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Sorgo




Avô, pai e filho, sentavam-se na mesma mesa para almoçar. Os ruídos eram dos garfos e facas arranhando os pratos. Quando terminavam de comer o silêncio era interrompido pela televisão. A mãe do rapaz morrera em um acidente de carro, e aquela era provavelmente uma das casas mais silenciosas da Itália. Avô e pai trabalhavam pilotando colheitadeiras, o neto dirigia o caminhão onde o sorgo era despejado. Dentro da cabine do caminhão ele usava fones de ouvido, Nirvana, Zucchero, Oasis, aquelas músicas eram muito mais divertidas do que o trabalho na fazenda, e talvez no futuro, ele pudesse mudar de atividade e se tornar um rock star.

Pai e avô queriam maximizar a colheita, regular as máquinas para diminuir as perdas. Desejavam organizar a fazenda como se faz com uma empresa. Nas conversas que tinham com o neto, ele não se mostrava muito estimulado a mergulhar de vez na vida do campo. Seu pai era ríspido e insistia que ele, na condição de único herdeiro, não poderia fraquejar, nem desperdiçar energias com nada que não estivesse relacionado com o trabalho. O avô era um pouco mais compreensivo, dizia ao pai do rapaz "se isso tudo vai ser dele, ele poderá inclusive tudo vender". Para o jovem, o trabalho estava no limite do suportável. Nunca fora um intelectual, mas pensava em estudar fora para se livrar, pelo menos por algum tempo, do serviço no campo. Gostava da vida na cidade, carros, mulheres elegantes, prédios altos com aquecimento central, a vida nas cidades parecia muito mais dinâmica, divertida e cheia de oportunidades. O jovem sabia que a fazenda um dia seria dele, e não podia desperdiçar o esforço de seus antepassados. Sentia-se com as pernas atadas a cordas opostas que seriam puxadas por tratores. Dentro de casa encontrava seu salvo conduto, enquanto estivesse ali, os tratores permaneceriam desligados e suas pernas intactas. Amava seu pai e avô, mas também os odiava na mesma proporção.

Às vezes ia até o limite da propriedade e de lá conseguia enxergar os muitos quilômetros de terras planas do Piemonte, que antecedia o pequeno Vale d'Aosta, vizinho da França, e era daquela direção que os ventos que chegavam se transformavam em vozes e chamavam seu nome, aquele era o chamado da vida, da juventude, da criatividade. Mas se quisesse poderia ignorá-los e se transformar no maior produtor de sorgo da região.

Paris, as dançarinas de cabarés, conhecer artistas, cientistas, subir na torre Eiffel. Tornar-se um pintor famoso, ganhar muito dinheiro, comprar outras fazendas de sorgo para doá-las a seu pai. Sabia que não poderia perder muito tempo com a decisão, o fogo enfraqueceria e se transformaria em carvão quente. Durante os almoços ele estudava a fisionomia do pai sem que ele percebesse, lábio superior encobrindo o inferior, testa estreita com olhos pequenos, mas um pescoço forte e ágil, pronto para colocar a cabeça bem em frente de outra com queira conversar. Era difícil diagnosticá-lo sobre o humor, os olhos muito pequenos não deixavam escapar sentimentos, e durante a maior parte do tempo ele permanecia em silêncio. Então o filho optou por dar a notícia de sua partida em um dia cheio de luz e com poucas nuvens.

Os três sentaram-se para almoçar nos mesmos lugares de sempre. Antes de falar, o jovem percebeu algo que em todos aqueles anos almoçando juntos jamais percebera. O espelho que fica ao lado da mesa, tinha duas dobras também espelhadas e que serviam para serem fechadas à noite. Nessa casa elas nunca foram fechadas. Então, só hoje ele reparou nos reflexos daqueles velhos espelhos trabalhados. O rosto do avô parecia desprendido do corpo, era uma cabeça silenciosa que engolia macarrão. A do pai parecia maior do que é, a tonalidade vermelha da testa era o Vesúvio vomitando suas entranhas. Encontrou também sua própria cabeça, o grande nariz encobria a boca — fato que imediatamente diminuiu nariz, indicando uma segunda camada de personalidade mais adocicada, que no entanto, continuava sendo dominada pela montanha da arrogância.

O almoço terminou em silêncio, os pratos foram recolhidos pelo jovem, que depois de lavá-los foi para a varanda e perdeu olhares na extensão dos campos de sorgo. As ondas provocadas pelo vento dançavam verdes. Sentiu o sopro do mundo nos pelos do braço, os cabelos flutuaram, a natureza envolvia-o na palma da mão, fazendo descobrir no alheio uma força que julgava só sua. Cinco dedos poderosos eram ao mesmo tempo gentis e autoritários, mas esse acolhimento vigoroso engolia resistências, permitindo ao sono, à morte, ou a qualquer outro tirano implacável, triunfar absoluto sobre suas presas. E assim se deixou levar, quieto, raciocínio estático como a neve no alto dos Apeninos, até que o verão derreteu a massa imóvel e as ideias começaram a escorrer. Aquele poder que experimentava não era totalmente isento da força humana, fora ela que, de fato, determinara que aquela planície seria verde, que organizara os canteiros, distribuindo uma harmonia da qual o acaso costumava privar a natureza.

Respirou o ar exalado por dezenas de gerações, que voltavam a viver em seus pulmões e que se quisessem, poderiam gritar com sua voz. Permaneceu calado, recheado por sua missão coletiva. A planície desenrolava-se em colinas que desapareciam no horizonte, os bosques selvagens ou humanos, espalhados pela terra que não pode ser devorada por olhos e que desdenha a riqueza da imaginação, serão arados por dentes ferozes saídos de bocas que habitam dentro da sua. Abriu-a, para que a corrente geracional fosse desenrolada. Seu corpo vigoroso será adubo para flores brancas, e suas lágrimas se transformarão na fraqueza da flor diante do vento.

