Bem-Estar

 

 

Apenas um tampão para um buraco, qualquer que seja ele:

(                  ) de sujeito, (                   ) de desejo, (                  ) de linguagem.

Um furo no espaço preenchido de ar, gás e metáforas. Um cancioneiro (quando o carteiro chegou e meu nome gritou com uma carta na mão...) ou uma marcha (hei você aí me dá um dinheiro aí, me dá um dinheiro aí!). Um tango (el dia que me quieras...), um samba-canção (alguém com tu, assim como tu...), um bolero (un poquito de tu amor, un poquito nada más) ou um fado (                    ).

Uma moda (                    ) ou uma sevilhana (                    ).  

E na veia das encenações do que falta, um tampão para uma tragédia:

(                 ) de Sófocles, (                 ), de Eurípides, (                 ) de Ésquilo.

Um preenchimento de um vazio. Abarrotado! Felicidade. Abarrotada! Felicidade ainda que tardia. Como dizem, a minha é diferente da sua. O que me faz buraco e o que me lota, o que me deixa furo (                    ) e o que compensa. O que não completa e por certo não me ausenta, preenche (não adianta vir, com guaraná pra mim, é chocolate o que eu quero beber...).

Uma lacuna no conceito.

(                                )

(                                                    )

Felicidade.

 

 

 

 

 

Acompanhamentos

 

 

Basta! Não venha me dizer que a gente nasce sozinho et cetera e tal. Vá, se mande, quando eu nasci eu já era parte de um bando e você também. Não me refiro àquelas pessoas todas que se agrupam na sala de partos: mãe, pai, enfermeiros e médicos. Muito mais. É que antes de eu nascer já existia laço, já existia quem me desejasse e quem me curtisse (ou não), quem me escolhesse um nome e, tivesse eu nascido homem, por certo que haveria alguém para me presentear com um uniforme de time completo: camiseta, calção, boné, meião e chuteiras. Penduraram um par de sapatilhas na porta, colaram lacinhos na minha cabeça, brinquinhos, e eu fui jogar futebol com toda minha singularidade.

Vá! Que eu não preciso aprender a ser só coisa alguma. Eu nem ninguém. Basta. Caso tivéssemos nascidos sós, deste jeito que dizem e que defendem, assim continuaríamos por instinto e não por ensinamento. Vá, se mande, porque o aprendizado é uma coisa que se faz em vice-versa e a partir de desejos respondidos (ou não), de demandas retrucadas (ou não), dos aplausos e das vaias. É que o mito do aprender a ser só não substitui a experiência de vida nem o contato com os outros. Então não venha me dizer que o homem mais forte do mundo é também o mais solitário porque eu estou cansada de uma gente que não vai porque tem medo de sofrer. Você tem fome de quê?

Vá, pode ir, que eu não quero nem saber do homem que se torna autêntico apenas quando aceita a solidão como o preço de sua própria liberdade e nem daquele que acredita que ser só é a condição originária de todo ser humano. Só os gatos nascem livres. Nós, eu e você, nascemos culturais. Monogâmicos no Brasil, poligâmicos na Arábia Saudita. É fato! Ninguém nasce sozinho, ninguém vive sozinho, ninguém morre sozinho. Nascemos, vivemos e morremos metáforas lidas por um outro em quem nos reconhecemos (ou não). E a ele sequer precisamos dirigir a palavra, apenas existir. Você tem sede de quê?

Se mande, junte tudo que puder levar, pois aquele que conhece a arte de viver consigo próprio, e tão apenas, ignora o aborrecimento, não cria bagagem. É impertinência, é ilusão, pois nada se ausenta totalmente e também não há como escapar da dor e delícia de ser o que é. Vá, que no isolamento não tem o que se mova, nem o que se misture, existe apenas um suspiro e o tamanho do umbigo de cada um. Todo ser humano está só? Porque se fosse tão essencial viver de acordo consigo próprio, e na solidão, cada um de nós não teria aquela necessidade dos outros e sequer pensaria em co-existir com eles, por amizade, por atração, por amor, companheirismo ou exibicionismo. Pois então que você se vá, porque aqui qualquer encontro entre dois humanos lota um ao outro de própria existência. Aqui, o fato de saber que existe um outro da mesma espécie, por comparação ou reconhecimento, já não mais isola ninguém do mundo, nem protege. 

Ande, tudo que parece seu é bom que agarre já que eu não quero nem saber desta história de atravessar a vida com alguém que acredita que está só, que vive só e que só irá morrer. Ouvi por ai e concordo: é dilacerante aceitar que a vida sem laços é a única forma de liberdade possível. Não posso acreditar que aquele que se basta em si mesmo, tão apenas, pode ser tão absoluto de modo que o mundo se ausente de seus próprios diálogos. Quem por monólogo segue sozinho, quem acredita que não é preciso sentir nada diferente do que sempre sente, esconde a si mesmo por falácia. Vá! Ninguém se preserva do seu próprio cotidiano. É que a existência de cada um, pra valer, só tem sentido através dos outros, através daqueles que nos devolvem a acepção do que somos, um monge tibetano ou um pop star.

