©sguimas
 

 
 

Para escrever Nenhum espelho reflete seu rosto, em que Ivan, o vilão da trama, é um perverso narcisista, fiz extensa pesquisa sobre o cabuloso assunto. Comecei pelos vídeos dos youtubers que falam de psicopatia, sociopatia e temas afins. Desenvolvi "intimidade" com vários profissionais. Não sabia, até aquele momento, que há pessoas bastante preparadas nesse meio, muitas vezes sem formação acadêmica na área da saúde mental, mesmo assim desempenhando a notável tarefa de informar, esclarecer, e até mesmo de consolar pessoas aflitas, muitas vezes respondendo aos comentários abaixo dos vídeos. Respeito quem faz isso com seriedade e rigor. Há gente de todo tipo, como seria de se esperar, mas ouso dizer que a maioria está realmente interessada em ajudar o próximo por meio da democratização do conhecimento e de sua experiência pessoal. É um trabalho feito com idealismo, boa-fé e abnegação.

Foi em 2018 que me tornei uma habituée do Youtube, condição que se intensificou durante a pandemia. Em 2020, tive infecção em um dedo da mão que me impediu de escrever por três meses. De molho em casa por causa dos riscos da Covid, não aguentava mais ler e por isso resolvi fazer cursos de tarô e de baralho cigano on-line. Para isso bastava utilizar o mouse, basicamente. Além das aulas propriamente ditas, assisti a dezenas de leituras de cartas, que passaram a fazer parte do meu treinamento.

Conheço virtualmente o trabalho de vários oraculistas e aprendi a separar o joio do trigo. Nem sempre os mais bem formados tecnicamente são os melhores; é muito delicado e difícil exercer a profissão, pois exige da pessoa uma série de qualidades. Há os que seguem religiões e os que não seguem; os que se creem guiados ou inspirados por espíritos e entidades e os que acreditam mesmo é na própria maestria.

Depois de ver as diferenças entre eles — modos de interpretar as cartas, posicionamento diante dos consulentes, por exemplo — comecei a verificar o que tinham, afinal, em comum. Fiquei agradavelmente surpresa ao perceber que existe atualmente uma grande preocupação com questões éticas e psicológicas como relações tóxicas, comportamentos abusivos, narcisismo, violência física e verbal. Esse tipo de cuidado é geral entre os oraculistas; como as mulheres estão em maioria na assistência, os problemas que as afetam diretamente são os mais comentados nos vídeos.

Mas o que me encantou na experiência foi a maneira de falar de grande parte dos deles, especialmente dos tarólogos. Aí sim, chegou a minha vez de nadar de braçada, pois, embora não seja linguista, um dos temas que mais me atraem é a evolução da Língua Portuguesa e a influência dos sujeitos falantes na composição e desenvolvimento das chamadas normas cultas. Acho belíssimo acompanhar o trajeto de uma gíria, por exemplo, até o momento em que é dicionarizada. Outro fato que me chama a atenção é o motivo de alguns termos ganharem esse status e outros não, caindo, com o passar dos anos, por vezes no mais completo esquecimento. Essa vivacidade, esse componente anímico da Língua é algo que considero mágico.

Voltando ao tema dos cartomantes, com o devido respeito que merecem de todos nós, é impressionante a linguagem que muitos utilizam, no momento. Alguns repetem erros corriqueiros como "Vim" no lugar de "Vir", por exemplo. Não sei se vocês têm reparado que estamos, de modo geral, com um problema cotidiano no uso de alguns verbos no infinitivo. Expressões como "encarar de frente" continuam na crista da onda. É preciso coragem quase suicida para se arriscar a "encarar de costas." Há também a utilização generalizada de clichês como "agregar valor" (que pessoalmente detesto), a chatíssima e desconfortável "zona de conforto" e as tais "crenças limitantes", cujo significado raramente é explicado com precisão. Ser orientado a "seguir em frente" o tempo todo é muito aborrecido. Como seguir, se não for para frente? Mas não é disso que quero tratar aqui. Há termos muito interessantes, específicos, que nunca vi ou ouvi em outras áreas. E, o que é pior, quase sempre usados de maneira errada. Parece uma epidemia: um começa a falar e os outros imitam. São muitos, mas listei alguns que fazem parte do jargão.

Começo pelo verbo intuir, tão importante numa área cujo objeto central é o "invisível", o "oculto." Agora é assim: o pessoal diz que "foi intuído" a gravar um vídeo, trabalhar com determinado tema etc. Como se essa orientação tivesse vindo diretamente de espíritos superiores, digamos. Ocorre que, pelo menos em português, ninguém é intuído de coisa alguma. A intuição é uma característica humana e individual. Perceber e sentir algo sem usar a razão não significa "ser intuído" a isso, pois é a própria definição do substantivo. É uma situação mais Yang do que Yin: eu intuo, ele intui etc.

O tempo verbal que se tornou realmente um pesadelo por ser o mais incompreendido de todos é o Imperfeito do Subjuntivo. Durante as tiragens, pode-se ouvir dezenas de vezes "se ele fazer" no lugar de "se ele fizer" e outras coisas nessa linha. Dá uma aflição danada.

A expressão "fulano introspecta" também é curiosa. Não se faz mais introspeção? Introspecta-se e pronto? Quem teria inventado isso? Alguns termos ainda não dicionarizados como "abalante", "paradez", "manipulativa" e outros se repetem.

Existe também — creio ser uma implicância minha, pois está correta — a insistência em aconselhar o consulente a "se limpar". Compreendo que a limpeza mencionada seja de natureza emocional/espiritual, mas a repetição dessa expressão me dá nojo; leva-me imediatamente a outros significados, penso em banheiro público, imundície, corrupção, decadência. Alguns mencionam a "positividade tóxica", que, se entendo bem, nomearia uma visão cor-de-rosa e irrealista das situações. Mas que é engraçada, lá isso é.

A lista seria bem maior, se eu dispusesse de espaço para tal. Por isso, deixei por último a expressão mais bizarra entre todas que já ouvi: "senti de". O verbo sentir foi destituído, da noite para o dia, de suas características. Ninguém mais sente vontade, fome, desejo, necessidade, dor, amor, afronta ou aflição. Isso parece ser coisa do passado. Agora é "eu senti de falar", "senti de gravar", "senti de usar as cartas X ou Y", "senti de alertar". Fico por aqui, pois "fui intuída" agora a me fechar em copas. E de pé, feito um dois de paus.

 

 

 

 

 

 

setembro, 2022

 

 

 

 

::  revista  ::  uns  ::  outros   ::  poucos  ::  raros  ::  eróticos&pornográficos  ::  links  ::  blog  ::