O leão desdentado na ilha dos canibais esquecidos

 

Atravessei a ponte ligadaço em ti, Amoré mio. Sem pudor de afagar o pau e não o coração enquanto pensava em teus longos carretéis de cabelos ruivos. Crua, nua, embriagada, tão sem palavras e tão linda ao sul de lugar nenhum. Peixinhos flutuavam de barriga pra cima. Folhas secas abrigavam larvas e rãs. O rio crescia lascivo, engendrando o mar, corrompendo o nosso amor... Se estivéssemos juntos naquele momento, trocaríamos o pesar chato do rio por uma banho de mar. E o rio, não o mar, o rio naquele momento exato quando a luz opaca do sol afunda nas águas calmas e retorna furiosa, me convidava para gozar carnavais secretos. Poesia parnasiana servida em copos de geleia.

Serei direto: pensei em pular. Pulei, digo se pulei ou não? Confesso o meu suicídio ou simplesmente faço o tipo desesperado sem morte alguma no currículo? Será que nenhum de vocês, nenhum mesmo, nunca pensou em fugir, largar tudo? Brincar de presente, não de futuro? E o mundo cheio de paradoxos, repetia o Silveira, lá do escritório. E o mundo ruim, feio, esse mundo não presta, bicho, repetia o Armando, também do escritório. E o mundo sem pé nem cabeça, quero é que se foda, mermão, esbravejava o Pedro Paulo, aquele mesmo... Aquele mesmo Pedro Paulo que te chupou os peitinhos ao som de Redemption Song na festa do escritório: "Vai, chupa, Pedro Paulo, chupa que eu vou te compensar, negão! Vou te recompensar por anos de discriminação e tráfico negreiro!".

Elas & Elas, a ponte ainda atravessa o rio e você ainda se pinta, marrom glacê, preto fusco, azul anil, esmeralda cheirando a puta, flor de Liz com trejeito de menininha, Sharon Stone pagando calcinha no cinema Rex, Basic Instinct, 1992. Ah! deixa eu te contar, mulher... Ontem comecei na cerva, depois gim, depois cicuta adocicado com mentirinhas e biscoitinhos da sorte e depois não lembro o quê. Quase nunca lembro a quarta etapa das bebedeiras, um pouco de "não quero lembrar o gosto do sanitário" permutado com memória fraca, mesmo.

Eu e a válvula do chuveiro elétrico. Eu dizia sem jeito, prevendo o inevitável, "Destá, tomamos muitos banhos frios para desistir a hora em que o encanador chega para consertar o chuveiro". Despedimo-nos com medo do chuveiro quebrado. Enfim tomaríamos um banho quente à meia noite. Ensaboaríamos um ao outro e a água quente banharia nossos órgãos descobertos, temendo o frio de ainda pouco. Aquilo arruinou o nosso amor. A água quente. A água quente arruinou o nosso amor melancólico agarrado ao frio.

No dia em que eu atravessei a ponte com o coração cheio de ti, fui dormir cedinho. O dia clareou assim de repente, curto circuito na boca-da-noite. Cigarro acesso, cigarro no colchão, colchão pegando fogo, fogo na fiação, fiação antiga em chamas, curto circuito e o sol surgindo acima do rio, acima das nossas cabeças, iluminando as avenidas e os mendigos. O quê? Altruísmo? Você bem sabe que eu estou cagando pra tudo quanto é ralé. Cagando, cagando mesmo... Quem ama mulherzinha feito tu, caga pros mendigos. Tudo ralé, ralé profissional. Mas eu também cago pros figurões. Cago pra todo mundo. Só não cago pra ti. E o meu desejo era cagar na tua boca, não por ressentimento, não por ódio ou doidice, mas por libido, pau-durice, sacas?

Então atravessei a ponte e não sei se pulei ou não, se fiz corpo mole ou caí de boca. Acordei faminto. Comi ovos fritos, leite com Nescau e broa frita na margarina diet. Ainda compro a margarina diet de que tanto gostavas. Aquela da galinha com espátula e óculos de aviador. Mais pelo teu selinho antigo com gosto da maldita margarina do que por outra razão; 4,50 é amor de mais.

