quando o céu cair

 

 

em berlim eu passava

grande parte do tempo olhando o céu

muito azul bem no final do inverno
fazia muito frio e eu achava engraçado

porque parecia que o céu contradizia 
a temperatura

como pode tudo ficar tão

bonito com uma temperatura tão baixa

em berlim eu fiquei no lado oriental

mas um dia fui ao lado

ocidental em uma rua

onde havia muitas mulheres sírias
pedindo alguma coisa para qualquer um

que passava

eu sentei em um banco de uma praça

e uma das mulheres percebeu talvez

ela não é alemã e veio

falar comigo em inglês

perguntando se eu sabia falar

inglês? eu disse mais ou menos

o que na verdade

foi resposta nenhuma

então ela pegou um papelzinho e começou a ler

a mesma pergunta

em várias línguas línguas

que eu nem sabia

que existiam

sempre a mesma

pergunta e eu fiquei sem reação não consegui

parar de olhar para
o papelzinho com a mesma pergunta até

em português ela lia

uma por

uma atrás da outra

sem interrupção até

que ela terminou de ler ela

levantou os olhos para a minha cara e antes de

se virar e procurar outro

qualquer alguém ela

me olhou por um segundo e meio

frustrada meio irritada

como quem não aguenta mais

repetir sempre a mesma coisa

em línguas diferentes para

todo mundo the whole world

que parece falar língua nenhuma

sem entender palavra

de nenhuma língua sequer

nem da sua que parece nunca ter sido
sua

ela

fala para ninguém

ela fala

para ninguém

como eu sem expressão como alguém

que não estava entendendo

como se eu não falasse

mas é ela que fala

todas as línguas

vêm dela todas

as línguas são todas

elas concentradas em uma pergunta
que se repete

em ouvidos outros

em rostos sem

rostos

sempre sem resposta

o céu muito azul

estava no rio
anteontem antes de

ontem e antes e antes

no mesmo momento na mesma hora

os imigrantes sírios estão morrendo

entre a ásia e a europa

os imigrantes entre 

a áfrica e a europa imigrantes

entre a américa e

a américa o mundo

parece que fica todo tão

bonito e a vida parece

que faz tanto sentido

quando o céu muito azul do início

da primavera

cai sobre o rio

um dia antes da foto do menino sírio

morto se espalhar pelo mundo

que desde um dia antes

e antes

parece que foi sempre ontem e nunca

hoje

e sempre esse céu

sobre berlim ou aqui aqui

ou lá

paira na atmosfera do universo

contradizendo a temperatura
do mundo

e deixando sempre a mesma pergunta

sem resposta

em todas as línguas

 

 

 

 

 

