©sguimas
 

 

 

 

Dissocia

 

 

Não danço quando não há companhia

Sou invadida por uma timidez velada

Que somente em escutar a música

Emudeço e adentro

Estendendo meus braços para o alto

Para que me sinta um traço displicente

Desejando ocupar minimamente

O espaço cedido pelo ar

 

Assim diminuta

Sou um corpo que não transparece

Estar presente sem ser notada

Delírio de invisibilidade

Medo do apontamento pela ausência

Que clama pela presença inesperada

Devir compulsório

 

Queria um corpo-console-inconsciente

Que dança se outros dançam

Quase espelho em que não reflito

Assim se somente me noto

Ensaio movimento

À falta de acomodação

 

Quando entre outras

Parece-me que por segundos

Meu pensamento ocupa-se da música

Enquanto o corpo destila-se em coexistir

A canção capta as arestas

Descanso e aparto-me

De mim sem mim

Através do tempo temido que não vi

 

 

 

 

 

 

Interesse

 

 

Quero saber quase tudo

Seu tipo sanguíneo

A última vez que chorou

O que pensa sobre a astrologia

 

Quero que me conte de um sonho que teve

Que me diga quem te fez mal e quem te fez bem

 

Quero ver seu corpo todinho em detalhes

Sem pressa

 

Quero um contrato

O mesmo teto

A mesma cama

Um álbum de fotos impressas

 

Quero sair pelo mundo

Agarrada à sua mão

Pelos antigos lugares

E assim tê-los todos em minha memória

Agora com sua presença

 

 

 

 

 

 

Dividida

 

 

Caminho sem pensar nos meus passos

Eles seguem enquanto meus braços se agitam em um outro movimento

Minha cabeça flutua entre uma lembrança que acende

e um evento iminente que provavelmente não ocorrerá

Não há nada a fazer, embora devesse começar algo

Com meus olhos observo o que há de diferente, há tantos

desconhecimentos que é impossível registrá-los

O ar que entra e sai cumpre sua função, displicentemente

Saio, chego, sigo em trânsito

Cada pedaço de mim segue seu curso

Sou muitas, sinto tudo, não me atento para tanto

As partes se perdem, a matéria permanece coesa

Viagens simultâneas cujas experiências me escapam

E me surpreendo

 

 

 

 

 

 

Psi

 

 

Entre o querer e o saber

habita um desejo que nunca se sacia

e não adormece

insistência

 

entre o visto e o sentido

há palavras confusas

e necessárias

silenciadas

 

entre a origem e o destino

há uma investigação em curso

memórias sem testemunhas

incertezas

 

entre a doçura e o afago

habita o monstro

que cerra o punho

mas não abate

 

entre o proibido e o permitido

há o querer

o mesmo querer

que nada sabe

e a tudo se lança

 

 

 

 

 

 

Medidas

 

 

O que não me cabe não consigo guardar

Na memória na bolsa ou no papel

Aceito metades

Do tempo

Do sexo

Do devaneio

 

Não aceito metades

Do sono

Do amanhecer

De você

 

E nem desta árvore

Cujas raízes atravessaram as paredes do poço

E inundou o subterrâneo por algumas horas

 

A abundância que não se viu

É o desfecho possível

Que só pode ser sentido

Se conseguirmos imaginar por inteiro

 

 

 

 

 

 

Você tem medo de quê?

 

 

Gosto da lembrança

Dos monstros temidos na infância

Suas figuras assustadoras

Animadas pela memória

São a minha lembrança de passagem

Por vulnerabilidades distintas

A percepção de que monstros não existem

É substituída pela realidade

O que existe

Tem nome voz imagem

Existência garantida

Tão humanos quanto todos os humanos

Capazes de monstruosidades humanas

Distintamente semelhantes

Assustadoramente previsíveis

 

 

 

 

 

 

Ausculta

 

 

As poltronas guardam os homens

Lado a lado olhando na mesma direção

Braços recolhidos

Rostos perfilados

Teatro de sombras no palco

Apresentado nas suas formas

Recortes e movimentos

Descoloridos e silenciosos

 

