© thomas wolter
 

 

 

 
 

 

 

 

Enigma


Cruzo o rio
Mas não atravesso

Lado a lado
Conduzo os passantes

Aqueles que saem
De volta pra antes

Aqueles que voltam
Saindo do agora

Quem sou eu?
Pergunta o instante

Não sou o
Tempo

Nem sou o
Rio

Sou a ponte.






Garrancho


Meu olhar é um garrancho seco
Pescando os espinhos da manhã

Vozes de famílias matutinas
Arrastam o navio dos meus ouvidos

O tinir dos pratos sobre a pia
O rugir do vento contra as casas

Garrancho seco: um olhar de taipa
Erguendo a noite no barro da manhã






Março


Tom de outono
A chuva ainda cai

Tarde cinza
Escorre sobre as botas

Na esquina
O vento leva um gato

Não há pássaros
Rãs cantam nos telhados






Cozinha de vó


È preciso cozinhar o céu com erva-doce
Macerar a terra
Em grãos de hortelã
Musicar a pimenta (vovó Pimenta)
Girar a panela
No horário do tacho
E ao som da cigarra
Comer a mistura
Com o mel das estradas.






Sobrado


Dialogo com os espantos
Da casa

Teço fantasmas nos caminhos
De aranhas

Converso com as frestas das
Paredes

Desenho
Com os pingos na varanda

Apago ilusões
Descambo silêncios

E dessa música
Que é o ranger das telhas

Recomponho a velha
Sinfonia da memória.






Costura


Gira a cidade ao redor
De uma agulha

Pousada na linha
Entremeio de um poste

Onde um pássaro risca
A costura cinzenta

Da janela que pisca
Sorrindo pro norte.






A FLOR SEM A NÁUSEA
Ou A Náusea da Flor


                Para Drummond


Preso à minha pele
E aos meus ossos cansados
Vou de preto
Pela estrada vazia.

Não vejo homens: só
Mulheres —
Carregando no corpo a
Colcha dura do barro.

O relógio na estrada
Me castiga as retinas:
Sim
É tempo de compor a
Completa mudança.

Não há mais leiteiros
Não há mais leitores

(E os padeiros
Coitados
Mal conseguem amassar
Seu pão)

Mas no fim da estrada
Há uma flor repisada

Negando a náusea
Com seu Eco em chamas.






Sangria


A nuvem sangra
O açude sangra

O gato sangra
O verso sangra

A língua sangra
O corpo sangra

A mulher sangra
O homem sangra

Nunca pelo mesmo
Motivo.






ANNO DOMINI MMXXII


         A Anna Akhmátova


Gosto de sangue
Tem a terra
Na boca enlameada
Dos sapatos

Marchando
Em verde avenida
Na ida do fogo sobre os
Matos

Segue o progresso
Segue a ordem

Comida pela fome
Sobre os pratos

Daqueles que se
Erguem contra os
Muros

Do dia fuzilado:
Sons arcaicos.






Operários


Há uma campina no coração
Do asfalto

Onde os pássaros cantam
Pousados nos postes.

Não há folhas
Apenas sacolas.

Não se veem colinas
Apenas prédios.

Onde homens de testa
Enferrujada

Cantam como pássaros
Na noite.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Daniel Rodas (Teixeira/PB, 1999) é escritor, poeta e dramaturgo. Estudante de Letras (UEPB). Editor da Revista Sucuru. Autor da plaquete Eros e Saturno (Primata, 2021) e do livro Umbuama (Urutau, 2021), tem textos publicados em vários meios eletrônicos nacionais e internacionais, a exemplo das revistas Mallarmargens, Ruído Manifesto, Toró, Subversa, Kuruma'tá, Entreverbo, Trajanos, Aboio, Literarte (Argentina) e Granuja (México). Faz parte do grupo de teatro ExperIeus da cidade de Monteiro/PB, onde atua como ator. Pensa na poesia como um fluxo, como o fluir incontrolável da vida.

 

 
::  revista  ::  uns  ::  outros   ::  poucos  ::  raros  ::  eróticos&pornográficos  ::  links  ::  blog  ::