anticorpos

tenho tentado sobreviver com alguma calma
e bebendo bastante água
sempre tô apertada com vontade de fazer xixi
e aprendi que esse músculo que a gente contrai quando a gente sente vontade
de fazer xixi se chama assoalho pélvico
deve ser meu músculo mais forte
aquele lá embaixo e que normalmente a gente nem sente
só quando a gente fica apertado
no ônibus sinto que fortaleço tanto meu assoalho pélvico
que um dia ele vai acabar estourando
muitas coisas me aborrecem
telefone tocando essa política de merda esse trânsito
me aborrecem enormemente 
eu tento ter calma mas o melhor é ir bebendo
água faz tempo
meus anticorpos decidiram
usar a tática da terra arrasada
no meu corpo vira e mexe
eu preciso tomar vacina pra essa coisa
chamada imunidade
a gente é tão vulnerável, né
às vezes respiro mais fundo
só pra conseguir me manter na superfície
porque se afogar no raso é o fim
da picada é o fim
algo vai acontecer no universo
iremos ver um planeta maior
do que a visão que temos da lua
não sei o que aconteceria mas
isso mudaria todo o eixo gravitacional
caramba
eu queria ver
fico aqui tentando encontrar
mas só vejo notícias de marte
seus filhos poderão viver lá
e sobreviver
é o fim da picada
enquanto eu procurava o tal planeta que você disse
encontrei no brasil 247 o jornal online dizia
marte estará completamente colonizado
em 2027 afinal
a exploração está no nosso DNA
veja é o fim
mas ainda tô tentando achar uma notícia falsa
dizendo vamos ver um planeta
e essa visão será maior  que a visão que temos
da lua e isso mudará todo o eixo 
não se inventa uma notícia dessa todo dia
ou vai ver se inventa
vai ver essa invenção é manifestação do desejo de alguém
que quer muito ver esse planeta
e aí surge essa criação de uma notícia que nunca existiu
melhor que você tenha inventado
acho que vou deixar de procurar 
essa notícia vou deixar de procurar até
uma notícia que seja falsa
vai ver foi um sonho
melhor que você tenha sonhado
um sonho faz isso com as pessoas
eu tenho inveja das constelações que sobrevoam a sua cabeça
e se ali em cima não é um escorpião
passou a ser
porque você disse
e eu passei a ver
já ouvi dizer que os escorpiões se matam quando estão sob perigo
tão forte que sabem que vão morrer
mas isso é mentira
já procurei saber e vi que isso é falso
o escorpião não se suicida
os músculos dele vão se contraindo
pra gente que tá vendo de fora
parece que ele está enfiando o ferrão em si mesmo
mas são as contrações dos músculos dele
tentando sobreviver tudo é uma ilusão de ótica
pra quem está vendo tudo
de fora pra quem não é escorpião
veja só o suicídio
as pessoas e o modo como elas olham a ilusão
de ótica é que é ilusão eu me recuso
a ler a notícia até o fim eu me recuso
a morar em marte hoje amanhã ou em 2027
não a exploração não está no nosso DNA
meus filhos não poderão viver lá
porque eu nem sei se quero ter filhos
no momento eu só queria ver o mundo
inteiro se possível dentro de um disco voador
mas só um pouquinho
sem demorar muito
há nervos falhando
ao anúncio de sobrevida em 2017
estaremos ainda tentando encontrar
corpos estranhos na terra
tentando encontrar corpos
estranhos aos corpos na terra
tentando encontrar anticorpos 
não a exploração não está no nosso DNA
mas noventa por cento do nosso corpo é constituído de corpos
invasores
e água
somos todos invadidos
por outros corpos estamos todos entre
a água e outros corpos
eu respiro
e você fala
com alguma calma
enquanto extrapolo limites
do instinto de sobrevivência
retendo no corpo um pulso que bate
na pélvis a realidade é sempre o buraco mais baixo
quando a gente tá apertado de vontade
o buraco é sempre mais embaixo
quando acontece o encontro imediato com o outro
corpo retendo no corpo aquilo que o outro insiste em expulsar

 

 

 

 

 

 

um salto

 

 

hoje ouvi alguém dizer
enquanto eu caminhava
alguém dizia

hoje muitos cavalos
desviaram ou foram de encontro
com os obstáculos nos percursos
nas provas de hipismo
provocando a queda ou quase
muitos cavaleiros caíram
ou quase caíram se desequilibrando
perdendo o ritmo e o tempo e às vezes não concluindo
o percurso eu escutava
alguns cavalos também caíram
ao irem de encontro com o obstáculo
alguns cavalos caíram feio
foram de encontro
com o obstáculo enquanto eu caminhava
alguém que acompanhava os jogos dizia
alguns cavaleiros caíram feio
ou quase caíram
mas levantaram
e saíram andando
parece que não se machucaram
mas ficaram de fora
perderam o percurso
o ritmo o tempo enquanto eu caminhava
enquanto eu continuava
a caminhar fiquei pensando
nas vezes em que se entra errado num salto
na hora do salto
o casco do cavalo pode bater na vara
antes do salto o cara pode errar a mão na rédea
pode desequilibrar mexer demais
a mão na rédea atrapalhando a direção
puxando
a boca do cavalo a mão na rédea
como um soco machucando a boca
do animal
entrando errado no salto antes do salto
dando a batida errada do salto
entre um salto e outro um obstáculo e outro
a distância pode ser curta demais
pode ter uma ligeira curva uma ligeira
manobra que dificulta tudo um espaço curto
para o cavalo esticar um espaço

