Depois da trilogia Exeus (1996), Livro de Mercúrio (2001) e Extraviário (2006), o poeta Dennis Radünz reaparece com novo ciclo poemático que afugenta leituras provisórias, povoado de dentros, na pele e sob a pele nesse avesso que tem a legenda do libelo, Ossama. O livro, de arqueologia pessoal e coletiva com todos os destroços, ora fala com a terceira pessoa do monólogo e ora com a primeira do diálogo. Ossos assim, no lamaçal de cérebros danificados na vigília de esferas dignas, o cíclico do poeta reafirma-se no termo que lhe é caro, a outridade, no neologismo de Octavio Paz, e no tumulto da alheiedade, daí a exumação semiótica de lembranças futuras que estavam nos esquecidos, na curva temporal mais do que presente como fratura e sutura – o poeta clínico do poema, que com tudo o que soçobra faz a palavra de quem não pode dizer o verso mais exato.

 

 

Cidades, zonas e rebanhos

 

 

As duas partes que compõem Ossama: último livro têm um ponto modal referenciado por Drummond, o poeta das retinas fatigadas, estampado na velha cédula de cruzados novos, nota de necrológio ao saque de notas anteriores nada fáceis, poupadas com suor e sangue. O poeta do mundo nos ombros que nos representa no papel moeda que a tudo falsifica e mostra a cara de Carlos que desvia o olhar de quem o vê em ambos os lados, de frente e de costas no desenho de sua perda, pois a moeda tem dois lados, um que usa e outro que abusa:

 

os bens e os haveres ou a cifra das juras

a fronte refuga ora fora do lucro?

em que marca de água uma cara valora,

em espécie e viva, mas perdida do uso?

 

A moeda, caro Carlos, está furada de politicagem. A economia de ontem e de hoje é falácia e há tantos buracos nas consciências. Ali está impresso, no cruzado e no real, "Deus seja louvado". Que Deus nos livre da curra da economia! O poder é incestuoso: come os filhos como fazem porcos em usura cultural. O poder engole seus excrementos, paródia do ouro, os porcos de cédulas gordas que não chegam a cinquenta tremas do poeta itabirano, itabirito metamórfico, lamelas de hematita micácea, minerador estocástico de palavras rochosas, nos veios de seu carvão o melhor diamante. A dor de cinquenta poemas suporta o mundo e ele não pesa, o mundo pesa:

 

centavo a centavo, o semblante sustenta

a cor inventária deserdada na pele:

a face consuma uma dor de cinquenta

 

Daquela geração drummondiana repercutida nas semióticas dos anos 1950, Dennis Radünz herdou, como todos os poetas de envergadura, o ato problemático da escrita, que, por extensão linguística, é o acontecer, o existir, a existência mesma que fala como antípoda da alienação cultural.

As línguas, a princípio, estão mortas e as cidades estão mudas com todos os urros em zonas perigosas, suspeitas, danificadas, vigiadas, tripudiadas. A fome viceja e algema rebanhos, corpo sem membros de todos os corpos, membros que procuram um corpo. Oco de tudo, cheio de nada, o mito do progresso é um grito no meio da rua. Tudo televisado ao vivo em morte lenta, câmera rápida para fixar noites que não deixam de amanhecer horrores.

A cidade é a desmedida lápide. Nas paredes e nos muros estão as notícias repentinas das zonas desdentadas. Emblemas e rastros: aqui estão os humanos e suas escritas tatuadas, sinistras cicatrizes, intérpretes de chagas. Alguém ainda respira e diz o poema destes dias sem lugar aglomerados. O poeta é o intérprete da revelação que é uma decepção kafkiana.

Na "ossama" poemática de Radünz há sobrevoos da ave da história, o abutre hegeliano. A mão que escreve paira sobre o abismo nas palavras. As ruínas se acumulam sobre ruínas nas teses dessa história benjaminiana. A ave especula e devora. A subsunção mede e medra com rebanhos, trabalho escravo de maiores e menores. O homem é o fetiche do capital, homem-manada, homem-fantasma, homem-refugo.

