Fog



...E se eu perdesse o corpo

e me fizesse névoa,


ficaria um tempo entre os leões,

(os bichos)

e os guerrilheiros patriotas,

libertaria os pobres labirintos,

todas as armas biológicas

e as coleções genéticas...


— quem sabe eu só temesse o vento

sabotando o livre arbítrio? —


Faria tudo que hoje não posso:

nuvem que se dá ao luxo de ser antiética.







Aureolada



Eu tão anjo tenho andado

que em mim nasceram asas.


O que me perde pro céu

é esse meu grande rabo endemoniado

e minhas coxas grossas...







Hospedeira



Rompeu um silvo pavoroso

e encheu-me as entranhas

de assombro,

medo e gozo.


Causou fissura no Tempo

— grito intrauterino,

intravenoso —

trespassou a borda do Universo.


Voluntariosa criatura,

gêmeo univitelino

perigoso, diverso.


Cara-metade escura,

face escondida da Lua,

meu reverso


Desarticulou meu cerne,

chutou-me aqui dentro,

bateu-me para sair

até rasgar a carne.


— Hóspede traiçoeiro!


Foi assim que nasceu

 — como um oitavo passageiro —

meu outro Eu.







Vampira



Sedenta,

provo com a língua

e gosto

do gosto do teu beijo.


Tua desdita, meu desejo.


Deixo-te vazio e me afasto,

satisfeita.


Devoro a alma,

mas ponho

no pires do meu gato

o sangue

dos homens que mato.







Falsa Fera



Nem tudo que mostro

veste o seu gosto,

nem tudo que tenho

é para seu bico,

nem tudo que é grito

entra em seu ouvido,

nem tudo que digo tem

que ser um fato.


Mas,

avessa ao contrário do vício,

brindo ao início da vodca

e por hora, fico.


Não deixo rastros,

mas quero indícios. 


Batom da boca na pele sua?

Esqueça!

Marcas no pescoço eu faço:

me peça.


Não fumo

e acendo um cigarro.

Apago

e adentro

— salto alto e saia de fendas —

no seu carro.


E o beijo, ah! o beijo, amigo,

pra mim é a véspera

do sarro...







Itinerantes



Meus olhos estão de malas prontas.

Embarcam hoje,

às três e meia da tarde.


É incerto o itinerário

e nem mesmo sei

a duração da viagem.


Mas o destino é certo:

outro desejo em alto-relevo,

outra paisagem.


Meu olhos nômades,

procuram fertilidade.

Semeiam, chovem, colhem.


Mas os teus são inóspitos,

por isso estive só de passagem.







Espiral



Meu passado

ora me chicoteia as costas

e sangro,

lanhada e roxa


ora me morde a nuca

docemente

e me encoxa.







Meu D. Quixote



Tinha dragões capturados

que repousavam, pintados,

em seu braço.


Mas a paixão perdeu o viço

e depois disso,

vejo desenhos de moinhos

tatuados.







Falsa



Fica mais um pouco

dentro do meu quarto

— em troca do meu cansaço

eu te guardo o sono —


Fica mais um pouco

nos meus braços mornos,

que eu me finjo mansa


e destruo em ti

o homem dos meus sonhos

porque fingir cansa.







Saudade



Espinho de rosa,

fiapo de manga,

presente guardado

no fundo da bolsa

pedaço arrancado

que ainda coça.


Saudade é bordado

dentro da gaveta.


O lábio puído

da falta de beijo,

unha de pimenta,

melado no dedo,

nome costurado

em dobra de vestido,


saudade é verdade

que a gente inventa.


Formiga-de-fogo

infestando a alma

poço sem caçamba

sem corda e sem água

sepulcro de sonho

e na pele um Saara


saudade é febre

que dá e não sara.







Pau a Pau



Ok, amor,

divido a conta do restaurante

assim como queres tu.

Mas de agora em diante

também me darás

teu cu.







Mitológica



Na beira do penhasco

engastado no rochedo,

um corpo imune à morte,

uma pedra imune à vida.


E a Alma empoeirada,

de portas sempre fechadas

estala ao vento norte

feito casa antiga.


Há lençóis cobrindo espelhos,

vergonhas e velhos móveis,

inalienáveis armários cheios

de cofres fortes e fósseis.


Inválida, alienada,

a castelã sempre sonha

e nem ela, nem o tempo

aparecem na sacada.


Mas num dia como outro

pelo vão da janela entra,

envolto em jornal velho,

um deus manco e torto.


No cavalo branco de pó

traz fantasmas e roupas de festa,

beijos-de-faca, guitarras,

bocas coladas e orquestras.


A Alma outra vez habitada

passa a noite acordada agora:

com Amor dança e seresta

o vazio está lá fora.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Flávia Perez (Rio de Janeiro/RJ, 1968). Publicou os livros Leoa ou Gazela, todo dia é dia dela (2009), Poesia se escreve com T (2011) e AntropoFlágica (2015). Participou das coletâneas Bar do escritor (2009, 2010, 2012 e 2014), Sopa de letrinhas (2017), A parada não para — antologia da parada poética (2018) e As mulheres poetas na literatura brasileira (2021).

 

 

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