@sguimas [com as rosas de monica vendramini]

 

 

 

 

O SEXO NO ESPELHO

 

 

O amante

predispunha o espelho

para duplicar o amor.

 

Múltiplos corpos,

avidez de desgaste,

a noite lúdica.

 

Hoje, no espelho,

a solidão em dobro.

 

 

 

 

 

 

A ESQUECIDA

 

 

Quando vim a este mundo,

não por mim — eu vim mandada —

Trouxe um destino comigo.

Mas passei por tantas nuvens,

me molhei de tanta chuva,

me perdi em muitos ventos,

virei poeira de estrada,

lírio, rosa, espinho, terra,

que esqueci minha mensagem.

Procuro me renovar:

pedra, sangue, cal, areia,

e preciso definir-me

e encontrar o meu perdido.

 

Choro sangue todo o sempre

quando estou entre oprimidos.

Sinto a fome dos famintos,

sofro a dor dos humilhados,

me consumo no momento.

Minha mensagem é dor.

 

 

 

 

 

 

BALADA DE IDEIA FIXA

 

 

Balada de ideia fixa

um dia vos cantarei.

Falarei dos meus amores

no meu canto, falarei.

Pois quando falo de amores,

de mim mesma já falei.

 

Balada de ideia fixa

talvez me arrependerei.

Para tornar-vos mais triste

também me entristecerei.

Pois quando falo em tristeza,

de mim mesma já falei.

 

Balada de ideia fixa

algum dia vos direi.

Para matar-vos de manso,

morrendo vos cantarei.

Pois quando falo de morte,

de mim mesma já falei.

 

 

 

 

 

 

BALADILHA SEM A QUEM DAR

 

 

Quem quiser me peça versos,

que eu darei, seja quem for.

Que não me peça alegria

nem canções de muito amor.

Quem quiser meus versos tristes

eu darei, seja quem for.

 

Não sei cantigas de riso,

não sei cantares de amor.

Por isso as minhas cantigas

nunca tiveram senhor.

Eu dou, sem mágoa, meus versos

a quem quer, seja quem for.

 

Eu reparto em cada verso

um pouco da minha dor.

Mas ninguém me pede versos,

ah! se houvesse pedidor...

Eu daria verso e mágoa

a quem quer, seja quem for!

 

 

 

 

 

 

CANÇÃO CLARA

 

 

Canção mui clara, o bastante

para o vosso condenar.

 

Condeno o que passou breve

sem desejo de ficar.

 

Aquele que bem devia

dar-se a mim vivo de amor.

 

Condeno o que me viu frágil

e não foi meu protetor.

 

Esse que me cativou

e não quis me conservar.

 

Ah! canção clara, o bastante

para o vosso condenar!

 

 

 

 

 

 

CANÇÃO DA AMANTE

 

 

Meu corpo de ausência

aguarda-vos calmo

na noite inventada.

 

Meu corpo de sombra

entrega-se, grave,

ao vosso domínio.

 

Eu sou possuída

em vosso tormento.

Em mim vos contenho.

 

Meu corpo se perde,

Virei serva amena

da vossa paixão.

 

 

 

 

 

 

CANTILENA

 

 

Não quero mostrar-me triste

porque de mim fugireis.

Mas no fundo eu bem sou triste,

mas o fundo não vereis.

 

Vou cantar. Talvez cantando

coisa minha sabereis.

Pois, se me virdes chorando,

eu bem sei que fugireis.

 

Vou cantando tão de manso,

que talvez nem pensareis

que por dentro vou chorando,

mas por dentro não vereis.

 

Vou cantando, pois, cantando,

vós talvez me entendereis.

 

 

 

 

 

 

ELE ME BEIJA TÃO MANSO

 

 

Ele me beija tão manso

que eu penso tudo: cascatas

brotando dentro de mim.

 

Penso flores, penso musgo,

pedrinhas claras, redondas,

rolando dentro de mim.

 

Penso nuvens transparentes,

areias brancas, desertos,

mares longínquos de mim.

 

Ele me beija tão manso

que me perco no meu mundo

tão pequeno e tão sem fim!

 

 

 

 

 

 

ESPELHO E FACE

 

 

Espelho, por que persiste

em se mostrar tão severo?

Seu sorriso leve e triste

não é o riso que espero.

 

Não é o riso que eu ria,

não é a face que eu tinha.

Onde está minha alegria?

Aonde foi a face minha?

 

Encontro apenas miragem

se me procuro na vida.

Não sou decerto essa imagem

que hoje vejo refletida.