insuficiente para deixar o cavalo esticar
o mínimo necessário para saltar entre
um obstáculo e outro

muitas barreiras existem no percurso
obstáculos previsíveis que se tornam na hora
impassíveis obstáculos imprevisíveis
que na hora
são contornados mas às vezes não
obstáculos imprevisíveis como a vontade
de não saltar como um impulso
de parar

na frente do obstáculo logo antes do salto
o impulso imprevisível muitas vezes por um erro
do cavaleiro ou da amazona mas nem sempre
às vezes pela simples imprevisibilidade
do animal pela simples constatação
de que um animal é um animal
que pode saltar
mas também na hora H pode não
saltar aí não existe isso de governar
de comandar de estar no controle
não há chicote que adiante 
há dor se você quiser 
muita dor 
mas não há estar em cima
de um animal se você não sabe 
que nisso não há nada 
de controle se você não sabe 
que montar é ser montado
pelo animal também é ser montado
pela imprevisibilidade do animal também
não há dor que adiante 
para impor uma vontade simplesmente
há momentos em que o animal escolhe
parar recuar não saltar o animal escolhe
desviar logo antes do salto de cara pro obstáculo

na hora H o animal escolhe
enquanto eu caminhava 
eu fiquei pensando 
a maioria dos envolvidos neste percurso

simplesmente continua
antes ou depois
da queda 
a maioria vai em direção ao salto
e simplesmente continua

no colapso na colisão no choque
antes ou depois da queda 

a maioria levanta e sai 
andando como se nada tivesse acontecido
sabe como é
saltar olhando por cima da linha
do horizonte saltar olhando por cima do obstáculo
manter o olhar alto
em direção ao céu
o olhar fixo num objeto distante
saltar
com as mãos nas rédeas os pés bem firmes 
nos estribos com os calcanhares para baixo 
realizar o salto com o olhar fixo acima do obstáculo
saltar e depois saltar  
olhando por cima
eu nunca entendi muito bem o que é gostar
de competição 
eu já tentei mas eu sempre fui muito ruim nisso
hoje eu simplesmente decidi desistir 
de achar que eu tenho que gostar de competir
enquanto caminho fico pensando na desistência

dos cavalos e na insistência 
de quem está no controle
das bocas deles
com capacete colete e outros acessórios
eles sabem cair com proteção
é bom que tenham proteção
porque os cavalos podem desistir logo em cima eles podem
resistir 

simplesmente 
são tão frágeis 
são capazes de morrer
de cólica 
são tão frágeis que se incomodam 
quando sentem cosquinha 
sim eles sentem cosquinha 
todos os cavaleiros ficaram bem 
depois da queda 
é bom que tenham proteção
antes da queda ainda 
gosto da ideia de os cavalos desistirem 
de saltar os percursos nas olimpíadas 
desistirem de saltar os obstáculos hoje
aqui no rio de janeiro

se deparar cara a cara com eles 
e na hora H desviar 
recuar por um breve momento
objetos intransponíveis
cara a cara com eles 
depois de caminhar 
eu voltei pro jóquei 
mas antes eu quis escutar
não é cair: é voar com estilo
depois de caminhar e antes de ir pro jóquei
o livro da matilde campilho
eu quis escutar 
o vídeo que havia ficado de fora do jóquei

depois de não encontrar
o poema por escrito
só fiquei escutando 
e guardando de cor o título 
e pensando na queda
em muitas quedas