E depois do café da manhã e do programa de culinária e da conta de luz por pagar, estirei-me na rede branca com ainda a marca de tua última menstruação e pensei em teus lábios vermelhos e em nossos sonhos vermelhos. Tudo vermelho. Nosso amor era a China comunista, tudo vermelho. Disse era, e já que disse era, será que pulei? Não tenho lembranças após a ideia do salto e juro que não atravessei com aquilo na cabeça. Amor, não tenho disso. Sou/era sádico demais para pensar em morrer antes de matar algum, ou antes de experimentar um cadaverzinho à la carte: um coração, uma bexiga encharcada de aguardente, um pâncreas ao alho e óleo, que nem os indiozinhos do Mel Gibson, que nem o Hanibal, que nem o Gugu Liberato.

Imagina só, baby, que a ponte anda limpa, bem tratada pra burro? A prefeitura parece que deu um jeito no buraco. Não se vê piúba, latinha, sacola plástica, porra nenhuma. De repente aquilo tudo limpo me fez lembrar tanto, mas tanto de ti. Mais que o sol clareando ou a manteiga ou o teu cheiro nos lençóis embrulhados em papel celofane ou a vida eterna ou a cicuta com laranja, mais que tudo, a limpeza da ponte me fez lembrar, tão fundo e tão sem raízes, de ti, amoré mio. Toda aquela falta de sujeira, as baratas magras, o cascalho desprendido, o vento soprando de um lado para o outro. Eu era um espantalho. Um espantalho contente de ser espantalho e nostálgico ao ver tanta limpeza. Urubus rodeavam minha cabeça de espantalho. Os urubus prevêem a morte, sabia, docinho?

Agora, sem você e talvez sem nada além do meu corpo perdido, vejo o quão sem lembranças é a mente de um possível suicida. Talvez por isso não sei se pulei ou não. E tomara que eu tenha pulado. Fosse agora, eu pularia. Quer dizer, isso se eu não pulei, pois se pulei, aí tanto faz... ou por outra: tanto faz não. Se pulei e quero pular de novo, significa que ainda existe vida e que a alma não é imbatível. Se pulei e quero pular de novo, significa que a morte não é um consolo, apenas o jogo arrumado de forma dessemelhante. Onde o Peão vale mais que o Rei. Em outro tabuleiro e com outras regras. A coleira que o diabo colocou em mim. A fórmula limpa de suicídio. Uma forca sem pescoço.

 

 

 

 

 

 

Que seja ao som de um amargo Flash Back

 

Depois eu volto lá, depois eu vou adiante. Não, não. Tudo balela. Deus do céu, como o tempo passa. Mastigo as sobras dos destroços entre o almoço incluso no preço da diária e os beicinhos cintilantes de Alice. Muito pouco restou a não ser o perfume acre de vômito. Gosma amarelada escorrendo azulejo branco com retrato de flor abaixo. Espelhos embaçados, velas de Ioga em promoção, canapés fresquinhos, começos de noites etílicas — aparentemente eternas.

Alice se mandou e me deixou fodido, sitiado dentro desse motelzinho repleto de baratas voadoras. Eu e meu fiel escudeiro: um mp3 antigo tocando Roberto Carlos. "Cavalgada" pra lá de metro. As baratas até que são corajosas. Como se corressem da chinelada em nome de uma causa maior. Baratas vietnamitas. Mas são só baratas. Splash! Mais uma que foi dessa pruma melhor.

Repetindo — Muito pouco restou e isso não é mais que um lugar-comum, tão sem graça, tão corrente, que só dói e não é interessante. Se eu me queixasse das vezes em que fui abandonado por Alices-da-vida em moteizinhos cujo primeiro almoço vem incluso na diária, já teria material o suficiente para lançar um Guerra e Paz genérico via twitter. Sem alternativa se não apregoar minhas dores recorrentes de corno. Ganhar o pão com estilo e chutando o rabo azedo da dignidade. As despedidas que nem sempre carecem de acenos e abraços cogentes.

