©sguimas
 

 

 

 

CÂNCER

 

 

Nunca diga a palavra nunca,

você dizia.

Acenda um cigarro

engula o escarro

assopre a espuma mas nunca

nunca use a palavra nunca.

 

Algumas vão escapar

pelas pontas dos dedos

algumas vão grudar em você

outras vão cair

e despedaçar.

Você se mantém impassível,

são apenas xícaras.

 

A velhice não chega para todos,

essa é uma verdade feliz.

 

Posso ouvir sua voz no fundo do vídeo,

tínhamos cigarros e ríamos de tudo

brincávamos de horóscopo

mas evitávamos a palavra câncer.

 

A velhice não chega para todos —

essa, a verdade mais triste.

 

Nunca trate mulheres

como xícaras nunca

nunca espere a cura

nunca ame depois

nunca despreze a palavra nunca.

 

Você morreu aos trinta

com um tiro na nuca.

Mas evitávamos a palavra câncer,

não foi nossa culpa.

 

 

 

 

 

 

ARQUITETURA

 

 

Não quero construir nada.

Talvez uma letra de música

da mais vagabunda

para tocar na estrada.

 

Chegar no meio da vida

sem olhar para trás.

Não quero construir nada

que não, de mim, uma versão

cada dia renovada.

 

Moro num bairro que não me diz nada.

Para meus vizinhos eu sou o vizinho

que ainda liga o rádio.

 

Flores que não plantei

enfeiam a frente da casa alugada.

Julguei fizera tudo errado.

Chuva morte erva daninha:

se refaço a matemática,

é tudo dádiva.

 

Uma perversão, edificar a coisa edificada.

Eu não quero construir nada.

Só transformar em ruínas, todo dia,

o que em mim se faz

parede erguida, nova morada.

 

 

 

 

 

 

HISTÓRIA DE UM CORPO

 

 

Desconhecias os mitos:

o mundo se punha claro diante de ti.

Havia peixes nos rios

e um coro de macacos

para encerrar o dia.

 

Teu corpo era o único mistério

e o investigavas com teu vizinho

até que foram flagrados

por tua irmã, que advertiu:

 

é pecado. O resultado

era um palpitar momentâneo

imediatamente resolvido:

negociavas com tua irmã os teus pecados.

 

A cidade era um baile exótico.

Em vez de aguçar os sentidos,

paralisava tua imaginação.

 

Levou muito tempo para perceberes:

o mal-estar instalou-se

quando deixaste de cagar no mato.

 

 

 

 

 

 

MAÇÃS

 

 

Você me pede sempre

o impossível.

Você me pede muito pouco.

 

Que eu seja alegre

enquanto grito.

Meu grito é rouco.

 

"Me sirvam maçãs

de minha terra."

Da vida não força as fronteiras.

 

Você me pede sempre

uma merreca.

E quer que eu seja feliz inteiro.

 

 

 

 

 

 

FUGA

 

 

E, se resta alguma estima,

acima de tudo, promete: não voltarás.

 

Vai. É um risco cada esquina,

mas, corre as ruas como se fossem iguais.

 

Que elas não são. Não liga.

Eu te daria meu alforje.

 

Mas vê. Não há nada nele que consiga

tornar teu passo mais forte.

 

Não contes com asas — nem digas

que não te basta o ritmo incisivo.

 

Não, não te despeças. Não precisa.

Levas nos calcanhares

meu coração pervasivo.

 

 

 

 

 

 

PARTIR

 

 

1

 

 

Todos os dias penso em partir.

Mas sinto o lodo das pedras,

o deslizar dos peixes e

o calor molhado do ar

de minha terra / minha terra é vermelha /

segurando-me as raízes,

e sou obrigado a ficar.

 

 

2

 

 

Todos os dias penso em partir.

Compro o bilhete,

dobro camisas,

separo a escova de dente.

Mas uma chamada interrompe a noite,

rasga o inverno sobre mim,

afastando suas bordas:

diz que quer me ver.

Deixo-me iludir / fui lembrado /

e decido ficar.

 

 

 

 

 

 

INTERIOR

 

 

Aqui há uma chuva fina

como a dor dum revólver.

Chuva que não cai:

fica pairada no ar

sob meus cílios

cantando

uma coisa que não é música

é uma maçã verde

e uma conta de álgebra.

 

 

 

 

 

 

VONTADE PRIMEIRA

 

 

Tu não querias um poema assim.

Tu desejavas um ventinho fresco

que te acalmasse essa dor imensa

ou disfarçasse o vazio imenso

e fosse amigo, conselheiro e tudo.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Eleazar Venancio Carrias nasceu em 1977, no município de Tucuruí, no Pará. Publicou os livros Máquina (Urutau, 2021), Regras de fuga (e-galáxia, 2017) e Quatro gavetas (Fundação Cultural do Pará, 2009), vencedor do Prêmio Dalcídio Jurandir de Literatura, na categoria poesia. Doutorando em Educação na Amazônia pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e mestre em Educação pela Universidade de Brasília (UnB), atua como pedagogo no Instituto Federal do Pará - Campus Tucuruí.

 

 

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