©sguimas
 

 

 

 

taxidermista

 

 

tenho me empenhado em ser

meu próprio taxidermista.

 

retiro sangue, retiro cérebro,

retiro fora minhas vísceras.

 

mantenho apenas ossos, pele

e gestos surdos às notícias.

 

 

 

 

 

 

ventríloquo

 

 

me calça e dita o passo

calibra o sonho e o medo

 

do braço puxa a corda

me doma o débil nervo

 

do peito dá o ritmo

me edita o pensamento

 

me move a língua mole

no crânio sopra o vento

 

me toma de fantoche

a mim se vê no espelho.

 

 

 

 

 

 

aniversário

 

 

medonha essa mania:

apagar vela, todo ano,

no mesmo exato dia.

 

macabra essa insistência

em acossá-la, em tentativas,

esfumando-lhe a existência.

 

sinistra essa investida

à chama trôpega da vida:

sopro mortal de suicida?

 

 

 

 

 

heterônimo

 

 

repara bem: eu

não sou bem eu.

sou só mais um

dos heterônimos

ruins do teu deus.

 

 

 

porta de casa

 

 

a porta de casa não range,

ela ri.

não ri riso histriônico,

riso discreto

ela ri.

não num diapasão qualquer,

tem afinação

seu sorrir:

afina-se com o riso de voltaire,

com o da mona lisa faz-se

afim.

se não com um tom de mistério,

com sardônica ironia

ela ri.

estranho oráculo doméstico,

que, rindo, range, obtuso,

o meu fim.

 

 

 

 

 

 

fevereiro-março

 

 

dois terços, cinco sextos,

nove décimos? que frações

já se foram desta espera?

que adorno eu terei sobre

meu crânio em fevereiro?

um chapéu real de momo

gordo ou a cruz de um ramo

seco de pinheiro? ouvirá esta

ode uma paródia? este verso

será, por fim, a coda? entrarei

o mês de março cantando alto

ou suas águas me encontrarão

num terno reto de pinho claro?

 

 

 

 

 

 

missão

 

 

ao cabo

e ao fim,

haveremos

de cumprir

nossa grave

missão

 

como refil

de miolo

do vazio

existencial

do caixão.

 

 

 

 

 

 

harmonia para cordas - n.1

 

 

então chegou a hora em que as cordas,

— desafinadas, tensas, em ríspidos protestos, —

ajustaram-se à rudeza de seus gestos.

 

 

 

 

 

 

harmonia para cordas - n.2

 

 

apanhava canários e corruíras, arrancava-lhes

as cordas vocais com a mão e, em finas tiras sonoras compridas,

as atava, com vida, à viola caipira e ao violão.

 

 

 

 

 

 

molho do poema

 

 

trouxeste a chave?

pergunta a palavra ao

poeta, que — tal qual

pandora moderna —,

da caixa de poemas

libera um grosso

molho de chavões

e dos lugares-comuns

escancara os portões.

 

 

[Do livro Coruja de trapo. Inédito]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Andrey Pereira de Oliveira. Paraibano nascido em João Pessoa, vive em Natal desde 2009, onde atua como professor de Literatura Brasileira da UFRN. Autor, entre outros livros, de Utopia e agonia: o indianismo de Gonçalves Dias (EDUFRN, 2014) e A razão embotada: ensaios de crítica literária (EDUFRN, 2016).

 

 

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