©sguimas [com imagem "o grito" de andréia michels]
 
 
 
 

I

 

 

O grito foi uma frase que, dita, virou convocação. Que, uma vez gritada, ganhou status de conclamação. Enfim, um chamamento emocionante que, com jeito e arte, repercutiu de norte a sul e fez história. O certo é que o grito continua ecoando duzentos anos depois. O grito, inclusive, é música para os ouvidos de muita gente... gente que, movida pelo patriotismo e/ou saudosismo, acaba de ter a ideia de instituir um concurso na esperança de resgatar o grito original dito por ninguém menos que D. Pedro I, às margens do riacho Ipiranga, em 7 de setembro de 1822.

 

Em resumo, os inscritos se comprometem a repetir o feito original, ou tentar reproduzi-lo, aproximando-se da entonação e sotaque supostamente empregados por Pedro de Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon!

 

Cada candidato deverá executar o grito sem qualquer ajuda tecnológica, como uso de microfone, ou auxílio estético, como trajes de época, ou ainda apoio técnico de terceiros, como maestro ou diretor. Em outras palavras, a performance será individual, ao vivo e ao ar livre, com todas as dificuldades impostas pelo meio ambiente. O local da apresentação será uma praça pública.

 

Mas é permitido e aconselhável aos candidatos — continua o regulamento — apelarem para a criatividade, a originalidade e a improvisação vocais. Afinal, a apresentação mais talentosa e convincente será declarada campeã.  A premiação será uma viagem — com todas as despesas pagas e com direito a acompanhante — à Cidade de Pedro, Petrópolis, no Estado do Rio de Janeiro, para conhecer os herdeiros da família imperial brasileira. Com certeza será um fim de semana sensacional e imperial. Inscrevam-se, preparem-se! Independência ou morte?

 

 

 

II

 

 

Lamentavelmente, as inscrições se encerram sem nenhum — nem um — candidato inscrito para tentar reproduzir o famoso Grito do Ipiranga! Ninguém se inscreveu. Ninguém se atreveu. Uma humilhação e tanto para a Comissão Organizadora!

 

De duas, uma: ou os brasileiros preferem cantar — samba, forró, sertanejo, rock and roll — e dizer — coisas lindas e cabeludas — a gritar Independência ou morte! Ou simplesmente o prêmio não era tão convidativo quanto pensavam os organizadores do certame. Não é mesmo? Vá saber!

 

Por outro lado, pelo menos uma meia dúzia de bichos teria tentado se inscrever para imitar o famoso Grito do Ipiranga. Em vão, aglomeraram-se na Praça Sete de Setembro para conseguir uma vaguinha no "The Voice Brasil Imperial". Foram todos expulsos sob ameaças e/ou pontapés. Tropa de animais metidos a besta!

 

Mas uma mula baia, em especial, teria insistido com muito empenho e obstinação para apresentar a sua versão do grito. Ela dizia ser descendente da mula em que o príncipe regente estava montado quando do feito vocal épico. Com a cabeça cheia de boas intenções, queria porque queria demonstrar a todos e todas a sua interpretação do "Independência ou morte".

 

— Preciso apenas de uma oportunidade para lhes mostrar com quantos relinchos se faz um grito memorável — insistiu a mula, sendo solenemente ignorada.

 

— Em nome das mulas estéreis do Brasil, quero uma oportunidade! Em memória da minha antepassada heroína, exijo uma chance para me apresentar!

 

— O que você disse, filha duma égua? — provocou o responsável pelas inscrições, mais ironizando do que enaltecendo o quadrúpede.

 

A organização acabou perdendo a paciência com a alimária, aplicando-lhe uma boa dúzia de tapas nas fuças. A mula saiu em disparada dando de bunda, sem cabeça, maldizendo todo mundo.

 

— Cambada de filhos da puta! — zurrou a bicha, mais xingando do que elogiando os brasileiros.

 

 

setembro, 2022

 

 

 

Almir Zarfeg é um poeta, jornalista e escritor baiano. Presidente de honra da Academia Teixeirense de Letras (ATL).

 

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