e em muitas formas de cair 
não é cair: é voar com estilo

há os que caem com estilo
talvez a matilde não caia 
com estilo
talvez ela voe
talvez não haja salto 
no jóquei
talvez seja voo
talvez salto queda e voo 
sejam três coisas diferentes 
mas às vezes a diferença é tão sutil
às vezes é tão sutil como a passagem
de um estágio para o outro
às vezes nem é passagem
não é cair: é voar com estilo
seria um voo que ficou de fora dos saltos
do jóquei
eu me pergunto os saltos
no jóquei
não poderiam ser voos
os voos no jóquei 
não poderiam ser 
uma espécie de queda 
enquanto caminho
eu me pergunto 

os saltos 
quando são bonitos assim são voos
e não quedas 

eu penso nas quedas
enquanto caminho 
hoje há os que caem com estilo
levantam e saem andando normalmente
eles sabem cair
e têm alguma proteção
não há cair sem estilo
na poesia porém 
melhor é a suspensão
no salto sobrevoar
no jóquei haveria um voar

com estilo não sei 
se com estilo não sei
se o antes do salto 
não poderia ser uma espécie de plainar
também um momento em suspensão 
sem estilo o espanto bem na hora do salto
o coração sobressaltado 
logo antes do salto o cavalo recua e 
olha você de repente no chão
bem na iminência do salto 
logo antes do salto um movimento 
de parar de repente uma queda
olha
você

na terra
na iminência do salto
você então 

demora um pouco 
a entender 
e sem entender ainda
sob efeito do susto 

ainda espantado ainda sem saber
se todas as partes do corpo estão inteiras
antes de continuar você continua um pouco
sem entender

você se vê de repente no chão 
depois da queda antes de continuar 
você para um pouco 
e olha de longe
o animal 
até que ele volte

até que ele queira voltar e enquanto isso
há suas mãos e seus pés e suas costas 
suas costelas e seus braços e seus dedos e sua coluna
e seus cotovelos podem estar arranhados seus antebraços
podem estar sujos de terra até o seu rosto
pode ter ficado um pouco sujo
e você pode ter inclusive comido um pouco de terra 
seus ombros podem estar um pouco doloridos
seus joelhos podem ter ficado machucados
os olhos embaçados e o coração em sobressaltos
do susto os pulmões um pouco sem fôlego a respiração meio irregular
neste momento suas mãos
fora das rédeas
estão fazendo festa no pescoço do animal
as mãos que escolheram ficar 
suspensas neste momento fora do corpo
estão fazendo festa
em suspensão
as mãos que não estão
nesta hora por um breve momento

o céu se lança 
em queda livre 
escuta
este salto
é o maior salto

que uma queda poderia manter 
como um voo
enquanto eles olham em direção ao céu
caindo
com estilo

o olhar alto e fixo em um objeto distante 
os saltos no jóquei caem
como voos
imprevistos
sem estilo ensaiam a queda

no jóquei e fora do jóquei também
em não é cair: é voar com estilo 

não há voar com estilo e há cair 
dentro e fora do jóquei os saltos 
ensaiam os voos a festa os saltos
improvisam a queda
sem o olhar fixo e alto escuta
enquanto eu caminho
alguém fala e eu respiro
sem o olhar fixo escuta
enquanto eu continuo eu não sei

mas eu acho que esse é o maior salto
antes do salto um movimento de parar
antes um movimento de mover 
o maior salto
que uma queda poderia manter
como um voo
sem estilo

 

 

 

 

 

 

salto no vazio

 