 

O bem e o mal, se os confronto,

sinto que o bem foi desfeito.

Se procuro, não me encontro.

 

 

 

 

 

 

NAVE INCORPÓREA

 

 

Nave intocada e neutra, em mar de vidro,

indiferente aos símbolos se fixa.

No mastro o olho inclemente da pesquisa

e sem roteiro ou plano, o leme esquivo.

 

Na quilha, se existisse, de granito

ou de incenso talvez, em ondas místicas,

a minha solidão que o mar limita

por linhas intangíveis de infinito.

 

No mar apocalíptico do mundo

(vidro não seja, mas tormento) a nave

é minha alma esquecida em sangue e chumbo.

 

E tudo que me resta: mapas púnicos

da minha alma galera, inavegável

no tempo que é seu berço e foi seu túmulo.

 

 

 

 

 

 

P E D I D O

 

 

Senhor, o que vos peço é tudo e nada.

Não são vossos tesouros. Não são graças,

não são bens temporais. Nem vossa ajuda

nem vosso olhar de extrema complacência.

 

Nem clemência, meu Deus, por minhas faltas,

nem resistência para o meu sofrer.

Vós bem sabeis, minha alma se revolta

como animal ferido, mas aceita.

 

Não vos peço mais dor para ser pura

nem mais motivo para o meu retorno.

Não vos estendo a mão, pedindo paz.

 

Quero apenas dormir serenamente

sem prêmio, sem castigo. Só dormir.

Dormir tranquila à beira de um caminho.

 

 

 

 

 

 

SONETO DO ABANDONO

 

 

Inutilmente o amor me clamaria,

que a voz me fere a carne, não o espírito.

Outros corpos, em vão, me acenariam

na estéril paisagem dos desejos.

 

Inutilmente os olhos tentariam

vencer a superfície no meu gelo.

Imagens repetidas se dissolvem

e eu continuo sombra e desapego.

 

Condenso-me poesia. Tua ausência

marcou-me tão profunda permanência,

não música nem flor, sequer história.

 

E em te perdendo (não te fiz durável)

apenas te conservo no imutável

silêncio que destrói tua memória.

 

 

 

 

 

 

SONETO DO AMOR INFINITO

 

 

Nestes versos de amor, a sutileza

que a vida me recusa, dia a dia,

hei de sentir e nela ver-me presa

como as coisas febris da fantasia.

O que a luz não suporta, o que me fere

e logo se dissipa em claridade,

o que em sigilo vive e em mim desfere

seu dardo de ilusão e irrealidade.

0 que em amor supera a lisa fonte

do desejo tranquilo; o que perdura

além da fome e sede — o traço, a ponte

entre mim e o infinito da loucura.

É carência de amar e em mim soçobra

esse amor que me falta e que me sobra.

 

 

 

 

 

 

SONETO DO DESENCANTO

 

 

Não fora essa amargura e o inexistente

motivo de sofrer; e, não fora o pranto

invisível no olhar intermitente

rolando além da face, escuso, enquanto

 

as palavras naufragam na corrente,

a doçura se perde em desencanto

e o gosto de viver, tão de repente

destila todo o fel... Não fora tanto

 

apego ao que me fere e mais, não fora

o pretexto de mágoa que hoje aflora

nesta queixa sutil e neste enlevo,

 

de mim não viverias tão ausente

nem ficarias tão eternamente

em cada verso amargo que te escrevo.

 

 

 

 

 

 

CANÇÃO DE FAZER DE CONTA

 

 

Eu quisera ser bem clara

como o dia transparente.

Feito lírio, feito palma,

feito fruto na semente.

Eu quisera ser bem pura

como a flor que ninguém sente.

Faz de conta, me achaste

como fui antigamente.

 

Faz de conta, sou neve,

brancura na tua mente.

Faz de conta eu sou como

me queres interiormente.

Faz de conta, mas faz

que aconteça de repente

que eu me torne branca, branca

como tu me tens na mente.

 

 

 

 

 

 

A SUICIDA

 

 

No fundo lago do espelho

atirei-me cada dia.

Mas sempre as águas traziam

a imagem que não morria.

 

Atirei-me contra o mundo

e não fui despedaçada.

Porém, a face que eu tenho

fica, no mundo, gravada.

 

 

 

 

 

 

TRANSFORMAÇÃO

 

 

Meu túmulo não foi selado.

A chuva trouxe ao meu corpo

mensagem do meu espírito.

O vento passou cantando

melodia inesperada.

Era a canção mais estranha

que um morto pode escutar.

