Em ensaio dedicado ao poema dramático de Mallarmé L'après-midi d'un Fauno e às controvérsias a respeito das sucessivas versões a que foi submetido desde sua primeira recusa para ser encenado, Décio Pignatari aventa a hipótese de que o simbolista concebeu seu experimento como uma "antiestocástica do poema". Pignatari define o processo estocástico, relacionado à informação, como a "aproximação gradativa a uma mensagem desconhecida a partir dos dados de um código conhecido". Exemplo desse processo: o do progressivo ajuste de foco de uma imagem, o movimento de "um desfoque máximo para um foco otimizado*". Em outras palavras, o gesto estocástico, do ponto de vista cognitivo, significa interpretar o que nos parece novo em termos que do que nos é redundante.

Mallarmé respondeu a cada recusa ao poema dando-lhe um tratamento sempre mais e mais distante de uma configuração apropriada a um texto encenável ou facilmente decodificável. Por uma série de supressões sintáticas e lexicais o poema foi perdendo comunicabilidade dramática e ganhando em elipse e concentração ao nível da melopeia e do seu campo visual; em suma e, talvez, paradoxalmente, silêncios, opacidades e lacunas expressivas foram introduzidos em sua linguagem obscurecendo-a.

As fissuras e "as taras do autor notório larápio de filetes [...] de linguagem", reunidas em Poemas baseados, formam uma figura singular de antiestocástica, apropriada aos interesses do poema-sobre-o-poema ideado por Ricardo Pedrosa Alves. Curvado sobre um conjunto restrito de criações e textos alheios, o poeta, cujo escrever se constitui a contrapelo de imaginar, se aventura a interpretá-los a partir de uma acepção musical, ou seja, aqueles poemas servem de partituras cujos signos verbais e não verbais passam a ser redefinidos plasticamente pelo poeta expropriador. O objetivo não é o de uma simples decifração ou otimização desanuviadora dos significados relativos aos poemas de partida. O objetivo é forjar um poema-rival, exsurgido através das entranhas e das frinchas de cada poema que lhe serviu de base, de plataforma de lançamento. Por isso trata-se de uma antiestocástica, porque não estamos nas redondezas da paráfrase ou, por analogia, da tradução infensa à traição. Porque Ricardo Pedrosa Alves não tem nenhuma comiseração com a angústia pelo sentido, que afeta tanto o leitor daqueles poemas que provocaram a ideação crítico-criativa do poeta, quanto o leitor que agora precisa se haver com as peças perturbadoras, eles mesmas, de Poemas baseados. Esses poemas segundos — pois o princípio da anterioridade pode ser evocado — que, num tour de force, alcançam a sua primeiridade, em sentido peirciano, isto é, se sustentam como ícones, qualidades, objetos monádicos que se descolam de suas referências. Cada experimento de Poemas baseados prefigura a ideia e a forma de um sentimento. Não obstante o forte apelo crítico dos poemas de Ricardo Pedrosa Alves, o que resulta deles não é cognição, nem regularidade. O que vem à superfície é a irrupção imagética, a sintaxe como um torneio de sintagmas e fragmentos irredutíveis — porque retroagem sempre ao devir de sua simplicidade icônica — àqueles poemas aparentemente pilhados pelo plagiário.

Com efeito, o leitor de lápis em punho, às vezes presunçoso, não sairá da memória que guarda do Fausto de Pessoa, nem do seu convívio com o Meu Fausto de Paul Valéry — ambos escarificados e eviscerados, agora, pela neografia de Ricardo Pedrosa Alves —, esse leitor não sairá, depois disso, mais sabido acerca dos fugidios significados metafísicos entranhados aos poemas, porque a hermenêutica do poeta, desataviada e livre, não pretende facilitar a vida do leitor. Poemas baseados se avoluma em proliferantes investigações poéticas. Tal como o Mallarmé na aventura obsessiva de L'après-midi d'un Fauno, Ricardo Pedrosa Alves não quer o esclarecimento ou o paratexto, nem a usura do significado. Aqui tudo é figura de expropriação, signos de muitos possíveis e modalidades de um ser estético que é tal como é desde o alheio em que se reconhece. Poemas baseados, um banquete após uma expedição de conquista.

 

 

*CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; PIGNATARI, Décio. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 1980, p: 107.

 

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O livro: Ricardo Pedrosa Alves. Poemas baseados.

Curitiba: Kotter Editorial, 2018, 96 págs., RS$ 34,90

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setembro, 2018

 

 

Ronald Augusto é poeta, autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015), À Ipásia que o espera (2016) e Entre uma praia e outra (2018).

 

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