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Silvana Guimarães, uma das nossas editoras, sugeriu que o V Encontro Nacional do Mulherio das Letras fosse o tema desta crônica, quando lhe disse que eu iria participar do evento em João Pessoa. Saí de Brasília certa de que já tinha o meu tema no bolso do colete, como meu pai dizia.

Mas tudo é fluido, mutante, e em poucos dias percebi que meu tema tinha virado fumaça, pois adoeci durante o Encontro e, embora tenha participado das atividades, não estava no meu melhor momento. Mesmo depois de três doses da vacina, o coronavírus me encontrou em terras paraibanas. Ou o levei do cerrado para o litoral? Eu me senti muito mal na última noite, fiquei gelada o tempo todo, e de manhãzinha fiz o teste, que deu positivo. Sim, era Covid, sem dúvida.

Meio desnorteada, pois era segunda-feira e minha passagem de volta estava marcada para quarta, telefonei para a querida escritora Maria Valéria Rezende. Deixei o hotel na segunda mesmo; ela me ajudou a levar minhas coisas para sua casa, e comecei o isolamento. Por sorte, a casa tem uma estrutura que ajuda, com quartos e banheiros praticamente independentes. Meus sintomas não foram fortes como os de pessoas que contraíram a doença no início, antes do surgimento da vacina, mas senti uma dor de cabeça fortíssima e permanente sensação de desmaio, além de problemas gastrointestinais.

Conseguia pensar em tudo, menos em assuntos concretos, que requeriam providências da minha parte. Sentia-me sem forças para nada. Valéria teve de resolver até o assunto da minha passagem de volta, pois mandava o protocolo médico que eu ficasse oito dias isolada, antes de empreender viagem.

Distraía-me pensando em casos antigos ocorridos na infância, especialmente depois de perceber que a casa onde estava hospedada guarda certa semelhança com a antiga casa dos meus pais. Certa noite, acordei suada, fazia muito calor e eu tinha desligado o ventilador. Pensei em levantar o colchão, com a sensação nítida de que havia algo volumoso debaixo, escondido ali há muito tempo, quem sabe.

Retirei o lençol e agarrei o colchão com as duas mãos, mas não havia nada. E de repente, eu me lembrei o que buscava: dinheiro, muito dinheiro já fora de circulação, dinheiro velho que não serviria para nada mais, como aconteceu com uma mulher da minha terra natal, Inhapim. Essa moça, Doca, era funcionária de uma empresa pública. Muito calada, quase não se relacionava com os colegas, falava pouco em casa e na rua, não tinha amigos. Tratava os clientes da empresa com urbanidade, executava suas tarefas, nada além disso. Morava com a mãe idosa e, como não confiava em bancos, todos os meses guardava meticulosamente o salário que recebia em envelopes pardos, dispostos meticulosamente entre o estrado e o colchão. Provavelmente por delicadeza, a mãe dela não perguntava nada sobre dinheiro nem exigia que ela colaborasse nas despesas da casa.

Embora bem velhinha, a mãe era o contrário da filha: falante, comunicativa, cheia de amigos, passava horas na janela do alpendre conversando com os passantes. Tinha boa saúde e corria um boato curioso na cidade, de que à noite ela só comia uma tigelinha de pão embebido no leite.

Certa manhã, a mãe estranhou quando Doca não se levantou para trabalhar, ela sempre tão pontual. Entrou no quarto silenciosamente e encontrou-a dormindo. Foi à janela e, por coincidência, estava passando o médico da cidade, de bicicleta. Ele entrou na casa e comprovou que Doca tinha morrido durante a noite, provavelmente de infarto.

Quando as vizinhas foram arrumá-la para o sepultamento, não sem antes lavar e engomar o traje branco guardado para essa finalidade, pois era solteira e virgem, perceberam grande volume no colchão. Animadas com a descoberta, chamaram a mãe para retirar o dinheiro dos envelopes lacrados com goma arábica. Houve uma grande excitação no ar. Será que finalmente a velhinha iria ter uma vida mais cômoda? Qual não foi a surpresa de todos ao perceber que pouquíssimos envelopes continham dinheiro da época, ainda em uso. As enormes pilhas de notas mofadas e descoradas tinham saído de circulação há anos. O papel velho se desfazia ao ser tocado.

A mãe, que era dura na queda, não disse nada. Mas à noite eu, criança, passei em frente à casa delas e poderia jurar que a vi chorando na janela, comentando que estava muito resfriada. A solitária Doca, funcionária tão dedicada, desperdiçou seus anos de serviço e o dinheiro que o governo lhe pagou para executar suas tediosas tarefas diárias. Seu tesouro há muito não passava de papel sujo.

 

 

 

 

 

 

dezembro, 2022

 

 

 

 

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