 

dar um salto um salto do alto dos escarpados e cair 
em um salto no vazio de 
mais de cento e vinte metros dois dias
após a quebra total após a eclosão
da casca nas primeiras horas de vida um convite a saltar no precipício o ninho 
em paredes extremamente íngremes onde raposas nem ursos polares

alcançam para que possam tirar a vida longe tão longe até
mesmo da grama que serve de alimento 
o alimento não vem dos pais os pais também caíram um dia sobreviveram 
à queda todos são incapazes de voar agora 
em um grito lá embaixo um chamado agora incitam a saltar em
uma das táticas de sobrevivência mais extrema aos
dois dias de vida nas primeiras horas após a eclosão um salto desde
no alto dos escarpados cair em um salto de mais de cento e vinte metros mais

de uma porrada contra as rochas o corpo ainda
vulnerável colidindo em queda
livre contra as rochas com o fim
de atingir o solo para só então ser possível começar o restante de sua vida

a vida do gansinho filhote de bernaca

 

 

 

 

 

 

a pelo

 

 

tenho 6 parafusos
na coluna sustento uma degeneração
precoce e uma queda que poderia ter sido evitada
mas na vida caímos inevitavelmente
como uma degeneração
sem saída mais cedo ou mais tarde
viramos pó em direção ao centro da terra  
sigo com corpos estranhos que me mantêm  

hoje sem rédeas 

e se um dia já tive 
direção não sei
se um dia já tive

sustentação não sei

quando eu tinha 16 

minha coluna já soprava 60 parafinas em brasa

e debochava do pó das eras geológicas das Idades 

da gravidade que desmontava mas que ainda deixava

parafusos
a Torre Eiffel é que é de ferro
eu sou de titânio e osso

e sobrevivi às voltas do século XX à cartilagem e fôlego
e ainda sustento algum afeto porque ainda há heavy metal 
no século XXI baby

a vida é heavier than heaven

tudo é baixo grave e só há fricção

em cada passada minha um segundo
pesa como toda decisão
e se até o pelo pesa e cai
a diferença é uma curva
em peso o único caminho
encurva a diferença
no pelo apenas uma letra 
aponta para além da letra um corpo
forasteiro
em peso um metal arranha
o corpo e vai
próximo ao chão e além
do que seria o paraíso o início

da queda o princípio nada além
do chão a gravidade de um apelo vamos
dançar no precipício baby
vamos em peso a pelo no pelo 

a pé não é que esse mundo é grande mesmo 

no sustento que pisa em falso eu já vou chegando
foram tantos que se foram
aos 27 vamos diferente eu já vou
também chegando
à sombra árida dos 27

nervos que falham ao anúncio 

de sobrevida em 2017 fisgadas
elétricas britadeiras amplificadas 

vamos abrir flancos vamos
a pelo abrir flancos no peso vamos direto
para o chão fazer o céu cair
precipitando a curva
do peso para além do peso 
vamos no pelo a pelo direto para
o cerne do poema

o caminho deve ser mesmo insustentável

sem volta
nem rédeas

onde a vida é grave
e inevitável é a queda

 

 

 

 

 

em casa

 

 

há um abismo entre o que eu queria falar e
o meu modo de quebrar o silêncio
há uma ânsia de desistir

de falar desisto de procurar sua voz onde

está seu pensamento quando você está
a menos de um palmo de distância um abismo

minha voz e o que treme aqui quantas quebras

há em suas mãos quantas línguas partidas quantas terras

arrasadas eu vou catando as sobras

dos seus desastres por aí por quanto tempo a vida

eu me pergunto por quanto tempo a vida é viver tentando

em busca à espera quem foi que te fez assim por que

eu sinto todos os seus anticorpos todos que eu nunca tive

a resistência dos seus membros a postos

se virando sozinhos pela cidade enquanto

todas as suas vísceras foram deixadas em casa

onde você esqueceu de falar

não há nenhuma voz que te lança

no mundo você não está em nenhum lugar por onde você pisa

você continua em casa nenhuma voz te lança

no mundo você com seu mapa sempre sabe

por onde ir suas pernas nunca estão perdidas

sempre sabem como voltar não há resto nenhum

seu pelo mundo há todas as minhas partes entre

o que eu queria falar e o meu modo de quebrar
há um abismo em que caí tentando

procurar suas partes e não acho

acho que desisto morrerei

em casa escutando o silêncio

 