Os ossos roçam "ossosos" no osso branco do poema. Da nau perdida, insensata, aves foram avistadas que o missivista galego Caminha caligrafou como prenúncio da roubada, a nau do erro e da primeira piada em terras brasílicas. Os nativos, desde então chamados de "índios", não riram, como no poema "As cidades sedadas", que cita a "carta do achamento" do Brasil:

 

(...) e aa quarta feira seguimte pola manhaã

topamos aves a que chamam fura buchos (...)

 

Selvas e cidades de homens desventrados, "recém-saídos da aparência", homens de espectros, aparições emergentes sem cirurgias, despedidos em carcaças, bois esfolados e pendurados nas praças de pedágio e em praças sem alimentação nem mesmo espiritual, se bem que miséria é mantida com tripas espiritualizadas:

 

e eu lhes tocaria

o fundo falso dos aspectos

 

Dizia sobre o pesadelo da decepção kafkiana no brasão da cidade, o punho que se abate nos rebanhos, nas zonas onde não moram, se escondem. No poema em prosa "O entressonho" a tomada é frontal e com pouco oxigênio. A luz se aproxima estridente em corredores com faces assustadas. O que sentem encena imagens de fuga como nos pesadelos. O narrador, que tem o cinematógrafo, também é perseguido pela luz e não há como escapar da maldição.

 

me refugio numa das últimas salas e sei: se ela vier até aqui não terei para

onde fugir.

 

A luz encosta nos corpos que se apertam sem lugar e o fogo avança na mastigação:

 

há inúmeros feridos, ensanguentados, e mais e mais em direção à porta,

corpos calcinados como as vítimas de pompeia. me chama a atenção a

enfermeira tomada por uma luminosidade que "lateja" sob a pele

transparente — eu sei, ela também foi contaminada.

 

Não há como roubar o lume e se salvar, ou, quem sabe, a labareda catastrófica seja o anjo das purgações temporárias nas eras de caos, nas quais ferimentos são curados com ferimentos. Nesse "entressonho" em travelling frontal e fade in, o pulsar da história volta em apocalipse que alivia, mas não redime. Pensava Kafka que não existem brechas, somente a vaga permanência da esperança, "mas ela não é melhor que as inscrições em lápides". A luz é exterminadora e assim converte sepulturas numa realidade suportável.

 

 

Fisionomias e inscrições

 

 

As cidades e suas zonas repletas de rebanhos estão impregnadas nos poemas de Radünz, atraído por iconografias que remontam à função original da semiótica, que indicava sintomatologias em vias da cura. A cólera deve ter sido a mais intratável, bem menos a melancolia de tempos vindouros que estavam no passado, dados por legendas semelhantes e oferecidas aos incautos nas portas das cidades.

As inscrições e as fisionomias ultrapassam a sombra de seus simulacros. Quanto mais profundo é o fosso familiar, mais os mortos retornam sob outras faces na gravidade de ser quem já foram por estarem presentes em frases que sintetizam suas vidas. Cada pessoa é uma inscrição e toda uma comunidade de signos nada mais é que cinzas, sentido que pede outro sentido. Os signos são também tumbas. Nas fases dessas fisionomias os "falimentos" são "batimentos", mesmo da irmã morta, a poesia incendiada que não adia o "contracanto" e prepara a voz, afina, "antepassando a vozaria". Não porque os vindouros sejam traidores ao transfigurarem o aphofrades em tessera. Os cacos que passam de mão em mão fazem brilhar as velhas palavras, sempre novas quando ditas outra vez, afagadas para onde vão — seus começos.

