©sguimas [com imagem de escultura de erli fantini]

 

 

 

 

Do corpo que sangrou, o bebê do abandono havia nascido. Na carteira de nascimento o nome do pai foi preenchido. Na vida, o vácuo da paternidade existia. Maria de Fátima da Silva do Abandono nasceu do ventre da mãe que já sofria a solidão. Da mãe com pai, sem mãe, com marido sumido. A menina, logo apelidada de Galega, olhava pro céu cheio de vida e pra terra toda morta da seca do sertão como quem escolhesse viver ou morrer.

As duas irmãs que tinham vindo antes ensinaram o que Galega desde criança deveria fazer: trabalhar. Roçado da mãe. Venda de quentinhas. Todo trabalho era trabalho pra quem da fome não pode morrer.

O vácuo do pai foi preenchido numa noite de chuva e trovões. O danado do homem foi lá só pra mostrar a brutal masculinidade que habita em quem abandona filho pequeno. Galega observava o pai que não era pai. Guardou a imagem da agressão. Guardou a imagem do que conhecia como homem para si. E para si se voltou todas as vezes na vida.

Cresceu. Saiu do sertão para capital de Pernambuco. Cozinhava e cuidava de gente que nem seca conhecia. Passou pela cabeça a tempestade que o não-pai trouxe no dia de sua volta. Retraiu-se. "Quero vida de homem que abandona não", pensava. Mas, como toda história trágica de quem nasceu do azar, foi logo voltar pra pequena cidade de origem e arranjar-se com um "doido" — como a vizinhança se referia.

Noivou. Parecia bem. Os ânimos voltaram pra mostrar que do abandono nem ela nem o sobrenome eram feitos. Depois disso, mais rachadura de vida. Maria de Fátima da Silva do Abandono não continuou o noivado. Ninguém sabe ao certo o que aconteceu, se foi a dor da rejeição ou porque, pra ela, homem foi feito pra abandonar. Fazia do trauma a própria vida. Fazia da vida um arsenal de amargura.

Carregou no peito tudo aquilo que tinha cheiro de dor. Foi pra São Paulo sentindo a enxurrada da chuva com trovões. Na mala, só havia isso. Voltava a olhar pro céu como quem fala que quer viver fora da loucura da desgraça da fuga.

Voltou-se ao trabalho. Cozinhava e limpava a casa como ninguém. Gente rica gosta de gente pobre que tem essas habilidades. Aliás, gente rica gosta de gente pobre pra servir, não importa a habilidade.

Assim como tudo na vida de Galega foi um vácuo, o encontro com Marcos não fugiu desse buraco. Só que o buraco foi tão fundo que coube, além de duas meninas, o abandono, a tristeza e o desespero. Nada se sabe de Marcos. Nada se sabe do pai de Galega. Nada se sabe de homem que faz filho com a mulher e depois some.

Mais uma vez, brutalmente, a tempestade retornava pro céu. Da vida de Galega eu só sei do abandono.

Foi continuar a vida em São Paulo. Trabalhou. Voltou pro sertão. Depois encontrou outro danado de homem que só valia a separação. Esse homem, que já havia abandono outros filhos, encantou-se pela mulher branca com apelido de Galega. Ela, que — bem lá no fundo acreditava que podia ser amada por alguém — correspondeu às investidas. Só que de homem que já tinha filho abandono, o raio era de pertença na relação.

Com esse homem, Galega danou o pé pra voltar pra São Paulo. Voltou com as duas filhas e a fuga que no marido cabia.

Depois de abandono paterno, acreditar que vai ser finalmente amada por um macho parecia o que céu de vida dizia: "o amor encontra o amor, bem aqui nas alturas". Mas dessa frase a única palavra que fincava era altura. O universo era tão largo que dentro de Galega acomodava coisa boa — como a mãe que deixou cravado a própria existência —, mas também cabia mais abandono.

E quantos abandonos eram necessários pra Galega finalmente viver o que do céu avistava? E de quantos abandonos as rachaduras de uma mulher é feita? E em quantas fugas o homem mostra a própria masculinidade? De nenhuma dessas perguntas Galega tinha a resposta.

Do homem que veio com ela pra São Paulo, mais uma vida havia gerada. Dessa vida, o pai estava ali. O pai criava. Voltou a ver nesse homem a esperança de que nem de tanto remorso se construía uma história.

Com ele, entregou-se por completo. Foi às ruas catar papelão, plástico, tudo aquilo que dava pra reciclar e vender. Desse homem, que o nome não há de ser citado, Galega viveu aquilo que queria desde criança: ter um pai. Não pra ela, mas para as filhas. Esse homem tornou-se o pai das três meninas. Isso fez com que a mulher se enfiasse mais nas entranhas do corpo másculo.

Enfiando-se, enfiando-se, que, além de desaparecer por completo, viveu pra dar comida, água e trabalhar pra ele. Trabalhava no sótão. Trabalhava em casa. Viveu para trabalhar pro homem que do abandono não escapara.

E foi na tempestade, em meio à chuva, que, mais uma vez, o danado do macho saiu e voltou três dias depois. Como do desabrigo a mulher com nome de santa era feita, não se aguentou e juntou as roupas do marido numa mala e não deixou mais ele entrar em casa.

A mais pura verdade é que Galega se fincou tanto no homem sem nome que pra expulsá-lo da morada foi como se tivesse expulsado um corpo dentro de si. Pariu três filhas mais não, pariu foi mais um homem que de suas vísceras já tinha tomado conta.

Trancou-se no quarto. À rua, só ia para fazer as compras. O parto desse homem fez com que Maria de Fátima da Silva do Abandono morresse por dentro. A amargura, a solidão, a tristeza, tudo isso fincava e gritava bem alto pro céu cheio de vida.

 

*

 

Da existência, além da solidão, tinha a certeza de que amava as filhas. Amou tanto que as prendeu dentro dela pra não parir de novo o sangue disfarçado de partida. Enterrou a proteção de quem já foi muito rejeitada nessa vida. Enterrou tanto as meninas dentro de si que quando cresceram havia semente de abandono e solidão. Galega queria protegê-las, mas fincou demais que uma hora a soltura veio.

Mais uma soltura pra vida de Galega. Bicho solto só é bom quando se prende à liberdade. Mas as filhas que a mulher se desprendeu foi pra braço de homem, com filho e tudo.

Nos netos via o céu de quando criança. Viu a força pra enterrar a Galega que de solidão e abandono era feita. No começo não queria ser avó, mas a vida da gente nem sempre tem escolha. Pra Maria de Fátima da Silva do Abandono, o céu cheio de vida foi materializado em criança correndo pela casa. Foi materializado na certeza de que os netos não seriam abandonados pelos pais. Eles tinham pais. Pai que ela não teve, pai que suas filhas quase tiveram.

O movimento da vida fez galega cair na areia movediça, o mesmo movimento trouxe vida à mulher que carregava o sobrenome de Abandono.

Olhou pro céu, acompanhou as nuvens como se sua trajetória fossem elas. Sumia, desaparecia. Às vezes caía tempestade, vez ou outra vinha o sol. Hoje, olhando pela janela, Galega se desprendeu da terra cheia de seca e voltou os olhos ao céu cheio de vida.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Andriele Moraes, pernambucana, uma das criadoras do grupo de leitura e podcast Clube do Livro Feminista, para ler e debater mulheres na literatura. Já publicou contos na em revistas literárias como Acrobata, Torquato, Philos, Ruído Manifesto, entre outras.

 

 

::  revista  ::  uns  ::  outros   ::  poucos  ::  raros  ::  eróticos&pornográficos  ::  links  ::  blog  ::