 

Somente agora percebo

porque sorria o poeta

que dormia o sono eterno.

Ninguém decerto conhece

a verdade que se esconde

na face do que morreu.

 

Não entendo mais do mundo,

quero dormir sossegada.

Meus olhos cheios de musgo

tecem verdes fantasias.

Meus olhos virando areia,

meus braços virando folhas,

meu corpo inteiro floresce.

 

Eis-me na areia que invento,

areia de um mar profundo:

mar de mistério. Eu, enigma,

consigo descer ao fundo.

Meu corpo verde flutua,

minha alma sobe, incolor.

E no fundo, outro infinito,

mais mergulho, mais atinjo

alturas desconhecidas.

Asas brancas me tocaram.

 

De folhas faço meu ninho

pelo prazer de fugir.

Nesse voo ilimitado,

humano não me corrompe.

Quem me busca, não me atinge,

quem me atinge é perseguido

como irmão, foge comigo.

 

A chuva cai. Vai lavando

tanto pó acumulado

do tempo que me antecede.

As imagens vão gritar

e eu, lembrada de mim mesma,

serei humana de novo.

 

Quero cumprir meu destino.

Não por mim. Eu vim mandada.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Celina Ferreira. "Foi você quem escreveu isso?", perguntou um assustado Manuel Bandeira, para a jovem de 20 anos, com quem havia tomado chá e passado uma tarde, até que ela ousou desagradá-lo, ao pedir-lhe que lesse seus poemas, na visita que fez ao poeta, no Palácio Capanema, em um mês do longínquo 1948. Bandeira resistiu em lê-los, pois agradáveis tardes com moças bonitas que o visitavam transformavam-se em tristes lembranças quando elas pediam que o poeta lesse seus "poemas". Ali, porém, começou uma grande amizade. Também com Cecilia Meirelles, por serem vizinhas de rua, no Cosme Velho. A poeta Celina Ferreira nasceu em Santana de Cataguases/MG, em 27 de setembro de 1928, dia de Cosme e Damião, como gostava de lembrar. Lutou a vida inteira, a começar por uma queda quando menina, que quase levou a uma amputação de uma das pernas. Isso obrigou-a a recreios na biblioteca e a descobrir um novo mundo. Leu praticamente tudo que havia ali e passou a colocar sua vida, suas angústias, solidão e a figura da morte que a perseguia, em versos perfeitos. Viveu numa montanha-russa de euforias e depressões das quais saía com a absurda ajuda de eletrochoques. Casou-se, estabilizou-se, trabalhou a vida toda como redatora de programas literários e de folclore na Rádio MEC, do Rio. Quis o destino tirar-lhe novamente a paz, enviuvando-a aos 38 anos, em 1966, com uma escadinha de filhos (8, 7, 3 e 2 anos) para criar. Naquele momento, ela passou a contar somente consigo. A Rádio MEC pagava pouco e Celina começou a trabalhar como marchand de arte, com um faro especial para descobrir talentos. Publicava poemas em jornais e trabalhou na TV Tupi, no Rio. A educação dos filhos, a longa batalha judicial perdida pelo frigorífico de seu marido, a atuação como marchand, a doença psiquiátrica e as diversas cirurgias nas pernas roubaram-lhe um tempo precioso para a poesia. Publicar livros na sua época não era fácil, e somente conseguiu fazê-lo por meio de premiações em concursos literários. Celina sempre quis ser reconhecida por sua poesia. Entretanto, a vida passou rápido para ela. Com 64 anos, começou a apresentar um quadro de demência. Ao ser visitada, se alguém recitasse seus poemas trocando algumas palavras, ela corrigia sempre. Para seus versos, sua memória estava perfeita. Publicou, entre outros, Poesia de ninguém (1954), Nave incorpórea (1955), Poesia Cúmplice (1959), Hoje poemas (reunião dos três primeiros livros e Rio do sono, 1965), Espelho convexo (1973) e Reino maquinal (1974). Poesia infantil: Invenção do mundo (1958), Papagaio Gaio (1998), Gergelim, o palhaço (2007). Inéditos: Bebel e o Porquinho da Índia (infantil), "Ato e recato" (conto). Durante anos, teve poemas publicados no Suplemento Literário de Minas Gerais e no Correio da Manhã (Rio de Janeiro). Morreu perto de completar 84 anos, em 05 de agosto de 2012, em Teresópolis/RJ. Celina Ferreira foi minha mãe". Rogério F. Cardoso - Rio, 06/09/22.

 

 
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