kalaharis

 

dançam as salamandras dentro
dos nossos olhos
quando miram fogueiras
enquanto leopardos
devoram nossas carnes
lentamente
e sobre nossas cabeças
nuvens de anjos sopram
brisas e orvalhos
e chovem lágrimas
num esforço supremo

assim não fosse
há muito, a terra inteira ardia:—
que o inferno é aqui
onde também paraíso

 

 

 

 

 

 

comuns lugares

 

o mundo desaba

sobre sua cabeça
e ele ali
ouvindo blues
no radinho de pilha
único bem
que lhe restou inteiro
da hecatombe medonha
que devastou seu dia
[ além de tudo
chia

 

 

 

 

 

 

patético (humano)

 

tenho pena do goleiro
patética figura (tão humana)
sempre à espera
do que não pode ser
eternamente
contido

 

 

 

 

 

 

poema

 

cantos ou gritos
de almas milenares
manifesto do verbo: — o do princípio
que multiplica e se renova
em vozes tantas
quantas
suporta o universo
[... ouvidos de silêncio
olhos de estrela
a ler-nos, versos que somos
tomos (sagrados)
do grande livro: — o da palavra viva

 

 
 
 

só mar

 

tenho o peso dos náufragos
olhos vermelhos
garganta seca
pele queimada
nem ilha nem
continente
[ ...só mar
o abismo à minha espera
e meus braços colados
à tábua rasa em que flutuo

 

 

 

 

 

 

azul pequeno

 

cansaço
é tudo que sinto
mentira — não sinto
rompido o limiar
entre a exaustão
e o abandono
redemoinho no mar
sou peixe azul
pequeno
que se deixa levar

 

 

 

 

 

 

nenhuns

 

singelos ou loucos vamos
fazendo poesia
pois que somos todos
uns ou outros
ambos talvez
nenhuns

 

 

 

 

 

 

campos e céus

 

há estrelas no céu
e vagalumes
no campo
em frente
à casa onde moro
não posso vê-los
(a luz
da cidade me cega)
quando vier
o grande temporal
e as luzes
se apagarem
[... noite plena
enfim
onde tudo brilha

 

 

 

 

 

 

a casa que sou

 

não deixo mais a vida escapar
pelos vãos dos meus dedos
quando ela for areia
ergo castelos
(ainda que breves)
e quando ela for terra
se não chover, salivo
e moldo
tijolo por tijolo
até erguer a casa
que sou

 

 

 

 

 

 

felinos

 

todas as casas têm
seus felinos
na minha mora um gato
(do mato)
leo pardo domesticado
que com meu par
de olhos de lince (míopes)
encontrei

 

 

 

 

 

 

colagens

 

colibris camuflagens rubis
palavras em ens
palavras em is
paisagens aragens anis
colagens que fiz
tentando fazer
um poema
feliz

 

 

 

 

 

 

repercussiva

 

queria um outro tom na minha poesia
mas ela tem as cores daquilo que sou
ou seja — nada
no fundo branco letras
que não dizem
no ritmo exagerado do vazio que ecoa
onde o último grito é ressonância
repercussão de um som agudo
atávico
bem muito mais antigo
do que eu

 

 

 

 

 

 

com verso fiado

 

faço versos porque não tenho
com quem conversar
falo com o verso
e o verso me responde
quando ele fala eu ouço
e o traduzo
no fundo, é tudo
conversa fiada
com verso sem verso
a vida é barra
e ponto
(ou dois pontos):
está pronto o poema
que não fiz

 

 

 

 

 

 

roda d'água

 

dentro de mim
concomitantemente nasce um poema
enquanto um outro morre
moto perpétuo
roda d'água que move a lâmina
que faz serrar a pedra (bruta)
e faz brotar a flor

 

 

 

 

 

 

dos sentires do tempo (V)

 

às vezes penso que tudo já foi dito
me calo
sempre tão breve meu silêncio
o tempo exato de um espanto
ou de um espasmo
o tempo de qualquer existir
ou extinguir
o tempo aflito do estalo da língua
no céu da boca
o tempo do sentir
[... o tempo

 

 

[imagens ©irp group co cc]
 
 
 
Nydia Bonetti (Piracaia/SP, 1958). Poeta e engenheira civil, tem poemas publicados na Zunái — Revista de Poesia & Debates e outras mídias eletrônicas. Trabalha atualmente no projeto do seu primeiro livro, ainda sem título definitivo. Bloga no Longitudes [ http://nydiabonetti.blogspot.com ]