A leitura do icônico antecede a inscrição da letra, fascínio para todos os poetas. Depois de tantas representações visuais, a era da reprodução fotográfica ampliou a reversão da imagem, sendo escrita instantânea que do escuro dá luz ao que se passa e ao que se pensa. Não entramos na imagem como detalhou Walter Benjamin nas reflexões da aura: é a imagem que nos invade e conduz o olhar para o que deve ser visto e que antes nos observa. Nem sempre o olhar atua no hipocampo do ver, separado que está da memória, esse reservatório mental habitado por tempos e passagens entre o que foi e será, um dos temas fundamentais de Benjamin. Nas tensões entre passado e futuro, ele atribuiu à memória "a velocidade de um raio" que faz com que a imagem do passado sobrevenha ao presente "como algo que lhe é pertinente". Essa imagem "surge momentaneamente diante de nós num instante de perigo".

As implicações dessa versão da história "a contrapelo" pode ser a história de uma pessoa, como é o caso de Dennis Radünz em poemas vertidos com a memória involuntária e voluntária através de páginas que vira para trás para ter os fotogramas de seu presente. São uns desenhos e fotografias que provocam os choques, as reações, na realidade os disparadores de Francis Bacon, o pintor, começando com o sangue que não desgrudava de seus olhos.

Afirmei que são fotogramas porque as palavras de Radünz animam as imagens que não deixam a frase se alongar, mas se aprofundar no mundo das inscrições, quase todas com a mesma extensão e na forma de comentário e supracomentário, que são os fragmentos finais, flutuantes na página e não em semânticas que beiram o paradoxo.

O melhor exemplo das fisionomias escritas em "Ossama" é o poema "Desafinados", com o subtítulo "sobre duas fotografias dos radünz", que não esconde o conflito familiar, porém mensagem sem rancor como é sem rancor o nome dado a quem vem depois e tem que se virar para ser este nome. A foto mostra o descender mais velho ainda menino na ciografia do poema, que talvez na velhice tenha lembrado que se esqueceu de algo quando jovem. O "estranhamento do retrato", apesar de suscitar um centro genealógico, é a desfixação axial assim como do poema são as nômades palavras "sangue", "rebento", "voz", "peles" e "ribeiros". Talvez "a mais extrema dos Radünz" — Arethuza Radünz (1972-1991) — quis ultrapassar fronteiras culturais e o irmão que lhe escreve assalta-as com a metonímia que se lê na epígrafe do livro: Um livro é como a pá com que me reviro.

O curioso é que ele estampou a frase de Martin Walser em alemão o mais límpido, o que implica dizer que a língua não desfez seus impulsos históricos como nos ensina Robert Alter na abordagem de Benjamin, em especial em um de seus sonhos, no qual, no instante mais agudo, o sonhador recita trata-se de transformar um pedaço de poesia numa echarpe. Como Benjamin relatou o sonho em francês, ele traduziu o dito para o alemão, língua que teve domínio perfeito. A echarpe é linguagem volitiva, pois, esclarece Alter, este tecido que as mulheres usam em torno do pescoço oportunamente é atado no corpo de quem desejam. Desta maneira, diz ele, "a palavra se torna um corpo, ou pelo menos um material que toca o corpo".

O emprego da citada epígrafe no livro de Radünz, em duas línguas, distende a mesma tensão de Benjamin entre as culturas alemã e judaica, porém em outro sentido. Ao ter escolhido uma frase carregada de estereografias na primeira pessoa, é ele que se revira enquanto escreve o ato trágico com palavras de feltro azeitado que aquecem e cicatrizam feridas. E assim a dor, a dele e escrita em todos os corpos, não é mais objeção ao ser dita no poema, no vórtice "em que os avô e pai me foram / incendiando-se nos dentros" — praticamente uma inscrição cabalística ou de interpretabilidade que se tornou rara na poesia escrita em língua portuguesa.

Foi observado, de Benjamin, que não se entra na imagem, é ela "que se atira sobre nós" com "ângulos onde acreditamos poder ver experiências cruciais do passado". E é aqui que a rememoração no poema de Radünz se reveste de analítica temporal da imagem que o arrebatou para frente com os indícios do passado. No instante em que o olhar foi contagiado pela imagem da foto familiar, o pensamento foi arremessado para outras fotos que foram extraviadas ou não feitas e o filme da mente começou a voltar e assim transformou em legenda o que aconteceu antes e depois.

