O pescador e o mar

 

Os murmúrios das ondas martelam

molhando os lençóis amarelados

de areias mescladas em branco e preto

 

Vaga a grande asa do barco no ar

e o céu escurece as ondas do mar

indo o rastro do mastro diluir-se

 

Moroso o pescador move o leme

sem medo do vento ventando alto

busca o consolo do leito límpido

 

E ruidosas as águas o bebem

sorvendo o seu sossego no mar.

 

 

 

 

 

 

Segredo

A morte é uma morfina
desabando sobre a noite fresca
Nenhum murmúrio afina
à passagem da chuva seca.
Lembrando-me do semblante Dele
risco os olhos do silêncio ao despertar
num navio sobre o tempestuoso mar.
Batendo num trecho de território virgem e terno
posso despoetizar os sete véus do Eterno.
Re-encontro, Re-etorno.
Desenlaçando minhas mãos, não me enlaço na lama
e minha face é um poético desvelo
contemplando o infinito, seu reflexo no espelho.
Des-figur-ações, flutu-ações, sublimações...
A minha mente dormente lentamente
vai desfiando os fios de meu véu cabelo.
Não há dor, nem prazer, tempo, memória e degredo.
Vendo a árvore da vida e suas ramificações
em cada folha, desfolho um segredo,
o oculto, a face Dele cultivando com enorme zelo.

 

 

 

 

 

 

Deserto

 


Canibalismo no deserto, aridez dos astros. Não há mágoa numa névoa. Somente a faca é minha carne. O desejo se escondeu num olhar amargurado. Facas e garfos não são sensações. O astro cresce à minha volta. Não é possível contornar a outra margem, o deserto é meu silêncio. A névoa cai nos meus braços, sustento-a até a capacidade do meu olhar. Olhar de deserto, não espero estações. Na virada das poeiras que oscilam ao vento quente do deserto, pássaros se comem antropofagicamente. Formigas, maçãs, garfos, facas na sua ordenação neblinam minha face. Face neutra na passagem da névoa. Névoa paira, cai, se esbarra nos ventos da minha passagem pelo deserto, anímico, auditivo, mais do que a minha vida.

 

 

 

 

 

 

Confusão

 

 

Deus habita o castelo de meu devaneio noturno
Abnego a abulia de um ser inconsequente
A alavanca contorce pêssegos na estrada da razão
Não sonhe com anjos e demônios em contenda
O camundongo toca a campainha da loucura
Casta, a moça fia a rede de uma agonia
Angústia de uma cômoda sobre o solo vazio
Concerto de uma concha no ouvido de um menino
Eclode a doçura de uma vértebra quebrada
Não há paixão numa corda esticada por Deus
Infecta, a pele queima ilusões de monstros
Madrigal eterno ecoa no cérebro de um vegetal
Opulenta manobra de um orangotango no escuro
A poeira sacode as núpcias de um casal
Preta é a cor de sua urina, carvão soturno
Uma prisão de um feto na coxa de um deus pagão
Ferramenta de um escriba é um feixe de seu cabelo
Não deixe a memória esvaziar a sua solidão
Devoto, um peixe apanha sua isca
Retrato de uma cova na abertura de seu crânio
O coveiro joga a pá num mar de serpentes
Cisne deixa o castigo inverter sua cicatrização
Cego, o homem censura a postura de sua demência
Doure um pedaço de carne podre com o sol de seu saber
Confusa, a mente não escolhe a esfera de um poder.

 

 

[Do livro 40 poemas. Rio de Janeiro: Multifoco, 2011]

 

 

 

Além da dor


Desesperos enlaçados por serpentes
derramam-se num cálice de cristal
e morrem pelo destino de uma divindade
que se encontra no fundo do vidro
Dores passam, tempos passam
Além da dor, há um sol que se levanta
enganando as tentações do abismo
A dor constrói castelos de papel
que facilmente são levados pelo vento
Mas a felicidade é rija como um cajado,
encrustado de diamantes e joias raras
Além da dor, há um muro demolido
pelo tempo, sobrando apenas ruínas
que se desmancham ao sopro de tua boca
Sobre a terra, levantam-se os pássaros de ouro
que afugentam as pragas do corte infernal
das plantações de nossas histórias e memórias
Além da dor, não encontro a ração mísera
atirada a um cachorro faminto e pálido
Encontro o horizonte manchado de rosas,
perfumando a artéria de meu coração em riso
Além da dor, estão os outros
Do que mais preciso?

 

 

 

 

 

 

Biblioteca

 

Exposição de palavras sonoras

O redemoinho de passos e sombras

Servo da paciência de uma incógnita

O archote se afunda nos olhos da insônia

Mártir de uma espera de tessituras e resíduos

Sangra minha pele de medo e contemplação

Papiros de palimpsestos petrificados

Agasalho de minhas noites de névoa

Cambiantes relógios quebram a eternidade

Confuso arcabouço de temas e imagens

No sorriso amparado pela luta,

o semblante se encolhe no tamanho de um botão

O livro, maior que meu corpo

Nas palavras, o assalto de minha fala

No engodo das páginas, as fórmulas de minha vida

Modelos de penas se lançam ao vento,

transpondo as portas de medos e de dores

Biblioteca,

a arte de construir a mente de um animal de pele e veste.

 

 

 

 

 

 

Sossego

 

 

Monólogos de tigres ociosos

na penumbra, a noite cala a veia

Trigos adormecidos na vértebra da caverna

os escuros pontos da morte não se escondem

O chão se abre para a passagem dos renascidos

O vento atira palavras de cimento e cal

Tristes mares invadem o espelho da memória

para conter os risos inconsoláveis dos palhaços

A escuridão se apaga após a voz de um sonâmbulo profundo

Não há atalhos que neblinem a floresta de morcegos

A tempestade devasta as estações da derrota

O sossego se encarrega de florescer a natureza.

