©typhaine_therry

 

 

 

 
 

 

 

 

"POEMA 166"

 

 

O que se aprende com os defuntos

não é estar mudo nem imóvel —

é estar íntegro, acabado, dócil,

mas de uma doçura de rocha.

 

O que se aprende com os defuntos

é estar presente, corpo inteiro,

isolado e ineficazmente colossal,

submerso em um frio tectônico.

 

Não, o que se aprende com eles

não é a arte da inércia, o nada —

é outro grito do ser, a fissura

que se abre em cada talvez.

 

 

 

 

 

 

"POEMA 183 – ÁLCOOL"

 

 

cachaças da minha alegria

ocos do meu desespero anil

raios que partem a dor do vazio

vermute das ilusões que não tive!

 

memória que entre belos escombros vive

blecaute ominosamente galhardo límpido

os vaga-lumes que me acendem de manhã

e as antas que me põem a dormir!

 

as corujas esvoaçam suas noites peroladas

eu anoiteço mais além delas e dos muros

anoiteço muito dentro do meu centro

e amanheço na outra estremadura de mim

esta zona fronteiriça entre grito e grito

vasto silêncio de números bárbaros

 

o sol só faz sentido quando perde sua força

e se torna sua caricatura barata

a agourenta máscara do falso óbvio

a rasidade veraz do sempre nunca

 

alambiques da minha euforia

geometria sem eixos do meu guiar

trovoadas assolam este silêncio de prata

cigarras cantam o firmamento de fogo

no lodo mais brilhoso os porcos são luz

 

garrafas marchando no túnel do tédio

as mulheres rasgam seus véus e já são borboletas

e a vida já se alarga mais ampla

e o céu já mais vermelho sangue celestemente

 

o eco guardado na garganta como tesouro

a gangrena nos plenos meios-dias

pústulas que pululam na planície

na várzea dormente dos meus ossos e bocas

ah lua absinto das noites mais velozes!

 

ventania de sal

som das lonjuras

todas cervejas da minha cabeça

tonturas de mar

alvo pôr-do-sol

todas noites da minha alvorada

 

as infames exclamações do ontem ainda ressoam

ressoam em meus ouvidos congelados

meus delírios se erguem no céu de uísque

as reles canções noturnas seguem chiando

hoje é o amanhã de ontem o ontem de amanhã

assim o ciclo segue firme religiosamente

as cachaças da minha alegria amém!

 

mais aquém talvez se visse o suor dos monstros

mais aquém talvez se achasse o elo perdido

mas aqui impera a sede torta destes homens

eu sou um deles e não quero distinções

afundo aqui solenemente rei como os outros

faço parte do ritual arcaico barbárico

sou também o vitupério a gargalhada o prurido

é assim a única irmandade que eu reconheço

 

esta reverência quase irreverente fanfarra

burlesca canção cantada por pulmões dilacerados

toada que freme nas mãos do largo destino

esta baía que me envolve todos dias do ano

canto canto sem ordem nem manto sem sossego

este desassossego aguado que pende da minha língua

minha traqueia exposta ao sem-som do mundo

estes são meus salmos ao deus nenhum da vida

 

cachaças da minha alegria

ocos do meu desespero abril

raios que alumiam a cor do vazio

vinho tinto das ilusões que não tenho!

 

e o que eu retenho é a percepção de vórtice

a sensação fetal do abismo para todos lados

pois o que sou é esta voz silenciada pelo grito mais eu que eu

o que retenho é sobretudo o que desde logo pereceu

 

sol de conhaque oh via-láctea da minha duração!

meus anos todos gastos à beira deste lago imundo

minha pele macerada nervo exposto da minha sede

oh senões do amanhecer neve suja de cada chaga

 

soluços meus de cada dia

meus pêsames a gargalhadas

barco furado num rio de cores murchas

escavadeira bêbada em acidentado terreno

holofotes pandemônios fumacenta arquitetura

arrotos meus de cada dia nervura

 

minhas horas de aguardente brutalizante finura

oh cântico ferrugento de redemoinhos verdes

a paleta em que combino as cores do mal

cinzel que uso para esculpir este bloco de fervura

 

ah cachaças do meu desatino

ecos da minha felicidade tormenta

lumes que me acendem mais dentro de mim

céus de gim com guaraná do meu passado

ecos que se enroscam em meu pescoço

sorrisos de pó que se formam no ar

 

ventania de sol

muro do destino

todas cervejas da minha barriga

tonturas de azul

gordurosas tardes

todas alvoradas da minha noite

 

cores desmaiadas vibram em meus olhos

alegrias úmidas vagas vertigens

oh alforrias inomináveis super-reais

o horizonte se desprende de si se afasta mais vasto

os anjos da morte não falam português não falam língua nenhuma

mas eu os escuto com os ouvidos bem abertos

eu danço neste idílio sem ninfas nem natureza

arcadismo imoderadamente realista misturado a mil impurezas

estes encantos me condenam à luz roxa ao chiaroscuro

me prendem à singeleza grotesca da minha pintura

estes monstros míticos de todo meu acordar

as cores desmaiadas vibram em meus olhos

alegrias úmidas voragens vertigens

todos estes ambíguos gólgotas e ressurreições

firmamentos que desabam e depois se erguem espontaneamente

pequenas mortes tímidos renascimentos aleluias

assim a roda gira a roda ardente girando sempre

rugido que entontece a vida acrobacia de vísceras

fac-símile da morte hosanas a plenos pulmões enegrecidos

a fumaça o vozerio o perene desmaio das cores

 

cachaças da minha alegria

ocos do meu desespero anil

raios que mudam o fluxo do rio

tequila das ilusões que não tive

 

memória

que entre belos ocasos vive

 

 

 

 

 

 

"POEMA 269"

 

 

Quase todo dia eu morro,

e quando não morro é pior ainda:

a felicidade me ergue

em uma sobrevida de rei.