As poltronas suportam os homens

Gritando insultos e palavras doces

Lambuzando-se com a geleia do pão

Rasgando papéis com os dentes

Batendo os pés na madeira que protege

O chão recentemente reconstituído

 

As poltronas confortam os homens

Em seus desafios soluços gritos risos

E discretamente os acalentam

Transferindo a maciez do que é tecido

Para os músculos contraídos e doloridos

Anestesia sem duração definida

 

As poltronas sabem quase tudo sobre os homens

Registram o cheiro a voz a culpa

A forma o movimento a força

O sangue que circula de forma desigual

O tremor quase imperceptível

Em cada um em cada cena

Para todos os fins

 

 

 

 

 

 

Séculos

 

 

Querer não basta

É preciso rastejar pelo território sem trincheiras

Sob as balas que cruzam e tiram a pele

 

Sonhar de nada vale

É preciso subir ao palco e assassinar o rei

Desligar o som e encerrar o show

 

Viver não é suficiente

É preciso morrer cem vezes

E outras tantas

Para que o tempo seja generoso

 

E restaure o humano revolucionário

Que possa enfim descansar

Sem sentinelas

Sobre a terra que lhe foi devolvida

 

 

 

 

 

 

Interrogações

 

 

O que diria

A cena ainda não vista

De improviso

No ato da estreia

 

O que nos caberia

Espectadores que somos

Sem as expectativas que perdemos

Apenas plateia silenciosa

 

O que nos resta

No espetáculo de horror

Figurantes na dor alheia

Atingidos em cheio

Todos alvos

No momento oportuno

 

 

 

 

 

 

Lugar nenhum

 

 

Um barco à deriva

Por mais que esteja perdido

Tem como endereço

Um oceano

Um rio

Um nome

Um porto

 

Uma mente à deriva

Por mais que esteja lúcida

Perde-se em lugares sem endereço

Sem nome

Sem gente

Sem margem

Em silêncio

 

 

 

 

 

 

E(levar-se)

 

 

Fez-se sombra e meu corpo esfriou rapidamente

Fui invadida por uma dor aguda

Em um ponto não identificado

A integridade aparente da pele enganava meus sentidos

Sentia uma parte de rasgando

E por esta abertura brotaram minhas asas

Foram pesadamente se expandindo

E lentamente fui me inclinando em direção ao solo

Não as via e não conseguia tocá-las

Tinha dificuldade para me virar, olhar o céu e enxergar os outros

Percebia seus movimentos quando perdia o equilíbrio

Em um súbito momento de coragem subi até um ponto alto

Minhas asas se abriram e senti que levitava

Na iminência do meu último e único voo

Lamentei não ter deixado registrado

: desejei tanto ar que ganhei asas

 

 

 

 

 

 

Nada

 

 

Nunca viajei a lugar nenhum

Nunca deixei esta casa

E vejo pela janela esta rua de asfalto

Que a cada década

Recebe um novo pavimento

Anseio pela máquina

Cheiro de química asfáltica

Que cobre a antiga rua

Gasta pela chuva pelo atrito

Pelo vento que movimenta os elementos

Pelos passos dos que saem

Pelos carros pelos ônibus pelas rodas

Pelo bicho por tudo o que aqui encontra rota

Menos por meus passos

Estanques

Que não pisam na rua em frente à casa

(talvez em sonho)

Sei que qualquer passo

Haverá de passar um dia pelo asfalto

Serei quando?

 

                  

 

 

 


 

 

 

 

 


Flavia Ferrari é poeta e professora da rede pública de São Paulo. Escreve desde a adolescência, mas começou a publicar seus poemas no início da pandemia, compartilhando seu trabalho nas redes sociais, participando de antologias e contribuindo com revistas literárias digitais. Lançou, em 2021, o seu primeiro livro de poesia, intitulado Meio-Fio: Poemas de Passagem. A obra foi editada pela Editora Eu-I do Toma Aí Um Poema, o maior podcast de leitura de poemas lusófonos.

 

 

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