 

 

 

 

 

entre um cigarro e um sanduíche

 

 

você não precisa de mais ninguém 
além de mim para ensinar o que é ter cansaço

de pessoas demasiadamente cansadas

tão desiludidas que vivem como se 

se bastassem não como se vivessem morrendo

de medo mas como se não vivessem mais

simplesmente já sem medo sem dor

sem gozo a vida anestesiada você já sabe mesmo

sofrer sem dar sinal eu vou me esforçando
mas eu não sei nem quero todo meu esforço não é porque eu peço
para você fazer o sanduíche ou porque você sabe enrolar melhor
os cigarros não é aí que estou em suas mãos
há algo mais que a gente mostra
olha minhas mãos
não alcançam quase nada nesta casa

tudo é inalcançável demais e eu continuo vivendo

como se suas mãos fossem substituir as minhas permanentemente

quando para mim seria apenas temporário

como o espaço que eu não ocupo nesta casa

os armários as paredes os cantos todos respiram

sem mim quanto ar cabe em seu pulmão
um dia você me ensinou a respirar
profunda e pausadamente mas

o pulmão cheio não cabe na sede só resta o cansaço

pelo esforço de tentar não ir embora sempre

quando me vejo em suas mãos

abertas demais quando preciso dos seus dedos

para enrolar os cigarros quantos dedos cabem
entre um cigarro e um sanduíche quando preciso de suas mãos

para fazer sanduíches de suas mãos para tirar as roupas

do varal de suas mãos demasiadamente cansadas

de estarem vazias sustentando só o seu corpo 

autossuficiente por todos os lados você e um certo espanto

pelo silêncio de alguém que é capaz de viver

sem ninguém você e um certo espanto que um dia eu tive

em minhas mãos hoje só meus restos de cansaço entre
um cigarro e um sanduíche restos que suas mãos também não alcançam

 

 

 

 

 

 

saída

 

 

ainda bem que você veio bem no risco

das palavras nos lábios eu te encontro
no mesmo lugar em que eu também corro
perigo entre minha boca e seu ouvido
minha voz atropela você aconchega
sua solidão na minha rumo à

próxima curva eu vou no pedal logo atrás
do seu à altura do seu olhar eu vou
sentir o cheiro da rua com a virilha

equilibrada sobre os pés na entrada já temos um cocar

e balões vermelhos subindo pelas paredes
já te tenho selvagem em todos os meus cantos

às vezes a vida fica boa ainda bem
você veio e me mostrou
a varanda é a porta de entrada

 

 

 

 

 

dimensões

 

 

uma dimensão totalmente nova

de forma coordenada disseram a quem

a poesia lança a voz há uma interrogação

aqui um abismo na fratura há uma infinidade

na outra face da linguagem no mutismo 

de uma língua sem palavras o vazio há

quem diz dar vida ao vazio como quem dá forma

ao vazio para ser possível sobreviver mas

um vazio exposto ao qual não se dá contorno não se sabe como

o lápis não sustenta apenas um gesto assustadiço

de quem não consegue de quem já não pode de quem não

é de uma dimensão totalmente nova as agressões

em série disseram foi de uma forma coordenada cerca de mil os fogos

cruzavam o céu frio de colônia anunciando este novo ano quando uma onda

de agressões avançou contra os corpos de mulheres propagando uma nova dimensão em

toda nova dimensão há um morar sem palavras

na língua apenas um acenar da impossibilidade

de falar da impossibilidade eu gostaria

de ter começado com o mundo inteiro

que vai ao meu encontro no momento em que uma vida clandestina pulsa

dentro de mim no momento em que formas e cores invadem

o teto do quarto conforme o vento suga a cortina um caminho

inventado que se move em baixa rotação o amor nesses tempos como uma forma de

resistência o começo de tudo uma dimensão sempre mínima posição periférica nas coordenadas do mundo transitam os corpos que escorrem no dia a dia em todas as direções os corpos vão

sob o sol na areia no hemisfério sul todos os outros sob o sol

estendido na areia como tudo que cai 

e fica no chão o corpo do jadson morto na areia abre uma dimensão
apenas um nordestino morto quem seríamos nós

que já produzimos tantas pausas em domingos ensolarados agora

não há entrave não há nada no meio do caminho a vida escorre

em deslocamento todas as vozes tateando um encontro qualquer um aceno um grito

 