Não sabia quantos dos cinco dedos que o envolviam eram humanos e quantos naturais, mas isso não importava, afinal ele mesmo, era, em efeito, uma construção sócio-humana, ou um mero fruto da natureza?

Entrou em casa, sentado no sofá observa uma cadeira. Suas formas clássicas, a maneira como a palha entrelaçada forma assento e encosto. Depois percebe como o corpo humano encaixa-se em cada uma das partes, os rangidos das madeiras e a palha sendo laceada. Mas eram outras as observações que mais o interessavam, não sabia ao certo o que queria, uma vez lera algum livro onde o autor dizia conseguir penetrar na essência do objeto, e era mais ou menos isso o que desejava, conseguir por alguns minutos se transformar em uma cadeira, sentir o que ela, a cadeira – ou uma pessoa tentando ser uma, sentem. Fechou os olhos, respirou fundo três vezes, observou-a detalhadamente, sem conseguir encontrar o ponto de entrada. Procurou concentrar-se, mas há sempre o leão pintado de cor de rosa, nas horas que menos precisamos dele. Conseguiu enjaular o animal e concentrou-se totalmente na cadeira, apalpou a parte debaixo do assento, sentindo o volume das cabeças de pregos. Permaneceu ainda duas horas tocando em detalhes e descobrindo pequenas imperfeições, depois mais meia hora com a cadeira no colo e de olhos fechados. No final desse período de concentração, colocou-a no chão e saiu para fumar um cigarro. Fracassara. Não chegara nem perto da essência da cadeira. Se tivesse obtido sucesso, iria tentar fazer a mesma coisa com uma mulher, ou com dinheiro. Fundir-se com um objeto, poder ou pessoa, que existirá para te servir.

Foi trabalhar. Os óculos escuros há anos transformavam o verde em cinza. Preferiu o desconforto do sol. A luz espalhava cores e sombras pela cabine do caminhão, o mundo brilhava, lembrou-se de Paris, apenas uma pérola na grande coroa, havia muito mais, uma caixa feita de rubis e enterrada dentro de um sonho, quando é aberta revela objetos e tempos mágicos, um portal de outras consciências e consistências, recordações cheirosas, enfio a mão em uma névoa que faz cócegas, a vida parece estar me dando boas-vindas, descubro no fundo da caixa os objetos luminosos, alguns levitam, outros são a brisa ou a sorte, abro e fecho olhos, tanto faz, as surpresas acontecem, estão, não sei que verbo usar. As formas parecem que engoliram toda a geometria, octaedros saudáveis espalham triângulos escalenos com a perfeição do círculo. Enfio o braço inteiro dentro da caixa e sinto sabores embaixo da língua, as melhores sensações vêm da parte encoberta, onde não há luzes, encosto em um mistério que faz todo meu corpo tremer e cada célula gritar suas alegrias, imediatamente apaixono-me por madeiras, pedras, sorgo e mulheres, mordo lábios que são espalha-sangue, e depois, fatigado por ser todos sem conseguir ter sido um, entristeço-me com os desejos não realizados e sua imediata consequência: a queda de um dente. É banguela, que, depois de um banho de banheira, observo, isso mesmo, vejo de fora meu corpo rodopiar até ser sugado pelo ralo, desaparecido. Na água suja que sobrou, havia um pouco de gordura corporal, e flutuando sobre ela, algumas palavras, que eu costumava nunca dizer.

Ele acordou primeiro dentro da noite, depois do caminhão, demorou a localizar-se, como fazem os homens muito velhos ou as crianças pequenas. As luzes da casa estavam acesas e seu pai e avô deviam estar jantando. Ele sempre era repreendido quando atrasava para as refeições. Lavou o rosto com uma mangueira e por um segundo lembrou-se dos pequenos objetos mágicos dentro da caixa feita de rubis. Enquanto corria para a casa decidiu que acontecesse o que acontecesse, hoje era o dia em que contaria sobre sua saída da fazenda. A noite esfriava e era desses ares que precisava para encher os pulmões de determinação. Quando entrou na sala os dois homens estavam terminando suas refeições, não tiravam os olhos de seus pratos. O silêncio morre atacado pela concha derramando sopa no prato do jovem. Ele saboreia sua refeição e faz duas observações sobre a qualidade da comida, que ficam sem resposta. Convida o pai e o avô para jogarem baralho depois da janta. O pai diz que está cansado e vai dormir, o avô demora um pouco para responder, olha nos olhos do neto, parecendo querer confidenciar algo, sem se conseguir fazer entendido, apenas repete as palavras de seu filho.

O espelho engolia parte da frágil luz amarela vinda do teto, pincelava os reflexos com a cor que costuma se esconder embaixo de armários ou atrás de almofadas. Antes que qualquer um deles se levantasse, e quando se preparava para falar, o jovem calou-se. As três cabeças eram uma. As imagens se sobrepunham no espelho, reconheceu a boca do avô embaixo de seu nariz, era com seus olhos que o pai enxergava. Duas lágrimas geladas desceram-lhe pelas maçãs do rosto, reconheceu suas esperanças escorrendo pelas rugas de seus antepassados. Levantou-se, e pela primeira vez desde que moravam naquela casa, fechou o espelho. Depois foi tratar da plantação de sorgo.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Guido Viaro. Escritor e cineasta curitibano nascido em 1968, é autor de 19 livros, dentre eles, O cubo mágico, Via Alpina e O princípio da incerteza.

 

 

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