Então, o que meia hora antes era algazarra apaixonada entre pau (meu) e boceta (dela), estalar de molas, agora é tão pueril e agonizante — exceção feita às trufas de chocolate que custam os olhos da cara, quatro e cinquenta cada – que minha vontade, se não fossem mesmo as barras de ferro quadriculando a maldita lua minguante, era me jogar do alto do terceiro e último andar do motel. Mas deixa pra lá!... Vida minha, vida minha! Esse lance de suicídio em sacada de motel é "Hollywoodiano de quinta" demais pro meu gosto. Se for pra se matar, que seja ao som de um amargo Flash Back. Um gole irrefutável do melhor formicida disponível no mercado extraordinário de tarjas-pretas. Ou então o casal de amantes que trama, ao mesmo tempo e em coro, atear fogo em seus lindos e juvenis corpos apaixonados. Vou morrer, meu bem, vem depressa, vem me aquecer...

Abro uma latinha de Skol: "três real" cada. Deito na cama, encaro o meu pau contorcido no espelho "tetular" — é assim que está escrito no folheto do motel, "espelho tetular" —, a cabeça que mais parece uma cebola roxa dando um pouco de vida à virilha magra: eu ainda sou — ou pelo menos quero acreditar que sim — o mesmo chimpanzé de dois milhões de anos atrás. Já são quase oito horas da noite. Ainda me restam duas horas e uns quebradinhos. Pernoitar sozinho é um troço violento. Acho que vou pedir mais um almoço: pra dois, é claro. Eu devoro o marmitex procê, coração. Fica tranquila.

— Alô, é da recepção?

— Sim, senhor.

— Quero duas porções de fritas, arroz, um filé grelhado e outro quase cru.

— Ok, em vinte minutos o seu pedido estará chegando, senhor.

— Obrigado.

Alice ama filé grelhado. Uma vez fomos a uma churrascaria — ainda me lembro o nome da churrascaria! Churrascaria "Boi no seu coração de amante" — e Alice se empanturrou de filé grelhado. "O meu preferido, e é bom que não engorda, Andrezinho". Ah! Como são pueris os casos de amor entre um filé e outro. Quando o papo descamba para os moteizinhos fuleiros ao som de Roberto Carlos... aí o bicho pega, mermão.

Estico no chão o rolo de papel toalha e escrevo — é o que eu disse, pernoitar sozinho é um troço violento:

Certa hora da noite é como se o tempo estancasse em sua monotonia selvagem, o diabo do chimpanzé pulando tão ligeiro e astuto, sem fazer barulho, a imagem de Alice e da casquinha de sorvete e dos seus beicinhos molhados deslizando para junto dos meus eclodem e quando alguma coisa eclode — ou explode ou simplesmente salta pelos ares — e quando alguma coisa eclode, um barulho, por menor que seja, um barulho tem de saltar e alcançar a percepção de alguém ou então o mundo perde os freios e o sentido, o maldito sentido. Imaginem um mundo sem sentido, sem pastilhas de freio? Um mundo onde tudo o que existe, basicamente, são Pits-Stops estrategicamente mal programados? Será que o Rubinho perdeu de novo? É provável.

De repente começa a tocar E a chuva fina no meu parabrisa, visibilidade comprometida pela dor da solidão... O Robertão é foda. Qual bezerro branco com enormes caramanchões de manchas pretas, sofrendo com a maldita seca, aqui estou. Magricelo, sebento e o segundo almoço não é free. Esse papo de pechinchar é uma merda. Corre-se o perigo de "bloquear as forças poéticas do mundo" em nome de um precinho mais em conta.

— Alô, é da recepção?

— Sim, senhor.

— Eu queria cancelar o pedido do almoço.

— Pois não, senhor. Mas pra cancelar o senhor terá de pagar um aditivozinho de cinco

reais.

— Cinco reais?

— Isso mesmo, senhor.

— E quanto é o almoço?

— Vinte e um reais e cinquenta centavos, senhor.

— Então tá bom.

— O senhor estará querendo o almoço, senhor?

— Não.

— Tudo bem, senhor. Então estaremos incluindo cinco reais no valor da sua continha.

— Pois não... Aliás, é senhora ou senhorita?

— Como?