 

 

 

 

âncora 

 

 

eu e minha mania de ancorar um catavento

no oceano

e uma conjunção adversativa no ciberespaço

minha mania de prever o passeio das partículas 

que não se perdem no escuro 

mas que talvez possam atingir a Terra

um dia  

minha mania de ancorar um catavento no oceano

vai pensar bem como marília

disse de K. e suas âncoras
o nível do mar

é um engano como as lambidas de poodle

de maíra bebem o oceano

de ana que sempre abrigou espaços

vazios e nunca navios

a se atracarem por uma

mania de achar que há dois ou três 

milhões de pessoas que não mais 

assistem aos filmes hollywoodianos 

um dia

a mania encontrará

outras fulanas só continuando

a atestar a obsessiva histeria

de sobrevida dos pulmões até que

um dia

a mania

que não é só minha

terá que descer por alguma goela

e parar no máximo no estômago

 

 

 

 

 

 

este é um animal que tira selfie

 

 

                                      com caio paz

 

 

este é um animal que tira selfie 
um animal que cumpre o seu destino
político descumprindo
o seu suposto destino 
político ainda não inventado
o político desde sempre foi cumprido
instituindo o fora
desde o dentro mas
o político deveria ser o outro desde
o outro mas desde sempre 
que a política foi inventada os outros só existem
a partir do limite que traça
os meus próprios traços do destino sempre cumprido 
desde o início cumprimos nosso destino 
político sou um animal que tira selfie talvez um animal  
mostrando traços outros que lhe traçam o bárbaro
traçando o imundo que um dia ficou de fora
do mundo traçado a partir do espelho
um animal talvez um bando ou só um animal
talvez descumpra seu destino 
político instaurando talvez o político

 

 

 

 

 

terror

 

 

                                               com yasmin nigri

 

 

