A capa não denuncia nada, ela prescreve apenas. Um indivíduo quase amorfo carrega sobre a cabeça uma caixa aparentemente de madeira, com uma perfuração no hemisfério centro-superior. Lá dentro, i.e., dentro do livro, o enigma, possivelmente ele, ou melhor, o claro enigma, como diria o nosso incontestável Carlos Drummond de Andrade em início de carreira poética livresca. Mas, o que esperar de um livro de poemas em pleno fim do ano de numeração 2012? Mais. O que esperar de um livro de poemas intitulado de BONECA RUSSA EM CASA DE SILÊNCIOS? Para saber, fui ler.

 

O livro — digo, o meu exemplar — atravessou o Brasil via Correios e foi aportar no centro de meu quarto, em cima de minha cama, colocado ali por mãos de mãe. Eu voltava de viagem. Quando entrei quarto adentro, tremi. Era o livro da Delias, poetisa lá do sul do país que venho admirando já há alguns tempos. Pulei os dizeres da orelha, a primeira página preta, parei na página seguinte. Li: "G. Entre...", escrito em punho pelas mãos da autora, num convite irrecusável bordado em tinta azul. Nas dedicatórias, mais um referência a minha pessoa-poeta, "pela combustão dos versos; pelo gozo da palavra". Um negócio sem nome no meio de mim. Quis entender a Hilda Hilst tentando ajudar a abrir o livro, mas a porta não se abriu com ela somente. Esforcei-me. Saltei o prefácio. Não acredito muito em prefácios — sem desmerecê-los, óbvio —, ainda mais quando se trata de um livro de poemas. Enfim, caí num abismo feito de negro após dar o jump prefacial. Depois um branco necessário antes do poema de bater-portas: BEM-VINDA.

 

"bem dita a palavra ardida/...

benquista a dor parida/...

bem-feito o amor transgredido/...

bem-vinda/nos dentes/a língua"

 

Porta aberta e vestibular. Corredor imenso por onde andar, olhar, sentir, fingir, abrir-se, deixar-se. Um cabedal de coisas por vir. Um porvir, principalmente. Delias deixou na sarjeta da primeira janela, ali pertinho do muro de sua casa de silêncios, um dizer de liberdade, onde as águas de seus poemas percorrem um campo sem rima e sem normatizações. Delias inunda aquele que lê, já no primeiro passo dado, os pés-almas do ser. Vontade de entrar mais, de fiar: TEAR. Novelo de acariciar os desatinos do destino. Porque nada é parado no Tempo, tudo pode ser outro mesmo quando parece não. Diz Delias sobre as rotas ainda não idas, talvez, quase idas, quase voltas, quase tidas. Mas era preciso entrar DENTRO, assim mesmo redundantemente, para saber a hora de percorrer dúvidas. Primeira pergunta escancarada: "eu estava aqui dentro, você me ouvia?" seguido do verso que dá nome à obra. Delias-poesia, uma boneca russa em casa de silêncios. Delias-poemas, uma dentro de cada um. Este Dentro inspirado em conto de autor baiano, sobre mulher-gaveta, sobre humanidades-em-parcelas.

 

Percorri, seguindo, SOB(RE) UM CÉU DE DALÍ, a espreitar o nonsense típico do lirismo de quem não aceita nunca o imposto, mesmo quando este novo desejo seja um algo arraigado num torvelinho passado. Bigodes de gênio não imaginariam o doce deste DOCE. Doce acre. Azedume. Amargo. Fel, "esse todo que arde", o Doce. Veneno-fundamento o doce sal dentro de um poema. Porque, se não for assim, o poema não poema. Daí um "se você viesse" estampado em SOLO DE PIANO acobertando uma fragilidade de voz, um precisar mais-que-precisar-em-sonho de um outro sujeito para fazer da vida mais vida, invade-nos o sentimento sincero que preconiza o dito de que a felicidade é mais feliz quando compartilhada, quando dividida. Delias se esquivando de si mesma para sê-la ainda mais. Música linda.

 

Eu adentrando a casa de silêncios, silêncios tão barulhentos, um passo além da porta de entrada, com desejo de centro, sala, rol, quartos, alcovas... uns RETRATOS que observo sobre um camafeu. Eu que leio estou lá, é incrível. Todos nós que lemos estamos lá, até você que não leu nem suspeita de nada. A poesia de Delias tem preferências. Não é um silêncio avulso, é um vago escolhido entre as flores, como quem cuida do orquidário. SUA, Delias desnudando-se, "pois tudo era assim adiante". E como é bom ter adiantes, ter com quem, mesmo quando difícil tudo e os caminhos. Porque a gente se despe é na intenção de colher PÉROLAS. Delias-ostra, molusco de sucumbir ao poder do amor, língua de mar-nascente em oceanos vastos e raros porque "a morte anunciada naquele estranho dialeto", o dialeto de se querer morrer de amor, mesmo só ficção, mesmo só realidade ou os dois.

