©sguimas
 

 

 

 

§

 

 

Enveredo pelas vielas

Tristes de um bairro

Gato parvo no meio da rua

 

Terrenos colocados à venda

A casa grande e velhas muretas

Dividem lembranças antigos vizinhos

 

Tijolos rebocos ali descansados

Em meio ao silêncio soturno

Uma nesga de lua observo

 

Rosto em nalgum plano reconheço

Resvaladas nos dedos

Restam folhas secas caídas

 

A resfolegar do corpo

Sinto que estou vivo ainda

Que o nome disso seja apenas tristeza.

 

 

 

 

 

 

§

 

 

Aprendi com as aves a (não) chorar

habituado a plainar

infortúnios em anéis de vento

 

Sobrevoei passados e

sob as garras afiadas do presente

trouxe inúmeros pecados

 

Em meu coração despojado

lágrimas já não vertem

escoimadas pela fenda do tempo

 

Mantendo olhos libertos

perpétuo alento trago em meu peito

livre para o voo perfeito.

 

 

 

 

 

 

§

 

 

Num

céu de

estrelas

bailarinas

brilhavam olhos

mais que lamparinas

 

 

 

 

 

 

§

 

 

No final do dia

devolver as pedrinhas

do sapato pra rua

 

 

 

 

 

 

§

 

 

Mordo a maçã

calcinha da cor

unhas e lábios

 

Rubro encarnado

na lavra da terra

o sangue de boi

 

Ao sinal de baco

o cálice sagrado

vinho tinto verte

 

Na pedra o filete

no rasgo o extinto

da perna que ralo

 

Na conta o vermelho

no céu a vertigem

arde na imensidão

 

Da cor o pecado

do mal fui tomado

pelo bonde chamado

 

O profano desejado

mais que o bendito

me põe avermelhado.

 

 

 

 

 

 

§

 

 

vermelho

a cor

latente

 

azul

a cor

mais quente

 

verdes

anos

da juventude

 

amarelo

sorriso

goma chiclete

 

 

 

 

 

 

§

 

 

um monte

no horizonte

vive

espetado

no agreste

cipreste

seu esquema

árido

poema

se dispersa

em concreta

miragem

 

 

 

 

 

 

§

 

 

Não posso ser árvore

Realçar insetos

Salivar a chuva

O quente dos dias secos.

 

Posso ser homem

Celebrar epifanias

Disparar olhares

Que me despem o centro.

 

No oco das árvores

Cabe um ninho

No das placentas

Um afeto.

 

Nas extremidades

Longos cabelos

Diluem as pontas

De galhos abertos.

 

Não posso ser árvore

Torno-me pedra

Calcifico perdas

No duro caminho.

 

Entre seres e árvores

Vivo o primitivo

Verde broto

Das manhãs que canto.

 

O fruto proibido

Dentre todas sementes

Ser mente e sentido

Carne e fóssil ungidos.

 

 

 

 

 

 

§

 

 

Escrever é

cometer um strip-tease

adentrar pântano selvagem

com a alma desnuda.

 

É pôr-se incurso no imaginário

mergulhar rio caudaloso

desconhecido e desaguar.

 

É tesão por vocabulário

até quedar-se adormecido

entre tuas margens.

 

É quase um suicídio ao avesso

expor-se ao lado oposto

dúbio e recôndito.

 

Escrever é

o estratagema

o que poderia ser edema

para se lançar ao infinito.

 

Renascer no corpo a corpo

quem nu nos olha

de um ponto a outro.

 

É o que é revelado

nas entrelinhas do verso

até que nos ponha impresso.

 

Escrever é pagar o preço

de viver como se fosse

um ínfimo momento.

 

 

 

 

 

 

§

 

 

Musas inspiradoras

se levadas a sério

arrebatam mistérios

 

Musas de verdade

traços da maturidade

estampam a pele

 

Literatas que só elas

são um achado

para poema

alçar voo

de impuras a

virulentas musas

aspirantes em brasa

 

Mas sem dó,

contigo fodem

num verso.

 

 

 

 

 

 

§

 

 

João é motorista da Carris

descansa por alguns segundos

braços sobre o volante

a qualquer sinal está alerta

para-brisa carro adiante desliza

que não vê Luiz, Pedro e Antônio

despejarem piche sobre a pista

que não vê Graça ler um livro

que não vê Júlia espiar o título

que não vê cabelos tocar Richard

que não vê coração em Maria

que não cobra por companhia

que pro mar não tem vista

que na volta incompleta

sem dar um pio

o dia finda

controversa

volta pra casa

na companhia da mesma Carris.

 

 

 

 

 

 

§

 

 

Um poema deslembrado

Sobrevoa a cidade

Repousará nalgum telhado

 

Feito folha afinada

Sobre a calha encalhado

Após a enxurrada

 

Andará perdido

No bolso dum casaco

No cabideiro da loja de usados

 

O poema desautorizado

Se torna afamado

Por quem olhos tem pousado

 

Quiçá nem título leva

Almeja o anonimato

Por ser livre e diversificado

 

Que cidade o tenha

Como valiosíssimo

Em segredo bem versado

 

Traços que dirão

Na pele se tatuado

O dia que for lembrado.

 

 

[Do livro O que ficar desperta. Bestiário/Class, 2022]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Gerson Nagel é pisciano, santa-cruzense, radicado em Porto Alegre/RS. Produz as edições da Revista Escriba digital. Estreou com Prometo não invejar as gargalhadas. Premiado em concursos literários, integrou inúmeras antologias e sites literários. Menção honrosa no Prêmio Lila Ripoll (2016 e 2018). Como produtor e agitador cultural, em 2021, recebeu o Prêmio Trajetória Criativa pelo Plano Municipal do Livro e da Leitura (PMLL), da prefeitura de Porto Alegre/RS. Quando não está pedalando na orla da cidade, visita as estrelas. O livro O que ficar desperta é o seu segundo voo solo na poesia.

 

 

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