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Naquela tarde, a velha senhora estava mais aflita que de costume. Marlene, a cuidadora dos domingos, suava para dar conta das exigências de Ísis. A doença de Alzheimer modificara completamente seu temperamento, antes afável e compassivo. Palavrões passaram a fazer parte do seu vocabulário, de preferência os mais ofensivos. Xingava quem estivesse por perto e seus gritos eram assustadores. Uma nova Ísis, desagradável, amarga e agressiva, tomara o espaço da antiga professora bem-educada e elegante.

Marlene tinha sido sua aluna no terceiro ano do ensino fundamental e, a pedido da família, aceitara cuidar dela aos domingos, dia de folga das outras moças. Não sabia até quando daria conta da tarefa, pois não conseguia ser indiferente à deterioração mental e física da mestra. Aceitara a incumbência para ajudar a família e aumentar seus rendimentos como vendedora de uma loja de móveis.

É o pior domingo de todos, pensou. Pela manhã trocou a roupa de Ísis três vezes, para levá-la à pracinha na cadeira de rodas e tomar um pouco de sol, mas no último instante ela se recusou a sair. No domingo anterior ela não demonstrou a mesma má vontade. O que teria ocorrido?

Janine, a filha da professora, viera de Roma, onde morava, para visitá-la. Logo na chegada, quando não foi reconhecida pela mãe, ficou tão triste que se trancou no quarto e até suas refeições eram levadas lá, pela cozinheira da casa. Nas raras vezes em que aparecia na sala, todos notavam sua palidez e seus olhos inchados.

Talvez não estivesse a par do real estado de saúde da mãe. Marlene não sabia exatamente o que os irmãos tinham lhe dito sobre o novo comportamento de Ísis. Diante do ar sonhador e desligado dos fatos cotidianos apresentado por Janine, a cuidadora percebeu que a ajuda que todos esperavam da filha tinha sido uma ilusão. A moça de aparência frágil parecia quase tão assustada e distante quanto a própria mãe, em alguns momentos.

À medida que as horas passavam, mais perturbada a mulher ficava. Aquele desassossego fazia mal a Marlene, por não entender o que ela desejava. Até que Ísis começou a perguntar pelo diário — uma caderneta preta em que ela e o falecido marido escreviam durante o namoro e os primeiros anos do casamento. Sabia que ele estava numa das gavetas da cômoda do quarto, embora nunca soubesse ao certo em qual delas, pois as cuidadoras foram instruídas a mudá-lo de lugar sempre que ela o pegava. Os filhos não queriam proibir o manuseio do caderninho por sua dona, mas faziam questão de preservá-lo. Cuidado com o diário da mamãe, repetiam. Tem muito valor afetivo para nós. Não permitam que ela o estrague.

Marlene hesitou antes de lhe dar o caderno, e só o fez quando os pedidos ficaram cada vez mais insistentes. Nem mesmo Janine, reclusa no seu quarto, suportou aquela cantilena em tom cada vez mais alto. As duas mulheres se postaram diante de Ísis, enquanto ela folheava o magro e amarelado caderninho. De repente, ela ordenou: leia para mim o final, leia, não consigo mais ler sozinha.

Como desconhecia o conteúdo, Janine suspirou. Teve a sensação de que algo muito triste estava registrado ali. Impossível, contudo, resistir aos apelos da mãe. E então, abriu a ensebada caderneta: AQUI TERMINA A ILUSÃO DA VIDA. O AMOR NÃO EXISTE. FIM.

Assustando as duas, Ísis gargalhou, dizendo seu pai era um desalmado, fiz um péssimo casamento, fui muito infeliz com aquele traidor. Leia o resto, leia, ordenou. Tem mais coisa aí, não tem? Seria a letra de uma música?

Desolada, Janine viu que na página seguinte havia uma estrofe de uma canção antiga que a mãe tinha copiado, com sua letra redonda e caneta de tinta vermelha:


"A minha renúncia

Enche-me a alma e o coração de tédio

A tua renúncia

Dá-me um desgosto que não tem remédio.

Amar é viver

É um doce prazer, embriagador e vulgar

Difícil no amor é saber renunciar".


Levaram alguns minutos para se refazer da cena e não perceberam quando a velha senhora, num impulso, se ergueu da cadeira, arrancando a caderneta das mãos da filha. Tentaram segurá-la, mas foi inútil. Estavam na mesa da cozinha, próxima ao fogão, e havia um bolo assando no forno. Inesperadamente, Ísis abriu a porta do forno e jogou o caderno sobre o tabuleiro. Elas conseguiram arrancá-la dali antes que se queimasse, mas imerso na massa, o diário havia se transformado em ovos, manteiga e farinha.

Em silêncio, consternadas, colocaram suavemente a mulher na cama, cobrindo-a com a manta xadrez. Sabiam que no dia seguinte ela voltaria a perguntar pelo diário, perguntaria sempre, jamais o esqueceria. Até que...

 

 

 

 

 

março, 2022

 

 

 

 

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