 

 

 

 

 

 

Fulgurações do poeta

 

 

O poeta não cria,
sua poesia nasce
como as árvores coroadas
em frente da minha casa
O brilho do seu verso nos reconduz,
eleva, ferve
no lapso do espaço.
O ar, sobrevoa-o secretamente
Mas o astro o cede, 
aparece e corta-lhe o langor
Deixando correr, saltar
a dor.
Percorrendo os vales monolíticos,
imensos, fúlgidos,
ele não pode encontrar
a luz que absorve o nexo?
Por cavernas inabitadas,
ele não pode vislumbrar
o hemisfério que reúne
os raios luminosos?
Onde está o poema?
Na íngreme e tosca rocha?
No ar puro, nas águas efusivas?
Não habita
nos metais preciosos
na terra, que gera a vida?
Não está no olhar
de quem vê,
na fala daquele que adora?
Não podes encontrar o poema
Deves corrompê-lo
na flor que nasce do silêncio
e do vazio que não vibra 
da estrela perseguida
pelas mãos graníticas
transformadas em fulgurações.

 

 

 

 

 

 

Terra desconhecida

 

 

Penso que existes num outro mundo
distante da morte, da violência e da agressão
Quando seu nome completará
um atalho para uma terra desconhecida
sem que o espantalho seja bicado por pássaros em fúria?
Numa terra desconhecida
você é uma flor que nada e respira debaixo d'água
eu, um peixinho que corre e anda nas montanhas do desejo
Não há uma ordem estabelecida,
uma estrutura com um nexo escatológico
És a minha flor que nasce na minha boca
sem esperar murchar para renascer em outra forma
A eternidade nos contempla
na medida em que cada forma se transforma no seu reverso
Assim, eu sou você e você, eu
Eu sou um peixe e você uma flor e o inverso se propõe
não como uma lei categórica, mas como um sonho distante
Na terra desconhecida
não envelhecemos, mas trocamos de corpos
como nas estações do ano ao reverso
em que o outono não leva as flores para a morte
mas para a primavera eterna do desvario
Numa terra desconhecida, nos amamos tal qual somos
e não como nos aparentamos.

 

 

 

 

 

 

Amor que se lava no sol

 

 

Púrpura
de mil ramalhetes
Vigias na entrada sepulcral
O doce sono estilhaçado
Na neve derretida
a face da morte se esquarteja
Labirinto de vícios sopra
Ondas
Na curva do farol
atiçando línguas de mel
A derrota da tempestade
Esbravejar folhas diminutas
Na matina do engodo
sua gota de cabelo derretido
Carne na via
Esquadrilha no céu de memórias
Entorno de um plástico amendoado
Nas curas medicinais
Curandeiro a esfaquear o chão
Atalho de sombras
a dormitar no escuro
Ladrilhos amarelos
cospem manteiga na escada
Outono adentro
Vejo a púrpura matar aranhas amotinadas
No céu, o rosto do entalhe da tarde
Rosa a sobrevoar o medo da derrota
Na mão, um crucifixo
encastelado por redemoinhos esvoaçantes
Cabeçalho de livros soterrados na fera
Espera de um vulcão adormecido
Na lápide, um nome de sobreaviso
Dores se partem em múltiplos sentidos
Orvalho, na gota tácita
O verme cheira a boca do esgoto
Tremeluzir de águas serenas
Mãos pequenas a estourar o pão
Fatias de flores na mesa esquerda
Incensos saboreiam o rosto remoto
Na cama do tempo
Vejo seu corpo nu negando tudo isto
Mas dizendo apenas: amor que se lava no sol.

 

 

[Do livro Painel. Rio de Janeiro: Multifoco, 2011]

 

 

 

Ruas

 

 

ruas em tropel

correm, crescem, se amotinam

lâmpadas em êxtase

iluminam as ruas

que correm, correm

qual cavalos livres na floresta

trânsito se sossega

após horas e horas de espanto

suavizam as doces ruas

em que caminho só e sem dor

ruas

                   em tropel

afundam madrugadas na cama da noite

escuro, o homem escorrega na lama       

               indócil      

feroz fera a correr na noite sem trégua

ruas

ruas de sono

             êxtase

a acordar o sonho dos homens.

 

 

 

 

 

 

Livres da escuridão

 

 

Livres da escuridão

o sol se arrebenta nos oceanos

Anzóis ainda pescam penumbras

com medo da eternidade

Barcos que se atiram no sonho

só trazem lendas de solidão e medo

O menino corre pela praia

desfazendo as ilusões dos anos

Na casa, ao longe

a esperança toca o céu estrelado

Livres da escuridão,

tocam sóis com os dedos do imaginar

Coloridas pétalas caem

das janelas da madrugada

Uma tempestade, os sonhos

nadam juntos aos resíduos do povoado

Escuridão, a liberdade

Galopam no escuro

os fantasmas da origem de tudo

A claridade irrompe, livres

quais girassóis presos à natureza da vida.

 

 

[Inéditos]

 

 

[imagens ©josé viera]

 

 

 

 

 

 

Alexandra Vieira de Almeida (Rio de Janeiro/RJ). Poeta, contista, cronista, ensaísta, agente de leitura, tutora de ensino superior. Doutora em Literatura Comparada (UERJ). Publicou o livro de crítica literária Literatura, mito e identidade nacional (Ômega Editora, 2008). Tem vários ensaios literários publicados em revistas acadêmicas e livros. Participou da Antologia Scortecci de poesias, contos e crônicas, em 2011. Publicou dois livros de poesia pela editora Multifoco: 40 poemas e Painel (2011). Mais em www.malabarismospoeticos.blogspot.com.