 

Eu invadindo cômodos da casa de silêncios de Delias, vi MANDRÁGORAS ao lado de gérberas sutis, raiz-planta mística, e um jardim de pedidos. A poesia também serve para reivindicar, e reivindicar é pedir, pedir em sua acepção mais fácil. Implora-se por um novo Tempo, com mais cores, já que tudo parece tão sem. A poesia de Delias é como uma tinta usada para macular, para tornar rubro as coisas que insistem em andar sem seus respectivos equadores. Junta-se, nela, o nada e o tudo. O branco e o preto: dá-se mil cores secundárias dessa simples mistura. Ao lado, SOBRE O MAR E AS MARGARIDAS, uma narrativa poética sobre a vontade, esta coisa que carregamos até o fim de nossas vidas somente para nos servir de impulso e continuar almejando os dentros e os foras que o mundo nos oferece. E eu entendi o lindo lamento. Mãos tremidas. Alma querendo florescer em mim. A esta altura, tive a impressão de que minha alma nasceria por minha boca, local de voz e palavra. Minhas mãos seriam suas raízes, dedos. Foi quando vi PINGOS a estalar nos pequenos vitrais da sala de estar. Pingos tão granizos e a voz que consiste o Tempo, que faz dele a espera benigna, o câncer ao avesso, o inverso de toda vil tristeza na forma de se imaginar.

 

Já AO LARGO de um todo já andado, colei minha solidão a uma outra solidão e me vesti de absurdo à margem do que poderia me acontecer lendo... "esquece em minha casa o teu verso", diz Delias. E esqueci. Uma pausa. Fui tomado por um PERFUME exalado de outro dos dentros do dentro da tal casa. Perfume de Nina, Cortázar, Drummond, Leminski, nunca cheiros esgotados na busca. Olor, élan botado em ÂNFORA. E meu Deus! Ai de mim que sofro golpes de poesia! Golpes dilacerantes! Dor boa! Somos, nós — todos? —, feitos de séculos. Não sei, duvido. Todavia, a poesia sim. A poesia é antes de tudo, antes até que a explosão inicial. A poesia é O OLHO DO FURACÃO.

 

Diz Delias em CÁRCERES, "mar adentro, mar de dentro", essa moça. Coisa única, equador mítico ela toda, sua palavra que transpira, sua. Poeta tem voz própria. Delias está começando a suspeitar disso, e com merecimento na causa. Poesia-mar, Laranjal, Satolep, Cassino, um jogo essa vida quando sem prisão. Tua "sede de precipícios" é também nossa, investida no sempre quedar: eis MÓBILE, "e a calma do abismo". Por que caímos tanto? Por quem despencar outra vez já que é preciso? Boneca russa, descapo uma, duas, três. Onde te encontro em teu dentro primordial? Onde a poesia da Poesia?

 

À BEIRA, tão bruta a delicadeza dos poemas da casa. DE COR, ÂMBAR, areia da praia que é o chão, o equilíbrio da voz que evoca e invoca. À beira, eu, leitor-além. Perdido no sem-palavras, mundo do não-esquecer. Eu no frio, sem pele, com preparado VERNÁCULO, "uma morte por que viver" no fim melancolia nem tanto, palavra bonita para Delias. Palavra bonita para o eu lá dentro da casa. Ella. MARCO ZERO. Aí um desmoronar-se. Aí um parar por aqui porque o resto é mais silêncio ardido em brasa viva, porque poesia de verdade se escreve com silêncios desta natureza, grosseiros em seus espetáculos petálicos. Aí "foi como se a vida/tivesse algum centro/o afago de um deus/entre tanto interdito". Aí porque eu não seria tão desgraçado a ponto de caminhar sozinho por toda a casa de silêncios de Delias. Aí porque eu te convido, amigo(a), entre você também...

 

O poema MARCO ZERO, dedicado a este que vos fala, encontra-se no início do centro da casa de silêncios, mais precisamente na página 41 do livro escrito por Daniela Delias. Daí para o final da obra, ainda há ao menos mais umas 80 páginas de deslumbre e amor à palavra. Sem exageros, e tirando todas os deslocamentos baseados em orgulho ou egoísmos quaisquer, BONECA RUSSA EM CASA DE SILÊNCIOS é um livro para ser lido com sutileza, no cômodo dileto de nossos aposentos, deixando que o silêncio-mor invada o nosso ser.

 

 

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O livro: Daniela Delias. Boneca Russa em Casa de Silêncios. São Paulo: Patuá, 2012, 1 ed., 140 págs.

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dezembro, 2012
 
 
 

 

 

Germano Xavier. É formado em Comunicação Social/Jornalismo em Multimeios (DRT BA 3647) pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e Letras/Português e suas Literaturas pela Universidade de Pernambuco (UPE).
 
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