Vá, se mande, junte tudo que você conseguiu por coincidência que eu fui enlaçada mesmo antes de nascer e atirar-me numa solidão narcísica e morta é mal que eu não compro, protesto. Não digo daqueles momentos em que fechamos os olhos para meditar, em que não nos reconhecemos parte do mundo e que nos encontramos desamparados, sozinhos. Momentos em que, no meio desta confluência habitada, com perfeita paciência, conquistamos a independência do estar só e então nos tornamos demasiados fortes. Vá, se mande e leve consigo as palavras de Baudelaire: quem não souber povoar sua solidão, também não conseguirá isolar-se entre a gente. Vá, nego, vá! Ao não nascer apenas para mim mesma, eu nasci escrava de um mundo que é plural, que é significante, que é cultural e cheio de trico-tricos e lero-leros. E neste todo, como cada um, eu nasci única. Por isso cuidado meu bem, há perigo na esquina. Eu, com a minha existência, quero inflamar muito mais vezes do que durar. Você tem medo de quê?

Basta! Pode até dizer que eu estou por fora, que eu estou inventando, mas se você acredita, de fato, que aprender a ser só é tudo, é porque você construiu barricadas em vez de metonímias. Vá, se mande, pois cada um é responsável por suas próprias escolhas. Pode ir, meu bem, que em nenhum momento eu disse que nossas atitudes deveriam ter sido balizadas em função um do outro, de um você no lugar de um mim e coisa e tal, que isso seria crueldade, nos abandonar de quem somos. Eu? Por que é que eu haveria de me fazer tão sozinha? Vá, eu me divirto em minha companhia.

 

 

 

 

Coração paulistano

 

 

Não, hoje não. Hoje eu não vou desfilar uma cidade, ou o que acontece nela. Não quero saber do mendigo, dos meninos nos faróis, nem do seqüestro que invadiu minha família nesta semana. Nada disso. Outras sensações, diferentes de medos e frustrações, traumas e angústias. Tampouco me vale dizer sobre a alegria entre os muros de concreto, vitórias e rebentos. Quero dizer do corpo que acompanha isso tudo.

Veias e fluídos. Do coração que aperta sem motivo, e sem motivo se solta. Do frio na barriga debaixo do arranha-céu, do formigamento no dedão do pé em cima da rede. Quero dizer do meu ouvido absoluto, que dizem ser de músico, mas minha inabilidade para a coisa contesta. Apenas explica porque eu gosto dos acústicos e porque bateria e percussão me causam tremedeira sangüínea. É fisiológico, por isso eu danço, não posso parar. É absoluto.

Frio na barriga e a perna bamba todo mundo tem. Mas e tremedeira sangüínea? Um fluxo e refluxo que sobe e desce pelo corpo o tempo todo, todo o tempo, quem é que tem? E não adianta respirar fundo, entrar no compasso, balançar ao ritmo. Termina quando o som acaba. Depois do último acorde. Não. Minto! Depois que o último reflexo difuso do último acorde vibratório escapa das minhas veias e neurônios. Daí eu quero silêncio absoluto. Quero o silêncio do Jardim Botânico quando os pássaros já estão a dormir numa noite sem ventos uivantes.

É por isso que eu não durmo, ou que durmo muito pouco. Há sempre ruídos desconexos pelo meu corpo, os sons da cidade que ficam perambulando, perambulando, perambulando. Um zumbido insistente provocado por ruas e avenidas, pelos passeios estreitos ou largos, onde quer que eu vá. É por isso que eu escrevo. Tem gente que tem problema de surdez, o meu é de ouvido absoluto. Capta qualquer som, faz sinapse e pronto, causa fluxo e refluxo. Dá tremedeira. É quando eu vou para a boemia, abafar som com outro som, de vida. Prefiro assim. Bater papo em botecos até altas horas. Bendita sejas tu, ó minha São Paulo que não dorme e onde me consolo.

Daí vem o nó na garganta. O que explica as palavras que dou de bico. É que quando algo me toca lá no fundo, eu me encho de fonemas, e de metáforas, e de catarses absolutas. Quando eu vejo uma vila bem cuidada, as casas de uma rua, uma coleção de argilas bem queimadas, e pintadas, e decoradas, paredes e painéis, exposições e mostras, arte e cultura, sempre são palavras que me explodem, e é por isso que eu me inflamo na cidade e chuto lendas em direção ao gol. Tanto faz se foi porque eu fui assistir o tricolor vencer de goleada no Morumbi ou se foi porque a moça resolveu se atirar no metrô me tendo como única testemunha, e ao maquinista. Tudo vira letra absoluta, e tudo me escapa.

A adolescente que se provocou um aborto. O amigo quando fez uma declaração de amor. É como se tudo fosse reflexo do coração, uma caneta tinteiro de época, uma saudação de fluídos que vão e que vêm. No meu caso eles causam ruído extra quando se confundem e se vão, e se voltam, e me apertam de vez em quando. Dizem que é sopro. Eu nasci assim e talvez este seja de um tipo absoluto. É que eu ainda estou aqui, rarefeita. Em disparada cultural na maioria das vezes, mas por vontade própria. Um coração paulistano a flanar, absoluto.

 

 

[Do livro Língua Crônica. São Paulo: Letra Corrida, 2010]

  

 

 

[imagem  ©arno frugier]

 

 

 

 

 

Fernanda de Aragão. Mestre e doutora pela UNICAMP, desenvolve pesquisas em psicanálise e esporte. Arte-experimentadora, criou o projeto Diz-Quetes, e outros, junto ao Letra Corrida, ateliê de Literatura e Criatividade. Escritora, publica no Cinco de Outubro. Seu primeiro livro, Língua Crônica, foi premiado pela União Brasileira de Escritores. Edita os fanzines "Sujeito Simples" e "Lalação". É paulistana de nascimento. Em conjunto com amigos criou o blogue Ser-Tão Paulistano. "Fê.liz", se diz mais "Fê.bricitante" do que "Fê.menina".