©guy bourdin
 

 

 

 
 

 

 

 

boas-vindas

 

 

primeiro o susto

primeiro desterro

primeiro um tom inaudível

um raio espesso

dentes em festa se chocando

primeiro

 

 

 

 

 

 

bandeiras

 

 

o maior mistério da Grécia

morava no fato de que as mulheres podiam

sangrar por dias seguidos

sem morrer

 

o sangue,

ali,

não era guerra

 

sangue fluxo quente fluxo corrente Mirtes enlouquecidamente

tingindo o jardim

 

bandeiras e

bandeiras nos varais

 

 

 

 

 

tua cara vai ser capa da revista que você lê

 

 

tua cara vai ser capa

da revista que você lê

 

imortalizada

de maiô asa delta

a teta e a casseta

tudo lá

 

sua mãe vai dizer

eu sempre soube essa

criança

seria um sucesso

sua avó vai sorrir

 

você não vai morrer

aos 26

no parque no meio da tarde?

 

tua cara vai ser capa

da revista que você lê

 

te exibiremos nas casas

louvaremos a sua existência

como uma santa futurista

 

e o futuro vai chegar

 

 

 

 

 

 

filhas

 

 

algo de são, sim

que acho pertencente a nós

nos mantém aqui

acordadas

dupla exposição fotográfica (sobrevida)

transferências cotidianas e os cheiros ficando

cada vez mais fortes e os dedos ficando

cada vez mais ristes

 

gostam mesmo é de observar o movimento d'água

até desaparecer na areia

 

de perguntas de bicho demasiado humano

 

que é que comem os moleques que a gente vê lá de longe

carregando bandejas de peixes?

quem é que cuida da praia se ela ficar doente?

como é que a onda para quando tá cansada?

 

inclinação pra endoidecer

espírito de fuga

retorno ao passado

 

fossem mar

seria bravo

 

 

 

 

 

 

refugiados

 

 

sentir a praça pelos pés

discutir Tolstói com as mãos

 

também desejamos terra

 

terra é carne que quanto

mais se reparte

mais se tem

 

das nuvens

nenhuma palavra:

pacto de cumplicidade

 

 

 

 

 

 

reclame aqui

 

 

desfazer: desapropriar: desejo

devolver ao mundo aquela sua cara de meio-dia

alguma mania que ficou presa nas minhas pregas

são tantas devoluções que encheriam prateleiras

estoques e estradas com caminhões de carga

como o da transportadora que levou minha casa embora em 99

 

faço terapia, canto e poesia

nunca deu em muita coisa

você parece melhor do que eu

você e sua tela azul

sua janela verde

sua jaula empoeirada

 

eu crio turbulências

mas também faço um bem danado:

a heroína que veio com defeito

 

 

 

 

 

 

morro d'água

 

 

morro homem

morro mulher

morro e sarinha

benzedeira

que se mudou pralemanha

com um alemanco

morro vila brasileira

jogador de capoeira

verde pipa pipe borogodó

samba bamba, enredo

samba choro, xote

entra primeiro se tem dinheiro

sai por último se tem sorte

morro velho de bengalho

preguiçanda até o anoitecer

amor na cama, na praça

amor na pia, na boua

um rio te movimenta

e o mato rasgando o cimento

é sua marca d'água

 

 

 

 

 

 

partida ao meio

 

 

seu braço parece de um macaco

e descobriu ter pelos

nem mulher era ainda

na quarta série no máximo

quinta

 

voltou da escola e chorou muito

mas esperta desenvolveu

uma técnica infalível

de esfregar os braços com bucha

Scotch-Brite™ até caírem

 

cortou a sobrancelha

depois,

deixou de ser andorinha

virou pernas de rã

partida ao meio

na mesa do jantar

 

 

[Do livro Tempo sem cruz. Primata, 2022]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Flora Miguel é jornalista, trabalhadora da cultura e poeta. Tem textos esparramados por veículos literários no Brasil, Portugal e México. Assina a canção "Pela Cidade", em parceria com o duo de cantautores A Transe. É aluna do CLIPE (Curso Livre de Preparação de Escritores da Casa das Rosas - categoria poesia). Tempo sem cruz, um lançamento da Editora Primata, é seu livro de estreia.

 

 

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