©sguimas
 

 

 

 

Gólgota

 

 

Você procura pelo futuro

no fundo de um cesto de lixo,

pendurado em um poste apagado,

e encontra nada além do rastro

do escuro insensato de dias anteriores

 

"Ninguém mais compra

badulaques folclóricos"

 

"Quem vai pagar

pelo que ninguém quer

sequer de graça?"

 

Quem se apieda e se importa

não frequenta as ruas

nas quais você trabalha

e transborda

 

Dando informações

imprecisas a turistas,

você ainda

guarda e lava carros

 

Deambula aturdida

apressando o passo,

sem destino esperado

Na fornalha dos trópicos,

quando o tempo fecha

e a dificuldade aperta,

você pede — e não disfarça

 

Mas fica injuriada

ao ser confundida

com uma esmoler

 

Os seus braços inchados

estão completamente atados

às armadilhas da estrada,

tão lotada de bifurcações:

encruzilhadas nas cruzadas da existência

 

Você é a penitente persistência,

contrastando com a indiferença

de quem já desistiu

 

Você é um paradoxo,

que encorpa na miséria,

enquanto grassam

as pilhérias de toda a sorte,

a se confortar na tragédia

 

No repasto, apascento o ânimo

você pena, mas não definha

engorda de barriga vazia

e sorri — recobrando

por um átimo

a consciência

do que poderia ter sido,

se tivesse nascido

em outro lugar

 

 

 

 

 

 

O caderno azul

 

 

A poesia é uma ferida aberta

da fenda exangue descoberta

uma flecha dispara e acerta

mira contra quem flerta

com a sanidade

 

 

 

 

I

 

 

O amor é uma ponte

de solidão e delírios

estendida

entre dois precipícios.

 

 

 

 

II

 

 

Só quem conheceu a indiferença

sabe o peso da certeza do arbítrio

 

 

 

 

III

 

 

As escolhas são estradas

que nos circunscrevem

 

 

 

 

IV

 

 

o ansioso

quer colher grãos

antes de ser vagem

 

 

 

 

V

 

 

Nem tudo

O que cala

Necessariamente

Consente

 

O silêncio corta

Inclemente

O eixo

Da piedade

 

 

 

 

VI

 

 

Quem grita

faz da escrita

um muro

de sussurros

 

 

 

 

XXXIII

 

 

Há de chegar uma hora

em que só vai ser escravo

o moderno empregado

que sentir prazer

em sofrer, ser humilhado

aviltado, seviciado

enquanto é remunerado

para ser classe média, alta

pobre ou miserável

 

Há de chegar uma hora

em que só vai ser escravo

o ente liberto que precisará

ser insultado para poder sorrir

 

 

 

 

XLIV

 

 

Tudo o que amamos

é sacrossanto

nosso encanto

é a verdade moral

que desejamos

e não conseguimos

conquistar

 

 

 

 

XLV

 

 

A solidão

é a melhor

companheira

da coragem

 

 

(...)

 

 

 

 

 

 

Nós

 

 

cada pessoa

é a humanidade

inteira

em miniatura

 

individuação

é manifestação

de alteridade

 

 

[Do livro A utopia do carnaval sem fim. Penalux, 2020]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Bernardo Almeida (Salvador/BA, 1981). É poeta, jornalista, artista digital, roteirista e compositor. Participou de dezenas de coletâneas literárias. Publicou os livros: Achados e perdidos (poesia/2005), Crimes noturnos (poesia/2006 e 2018), Enquanto espero o amanhã passar (poesia/2009), Sem um país para chamar de pátria, sem um lugar para chamar de lar (poesia/2009), LONA (poesia/2011), O vencedor está morto (contos/2013), Arresto (poesia/2016), que também foi editado em Paris (2018), e A utopia do carnaval sem fim (poesia/2020). O autor tem textos traduzidos e publicados na Europa, sobretudo na França e na Croácia.

 

 

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