— Você, minha jovem, é senhora ou senhorita?

— Desculpe, senhor, mas nós não podemos estar recebendo cantadas.

— Você é de Natal mesmo?

— Sim. Nasci aqui e moro aqui desde criança, senhor.

— Mora aqui desde que ano?

— Desde 84.

— Ah! Então você tem vinte e cinco anos?

— Como o senhor adivinhou?

— Eu sou mágico.

Mato algumas muriçocas. Motelzinho fuleiro. Vou ligar para Alice. A pobrezinha deve

estar agorinha mesmo em algum ônibus lotado em direção ao centro da cidade — centro fedido e melancólico como manda a regra dos centros das malditas cidades antigas. Alice ainda deve carregar o meu gozo dentro dela.

"Vai sem camisinha mesmo, beinhê, já viu comer banana com casca?".

De certo o motorista, o bêbado e o estudante punheteiro revisando a matéria do supletivo chumbrega estão, de esguelha e com o cacete batendo continência, comendo aquela bundinha com os olhos. Saladinha trivial dos queixumes melancólicos e durinhos: os peitinhos da Alice.

— Alô?

— Pode dizer.

— Tudo bem.

— Não.

— Certo, só não precisa ser tão prolixa assim.

— "Pro" o quê?

— A gente não vai mais se ver?

— A gente acabou de se ver, André.

— Eu te amo.

— Eu sei disso. Sei até demais. Mas amar não é o suficiente.

— Claro, porra, se amar fosse o suficiente, Shakespeare e todos os autores de novela estariam desempregados.

— Como?

— MacBeth. Julieta. Presença de Anita. É disso que eu falo.

— Tá certo, tá certo, vou cagar que é mais legal.

Dar o cu para sustentar a mama enferma fofoqueira da vida-alheia, o irmãozinho marginal e a faculdade de Design. Estória de folhetim italiano. Quer coisa mais linda, sacrificante e tipicamente romântica do que isso? É o que Alice faz. Mas tudo bem, eu aguento o tranco do você me conheceu assim e eu não vou mudar.

Passo um pouco do igualmente free sabonete líquido do motel, levo a mão à boca e experimento um pouco. Até que esses caras não são tão mãos-de-vaca assim. Os sabonetes líquidos nos quartos de motéis são a prova de que ainda existe salvação para a raça humana. O sabonete líquido tem o gosto dos beijinhos de Alice. Acho que a vagaba da minha vida é chegada num sabonete liquido antes e depois de qualquer boquete. Sou puta, mas sou limpinha, me diria Alice se ouvisse isso.

Por outro lado, ela me jurou de pés juntos que não beija na boca. Mas cede o cuzinho, claro, sem pensar no quão duro foi pra mãe dela fazer vigorar aquele cuzinho. De lascar. Prefere foder o cu como quem abre um buraco no meio de uma pizza fedorenta a beijar na boca. Quenga é que nem escoteiro, tem lá sua cartilhinha de dizeres e quando avista um pau vai logo armando.

Em meio ao caos do motel, ao cheiro boa praça do sabonete líquido, eu penso numa casquinha de sorvete. O sol a todo vapor. Penso no mar; penso na praia de Ponta Negra, onde uma hora dessas Alice toda maquiada de salto alto fazendo biquinho de puta batento ponto... Putaqueopariu. Em frente ao mar azul e pleno, no oceano que nada tem a ver com a minha vida. No oceano estampado nos fios soltos de renda da calcinha de Alice. No mar que quase me afogou duas vezes. É doce morrer no mar... Penso em Alice morrendo afogada; dois pescadores caboclos encontrando o corpo de Alice em pleno mar aberto e botando pra foder. Alice, enfim, fede a peixe morto.

 

(imagem ©vennecto)

 

 

 

 

André Rodrigues (Natal/RN, 1991) é corinthiano, nordestino da cabeça de jabá e não lembra ao certo o dia, a hora ou ano em que começou a escrever. Acredita em reencarnação, em Dostoievski, desconfia de Kerouac e Lynyrd Skynyrd e está para lançar seu primeiro livro. No mais, é um franco atirador. Um suicida desempregado e sem opção.