 

Quase todo dia eu morro,

e quando não morro é melhor ainda:

eu desapareço gritando

em um silêncio sem lei.

 

Quase todo dia eu morro,

e quando não morro é morte ainda:

vida ainda:

eternidade.

 

 

 

 

 

 

"POEMA 308"

 

 

manhã de batráquios em festa

manhã de bumba-meu-boi

cheiro de jiló e de pesca

manhã do que nunca se foi

 

eu acordo impreciso

eu acordo dormindo

poucos metros acima o Sol

nas areias o céu se granula

mas por que os urubus me seguem?

 

eu que nem sequer tenho lepra

que nem sequer furei os olhos de Édipo

eu acordo tão vago e distante

nos olhos fechados de um bicho de Sol

 

e afinal por que tanta Lua cheia?

se só tenho um coração capenga

e dois olhos de ave de rapina velha

e cada vez que torço minha roupa só sai lodo

 

todo sal deste rio me dá tanta sede

e os caranguejos no mangue escrevem úmidas preces

quando eu atravesso a lentidão das árvores

que prometeram devolver meu sono numa canoa

 

manhã de batráquios em festa

manhã de bumba-meu-boi

cheiro de jiló e de pesca

manhã do que nunca se foi

 

 

 

 

 

 

"POEMA 339"

 

 

Sonho atroz suspenso na lentidão do dia.

Taquicardia das nuvens. Farsa.

Congestão histriônica dos diálogos.

Luz atroz no palco. No dia vagaroso.

Senectude de tudo. Cegueira, farsa.

O sono calvo da velocidade.

E os incautos pássaros da alvorada,

as aves que carregam os fogos.

Trazem-nos do futuro. Queimam tudo.

Suave incêndio. Escuro imenso.

O mau alvo da ferocidade.

Sonho atroz suspenso na lentidão da dor.

Aneurisma das luas. Noite.

Noite mergulhada em cicatrizes.

Imensa brancura despontando no horizonte,

doloridamente.

Branca brancura crescente.

Ofuscamento.

 

 

 

 

 

 

"POEMA 361"

 

 

Como parar este corcel de luz

quando as arraias do azul cantam

e todos vaga-lumes brilham além dos céus?

Como, se a cor do absurdo

exala o odor da ruptura imensa

e a minha insânia é do tamanho

de um furacão? Como?

Como barrar esta noite fumegante

de ideias terrivelmente vivas?

Como parar este corcel de luz?

Como frear este veloz rumor de cactos?

Corcel de ventania e luz

que loucamente corre em meus olhos,

abrupta música que me despedaça.

 

Como partir este diamante de fúria?

Como, se os botos sugaram o lago

e as moscas empestaram o ar

com seu místico trinado?

Como frear este búfalo de sombras,

quando a savana que eu sou

se desfaz em hipnoses e vômitos?

Como estancar a fonte de fel e sangue

da minha podridão de purezas abstratas?

Corcel de ventania e luz

que divinamente corre minha alma adentro,

onipresente chama, centrípeta esfinge.

 

 

 

 

 

 

"POEMA 433"

 

 

Leito noturno,

cabalístico buraco,

chave da espessa névoa.

Alguém sussurra segredos

no medo, desvenda cicatrizes.

Acorda e dorme sem pestanejar.

Alguém obscuro,

improvável enigma,

breve berro na madeira.

Ele é o leito noturno,

túmulo de neve,

partitura que sangra lenta.

É alguém que conta

as lesmas debaixo da planta.

Alguém que, por hoje,

desistiu. Alguém,

mas quase ninguém,

que colhe os girassóis do Eterno.

 

 

 

 

 

 

"POEMA 497"

 

 

Tempo futuro:

urdidura do muro

em que se chocam

as horas frágeis.

 

Tempo passado:

emblema rasgado

das vãs vivências

que se apagaram.

 

Tempo presente:

espelho doente

em que se somem

todos os nomes.

 

 

 

 

 

 

"POEMA 622 – CONSIDERAÇÕES CÉTICAS"

 

 

I)

 

Há uma contravida,

mas ninguém sabe o que é.

E há uma contramorte,

mas ninguém sabe o que é.

À parte isso tudo,

tampouco há nada disso,

e ninguém, realmente ninguém,

sabe o que isso é.

 

II)

 

A metafísica é esta:

há um copo d'água que treme

numa espécie de corda bamba

e um pequeno pássaro medonho

que o sobrevoa de perto, sedento.

A metafísica é essa, sem mais.

O antes e o depois não se sabe.

E o então certamente não existe.

 

 

III)

 

Quando me perguntam

(e nunca me fazem tal pergunta)

o que eu sou,

eu normalmente respondo

que sou isso que em quem

pergunta pergunta,

isso que em quem responde

não sabe —

isso, sem mais.

Mas nunca me perguntam isso,

quando me perguntam.

 

 

[Do livro Asilo e anonimato, 2020]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Daniel Smuler é natural de Porto Alegre/RS, onde sempre morou. Tem formação em Filosofia. É autor do livro Asilo e Anonimato (2020), publicado de forma independente. Edita o blogue Daniel Smuler.

 

 

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