia (1999)

3. só floresce uma vez a cada cento e novena anos

4. mas eles não gostam de quem não fala o idioma

 

aqui dançavam todas as tardes de quarta-feira

porém a ditadura ateou fogo ao sound system

os bailarinos nem eles mesmos sabem onde estão.

 

você chegou muito tarde e agora os lótus estão embaixo

desse shopping

sob o overpass

entre os canos

de fios

de água

de esgoto

 

você nasceu para ver o mar subir

um metro

ou dez

 

há mil lugares para ver antes e

 

basta ter um palácio na família

 

uma breve descrição da vila budista na montanha

pessoas-flor e cabras de barba macia

o xale de dois quilos passa todinho por dentro do anel de prata

 

e depois

 

a instrução: coma o tempo com cominho

gire todas as rodas do dharma

bata repetidamente as pálpebras

fotograma sobre fotograma sobre fotograma

nenhuma revelação.

 

eu vou te guiar

mas você tem de fugir.

 

 

 

 

 

 

fotografia de um porto em Istambul, 2018

 

 

conto uma coisa em preto e branco: calções de banho

(como já se veem de novo)

convocam seus moços, lentos no cais risonho e:

 

escuto o ronronar tartamudo e

rebotes de águas contra o casco da balsa.

 

os rapazes decerto não discutem

que um mapa de transporte público de uma cidade

em que se desenham trilhos e rotas marítimas

— essa, a deles —

é uma forma de elegância.

 

ásia.

os rapazes calculam de queixos erguidos,

o céu de poucas nuvens

e um sol desistente.

 

os minaretes na europa e na ásia

convocarão os menos seculares.

 

atirar-se na água é urgente.

 

um se atira e depois

um a um, todos se atiram

em sua familiar beirada de bósforo, segundo

o protocolo: um, o outro, o outro e o outro,

e cada um espera dentro do mar

até que se esgote a comitiva.

 

o último se junta a seus introdutores:

todos começam a sair pela escada de uma das docas,

na exata mesma ordem em que entraram.

 

em preto e branco

os pesqueiros cedem espaço

em branco e preto

casas pequenas são a saia de uma ruína bizantina.

 

o marmóreo último rapaz se ergue do estreito sobre o cais.

o preto e branco do sol finalmente anuncia tons de rosa.

 

a balsa em amarelo-desmaio assiste silenciosa

agora aos rapazes, um a um, a desenrolar toalhas:

vermelha, laranja, amarela,

verde, azul, anil, violeta

e cor-de-rosa

e preparam suas peles para tragar o calor

que se escasseia marola a marola.

 

todos, menos o último: mais alto, mais forte,

incrustado de sal brilhante,

alteia o peito e ordena

com o arco das sobrancelhas

que o sol lhe aqueça.

 

há no convés da balsa que parte

um único devoto para o ícone.

 

o ícone abre as asas largas.

nenhum milagre.

 

 

 

[de Guia de viagem para obsessivos compulsivos, inédito]

 

 

 

quando tento gostar de você

 

 

depois da pontezinha sobre a ferrovia sem trens,

no alto e no início (ou fim) da avenida que desce

pirambeira, não sei se essa palavra é campineira:

friozinho na barriga diante do posto de gasolina

meu primeiro playcenter dentro de um fiat 147

azul ou roxo que mamãe xingava de moita velha

monte castelo avenida-batalha cheia de árvores

 

ali parece amor.

 

 

[de A mulher sem coração, inédito]

 

 

 

marco polo

 

 

um dia: uma dessas cartas será de amor

se não são de amor todas as cartas

todas as cartas do mundo todas

as jornadas périplos epopeias

filas mascaradas balanças selos e franquias

escaninhos caminhões sacolas de lona

em aviões aeroportos esteiras centros

de distribuição carteiros ruas casas

segue amor da praia ao planalto

do planalto à floresta da floresta

à metrópole da metrópole ao chalé

pelo rio pela avenida pela rota aérea

pelos cais pelos pontos de ônibus amor

até os olhos fechados no beijo em tua palma;

 

quando decidires como se abre o envelope: nenhuma surpresa a mesma aquarela quem sabe mais rosa a mesma cantiga quem sabe mais allegro o mesmo postal quem sabe do abismo;