 

 

Linguagens incidentais

 

 

Não hesito em dizer, então, que Radünz deu ao poema o que é do poema, o infinitivo ao representar a cultura que o criou com nóstos (regresso) e álgos (dor). Na poeira de suas retinas, molas de analogias e células luminosas que ganham atmosfera de poemas aos despoemas das ossadas diárias, dias sedados, os dados da gritaria nas cidades. E a cidade de antes, morada desenhada pelo poeta adolescente, rua por rua, casa por casa, letra por letra, à qual ele volta de si revirando-se no episódico do eu no outro.

Cidade da memória como assíntota desenhada por Dennis Radünz aos 12 anos de idade, Candeias1, no ano de Orwell, 1984, arqueologia de futuros que davam das imagens, e ainda dão, o começo do lembrar cidades solitárias com todas as presenças infernais que não dormem, que não sonham, cidades tão bem construídas que o que vemos são ruínas, máscaras, pesadelos e cadafalsos que os poemas de Radünz, dilatadas as pupilas, evocam como espectros da megalópole de Anselm Kiefer, a cidade que vista do alto no sobrevoo fascina e intimida.

Uma coisa é ver a cidade do alto, outra é nela andar no extravio de suas promessas. Duas leituras que se complementam, mas como se fossem sombras chinesas. Do alto lemos a cidade, nela a cidade apaga a leitura ao nos ler. Do alto as transcrições, do baixo as inscrições no osso, na ossama, no amasso icônico e indicial, numa linha o poeta que saltou a leira, os sulcos entre os versos, e noutra a massa de manobra ou mistura de heterogêneos (amassilho), que acaba em mistura química explosiva (amatol): "como se nos alimentassem / somente pães de explosivo".

Cidades incicatrizáveis, poemas de suturas na designação de esparadrapos do designado numa poética de incidentes que do acessório analógico transfere-se para o indicial. A dialogia e a monologia que na semioticidade de Octavio Paz ainda tem para o poeta as imagens das semelhanças e identidades que não bastam a Radünz, poeta da reversão ao animar o que há do outro dito por ele no monólogo, enquanto o eu do diálogo reverbera os sinais que pertencem a todos e não são de ninguém, sinais físicos na mesma proporção com que os signos são substratos fenomênicos da consciência que mediam, recombinam, exumam com todas as metonímias. Sim, dos fenômenos, desconhecidos, mas companheiros psíquicos com os sujeitos e objetos mirados, mirando-nos, enquanto é essa ordem. O cotidiano, dentro e fora, desorbitado orbitando-se na formação do poema. Como em "Desconhecidos":

 

o nó dos dedos tamborila sobre o tampo

um toque lento entre a louça entreaberta

em mesa posta para o espírito do escasso

ou para o plasma que tocasse os relentos

 

Poema do entorno com o enunciado de sobrecriaturas e subcriaturas com todos os contornos de uma Brasília sem Bastilha, o pálio tremulando, tremendo a ordem do progresso nas dobras e redobras da bandeira, geografia de famigerados e famintos, desdobras da razia, mundo de fome, fome de mundo. Estamos em que ato? Há alguma novidade? Terá o mundo se tornado honesto?

 

E na quarta-feira seguinte pela manhã topamos aves a que chamam fura buchos.

 

 

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1Dennis Radünz desenhou em 1984, aos doze anos, cidade chamada Candeias. O caderno, no formato horizontal (20,8 x 15 cm.), contém 74 páginas de uma cidade de feição rupestre, feita a caneta esferográfica azul, vermelha, verde e preta.

 

 

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maio, 2017

 

 

Jayro Schmidt é ensaísta, poeta, pintor, gravador e desenhista. É autor dos livros Vincent van Gogh: pintor das cartas (1996), Cruz e Sousa: poeta do abismo (2000), Paulo Leminski: do carvão da vida o diamante do signo (2006), No sertão das palavras — Leitura de Grande Sertão: Veredas (2010) e Marcel Duchamp: Eros é a vida (2015), entre outros. Vive em Florianópolis (SC).