extinção tem sido a palavra de ordem

nestes últimos tempos a violência

desta vez não vem do escuro tudo

está às claras

um massacre ainda cai sobre nós

e hoje vira sombra

não mais se esconde por trás

da política a sombra da polícia

se mostra de frente por trás por todos os lados as duas em uma por cima e

por baixo somos violentamente penetrados

por uma máquina de extermínio hoje

eu me pergunto se o mercúrio não tem estado sempre retrógrado

não mais me pergunto onde a comunicação falha

ela não falha claramente ela acerta

o buraco no qual nos vemos lançados

a cada dia o mundo vai mal

ando pensando que o último asteroide

aquele supostamente responsável pela extinção

dos dinossauros caiu aproximadamente

há 66 milhões de anos

segundo fontes duvidáveis como todas

deveriam ser a maior das extinções

foi há 251 milhões de anos

e acabou com cerca de 90 a 96% das espécies

a extinção

seguinte a essa e imediatamente anterior

a dos dinossauros foi num intervalo de aproximadamente

50 milhões de anos

então se a última foi há 66 já passamos

desse intervalo tudo indica que estamos ainda

com tempo a velocidade da rotação da terra anda

ficando mais lenta também 

cada dia mais

isso não é bom é uma espécie de extinção apesar de

o processo ser lento e ainda termos algum tempo é inevitável

os dias são de guerra há urgência os poetas andam

enxergando sombras brancas rasgando o breu

em uma única visada

na sombra de um meteoro

cruzando o espaço a barbárie dos tempos

atemporal a colonização penetra

rasga invade a queda se anuncia nos olhos

que fitam o escuro à luz do dia

poucas coisas apontam para uma sobrevida

será que seremos lembrados

após a morte não precisamos de mais tempo

para saber que sobrevivemos ainda

com a poesia

é nela que convivemos intimamente

com corpos estranhos

dar corda no relógio e acelerar o tempo

não faz afastar da noite as sombras os corpos

estranhos que nos habitam resistentes

andamos nus como os poetas com os poetas andamos nus porque andar

nu é andar tão somente com corpos estranhos parir um poema

é parir às custas de si não há mais o em si mesmo

se ser assombrado é uma sensação de morte

só o é porque é uma sensação de vida

o poema acontece

no assombro porque é no assombro que nos vemos

fora de nós mesmos suspensos

no tempo e no espaço lançados

numa aporia incurável em que não distinguimos mais

eles de nós somos o engano

podemos morrer

abraçados à lágrima de não existirmos mais

mas na mesma visada as águas que escorrem trazem também

o naufrágio entre a possibilidade de morrer dobrado

sobre a lágrima

e a espera

de a lágrima congelar para ser possível

ir por cima dela por sobre ela entre

a possibilidade e a espera 

o que há é a um só tempo

o terror

de naufragar

todas as horas da vida a decisão que se impõe

em todas as horas da vida o ser que há incuravelmente assombrado sobrevive

mais que isso vive

de braços dados com as sombras

o impossível que cria com o barco invelejável que parte de si o ser é

um blefe

o ser que existe aí para ser lembrado após a morte é um ser com

ela ou com ele porque alguém decidiu gostar

da possibilidade

de se dedicar

todas as horas da vida

à poesia

e gostar dessa possibilidade é gostar

de se dedicar

tão somente

ao outro

na noite enquanto todos querem dormir

alguém desperta

e faz da noite

um despertar

todos os dias meteoros caem e todos

os dias temos ainda algum tempo

uma foice avança

sobre as mãos de todos

os homens que se empenham em destruir em possuir em governar hoje

nestes últimos tempos

é possível amar

diante do terror

do naufrágio

no instante imediato do terror dos tempos

caberia o amor

nas mãos o que não queremos preso

nestes últimos tempos

amar é se dedicar

ao que não queremos preso

nas mãos o coração eis o terror

quando amor

e terror

se entrelaçam

estamos falando daquilo que há de mais frágil

e vulnerável e precário

sabemos que ir ao amor

como ir aos escombros

do terror é ir sabendo da queda

irreparável muitas vezes incurável

em terreno esburacado

como quando fitamos a vida

sem lente sem filtro em sua nudez em tudo há a possibilidade de ser

um sítio de guerra nestes lugares onde se está de mãos dadas

com o fracasso não há ombro que salve

a linguagem falha

quando estamos lado a lado

com a ruína o peito

assume a forma de toda a extensão de um sítio frágil

quando amar é correr o risco

de naufragar

o terror de amar encontra o terror de naufragar

na iminência da mesma queda não há saída

tombamos inevitavelmente como quem cai

apaixonado

cair brusca ou brandamente é apenas uma questão de tempo

para se ver caindo no real o terror

de amar é o medo de tombar

não há salvação enquanto a Terra não para

enquanto o asteroide não cai enquanto a extinção acontece

em todas as horas da vida alguém explode o tempo

como um meio de vida e como um modo de amar

isso sim é uma máquina de guerra

 

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Danielle Magalhães nasceu em 1990 e vive no Rio de Janeiro. É graduada em História (UFF), mestra em Teoria Literária (UFRJ) e atualmente cursa o doutorado também em Teoria Literária (UFRJ), dedicando-se ao estudo sobre poesia brasileira contemporânea. Foi publicada em revistas literárias como Mallarmargens, Polichinello, Plástico Bolha e Pittacos. Publicou o livro de poemas Quando o céu cair (megamíni/7Letras, 2016). Edita, com Maíra Ferreira, a revista Oceânica.