 

e depois: vou te dar poemas de amor

primeiro um e mais um e

mais um e mais um e mais um

outro e outro e outro e outro mais

uma trilha de poemas no caminho do

Everest para que voltes das pedras

para minha pele músculos pelos

escalada de escápulas e glúteos

mordes o monte de vênus

comes este pomo-de-adão esta jugular

olhos e olhos úmidos úmido ar;

 

e partes e voltas pela trilha de palavras

pelos meus andes e meus himalaias

onde acampei minha caravana e

amanhã parto e te deixo a fogueira

e o envelope e a aquarela e a cantiga

e a pista de postais e me buscas

me encontras e te encontro

atrás das duas portas

luzes acesas de lado a lado:

 

e se abres

e se abro

haverá mais um hoje;

 

 

 

 

 

 

caixinha de música

 

 

sol sol si

sol sol si

sol si mi

ré do do si dorme o gato — ronrona — canta — entre as filigranas prateadas na caverna dos dedos — dormem bichos de pelúcia dorme a vaquinha o cavalinho o boizinho o leãozinho:

 

era a cantiga perdida o acalanto que eu mesmo retalhara libertando os animais do circo no primeiro grande esquecido incêndio;

 

a cidade inteira dorme dorme dorme e o estranho tesouro som de cnossos pulsa minotauro na sacada no vapor floral do hibisco decantado sob todas as águas da vida ali dóceis sobre a mesa —

 

no pátio da ruína do colégio escondido no bosque onde os animais tristes crianças brincam com bambolês em chamas;

 

na caverna dos dedos a supernova dança

 

e o que tenho é isso;

 

vai começar

palma-palma

a brincadeira

palma-palma

 

gira gira gira fogo — gira gira fogo fogo — fogo gira gira —

— gira fogo gira — gira fogo fogo — gira fogo — gira

 

fogo;

 

 

[Poemas de 24. Zouk, 2021]

 

 

 

ada lovelace

 

se essas relações mútuas fundamentais podem ser expressas

por aquelas da ciência abstrata das operações, então

números e números estruturados de modo a atuar como operações

movem e ordenam: a harmonia das notas musicais, das ondas

do espectro visual, das moléculas olfativas, gustativas, os ritmos dos

pulsares dentro e além da estratosfera.

 

a máquina analítica exalta a precisão contra

a confusão, a dificuldade, as contradições e os lampejos lúgubres

que oneram e embaraçam a potência matemática, potência possível

pelo exercício disciplinado, diligente, astuto e elegante da criação

de arco-íris que causam —

 

(teu coração mesquinho ou minha supernova, e essa defeituosa e efêmera relação hoje impressa num cartão perfurado guardado numa caixa de acrílico fosco para o sistema de um banco de dados que controla um estoque de cigarros vagabundos que de mais a mais só foi teoria)

 

— de volta ao teorema: a expectativa matemática supera a expectativa moral e

se a máquina extraordinária processa cartões em que do violeta ao vermelho

as grandezas ocupam suas colunas e os valores operacionais dos prismas

de cada gota d’água se alinham no desejo da probabilidade da cor e

se nas colunas dos cartões se deposita furo a furo a elegância, então

teremos um arco de tons radiantes muito superior aos pigmentos terrenais

em onda e números e operações e a harmonia das lágrimas e dos suspiros

a luz escondida que não se apaga a suave música que não se cala

 

meu bernoulli pode ser cinzento

mas o sobrinho dele olhou para a água e viu nela a probabilidade adorável

de que coisas mais pesadas que o fôlego

pudessem voar

 

a extraordinária máquina compõe e cria

a probabilidade feliz dos números da vida de quem

informa o desejo, informa as variáveis, as operações amadas

basta deixá-la a funcionar

sozinha.

 

 

 

[de A máquina extraordinária. Zouk, 2021]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Hugo Lorenzetti Neto (Campinas/SP, 1978) é professor, diplomata, tradutor e escritor. Autor dos livros de poesia 24 e A máquina extraordinária, publicados pela Zouk. Mantém uma coluna mensal na Revista Ruído Manifesto, toda última quinta-feira do mês. Mora atualmente em Luanda, onde faz a curadoria do Instituto Guimarães Rosa. Seu sonho é ser uma velha que toma Irish Coffee toda tarde e fica dando risada num café com janelão numa cidade boa pra caminhar.

 

 
::  revista  ::  uns  ::  outros   ::  poucos  ::  raros  ::  eróticos&pornográficos  ::  links  ::  blog  ::