Rodrigo de Souza Leão - Cecília Giannetti, quais são as dores e as delícias de ser editor do Portal Literal?

 

Cecília Giannetti - Há dois momentos do Portal Literal: pré-web 2.0 e depois. Antes de adotar o modo colaborativo, em outubro passado, eu me concentrava em montar um conteúdo que incluía sim os novos nomes e levava ao destaque um grande nome da academia ou um grande poeta, ficcionista, que assinaria o artigo "maior" da semana ou a Oficina Literária - sempre disputadíssima - do período, por exemplo. Com o modelo colaborativo é diferente: absolutamente qualquer escritor ou alguém que está apenas começando a traçar suas primeiras estórias e versos, pode publicar seu trabalho, tê-lo julgado e votado e comentado, bem como sugerir alterações em textos de outros colaboradores, debatê-los, comentá-los, etc. Às vezes eu me pego respondendo emails de colaboradores num fim de semana, feriado, à madrugada durante a semana, se estiver online, porque existem "emergências literárias" - estamos falando com escritores do Brasil todo, e escritores não são conhecidos por sua absoluta ausência de ansiedade em relação aos seus textos, especialmente estreantes. Então, procuramos responder e atender demandas desses escritores-colaboradores (centenas) assim que chegam. Nesse ponto, aumentou a quantidade de trabalho e a atenção deve ser redobrada, por estarmos às vezes editando e viabilizando a uma vitrine maior para a publicação de tanta gente nova, via Portal Literal.

 

O problema foi que o ano em que fizemos diretamente - nós, da equipe -, junto à Tecnopop, os testes e ajustes para o site novo entrar no ar 100%, ou seja, a transição web 2.0, deveria ter sido meu ano de escrever um romance, que agora está atrasado. E eu fico tensa por ter me atrasado com isso. Mas era um trabalho, meu emprego diário, e eu não podia simplesmente abandonar o projeto em meio a uma transição desse peso. O que não me impede de, no momento, estar vivendo uma crise de ansiedade absurda porque eu sou caxias com prazos e não pude agir da maneira que estou acostumada a trabalhar desta vez porque uma outra responsabilidade, um compromisso anterior, meteu-se no meio do trabalho de escrever o livro. Agora estou mais livre e o livro está caminhando. Também fiz uma novela, de umas 70 páginas, no meio do caminho, a pedido do mesmo produtor do Amores Expressos. Ou seja, não fiquei completamente parada testando blips e blops de um site. Também, senão, a gente dá um troço, correto?

 

 

RL - Qual a memória mais antiga que tem dos livros? A menina é a mãe da mulher?

 

CG - Em casa, mostrando à minha avó Cecilia que eu já conseguia ler sozinha um livro infantil inteiro, daqueles com gravuras. Eu devia ter uns seis anos. Estávamos no quarto de minha avó, que depois passou a ser meu quarto, e ela sentada na cama; acho que eu estava ajoelhada no chão, como se rezasse.

 

Na escola, descobri os livros de Monteiro Lobato na biblioteca e deixei de ser considerada "normal", porque meus recreios eram passados lá dentro. Tinha uma amiga que sacou que aquilo era hilário (as histórias eram, Monteiro Lobato era sensacional, porra) e passou a se esconder na biblioteca comigo. Valéria. Devíamos ter uns 10 anos de idade. Ao contrário do que se imagina por aí, nem toda escola vê com bons olhos esse comportamento, taxado de anti-social naquelas saletas horrorosas em que a placa à porta diz "SOE - Serviço de Orientação Educacional".

 

A menina está sempre aqui. As orientadoras do SOE é que, graças a Deus, desapareceram.

 

 

RL - Quando e como começou a escrever? Escrever é um destino?

 

CG - Comecei a escrever minhas coisas assim que aprendi a ler e escrever. Escrevia, ilustrava e montava meus próprios livros, com capa, inclusive. Depois, a partir de uns 12 anos, comecei a experimentar com letras de música e pedi um violão (com aulas). Depois um amplificador, uma guitarra. Pedaleiras. Pedais. Cheguei a ter uma banda de música até mais ou menos 1999, 2000, viajamos bastante, tocamos por aí, MTV, showzinhos, etc., tudo por conta dessa idéia de letrista que veio da infância. Eu cantava e tocava guitarra também. Em 1998 a escrita começou a pedir mais espaço e eu fui cedendo até que só ela existisse. O espaço sempre foi dela. Destino é sim, nesse sentido.

 

 

RL - Você acredita em escritura feminina? Há diferenças entre o homem quando escritor e a mulher escritora?

 

CG - Há diferenças entre a experiência de um homem no mundo e a da mulher, e a maneira como cada indivíduo faz suas escolhas e expõe suas visões. Há diferenças de um autor para outro, independentemente de sexo. Vejo livros que não hesito em taxar como "mulherzinha" e que me desagradam, mas nem toda mulher escreve dessa forma. E tenho consciência de que empregar a palavra "mulherzinha" dessa maneira pode passar a impressão de ser depreciativa, o que seria burrice pra uma mulher fazer, mas corro o risco. E tem literatura de homem que é intragável pelo mesmo motivo: não tem habilidade literária para ultrapassar com literatura a questão do sexo (alguns não conseguem ultrapassar a questão de "trepar", apenas, e fazem disso sua literatura; quando bem feito, maravilha. Mas é raro. Não?).

 

 

RL - Quais são os autores que fizeram a sua cabeça?

 

CG - É a pior pergunta do mundo, porque vou responder uma coisa diferente a cada vez que me perguntarem. Agora eu digo J. D. Salinger, Borges, Cortázar, Melville, Philip Roth, Isaac Bashevis Singer, Hunter S. Thompson, John Fante, Jane Austen, Alan Pauls, o portuga Gonçalo Tavares (cheguei a ajudar no tratamento de algumas edições de livros dele na Casa da Palavra); li Henry Miller e depois abandonei, porque brigava muito com ele; Graciliano Ramos, Lima Barreto, Machado, João do Rio, Fernando Sabino, Rubem Fonseca (que tive a oportunidade de conhecer pessoalmente e, polidamente, mandou-me %$#&%*shsh quando comentei que estava com certo cagaço de escrever o segundo livro; é um bom papo, divertido, com ele me sinto falando com alguém da minha idade que "por acaso" tem uma experiência fora do comum). Em certa época, quando morava em Copacabana, pirei no João Antonio.

 

Andrea Del Fuego, Clarão (Averbuck), Índigo, Simone Campos, Ismar Tirelli Netto, Bruna Beber, Alice Sant'Anna, Os Quatro Novos, Carol Bensimon, que acaba de lançar um livro de contos imperdível pela Não-Editora. A gente tem que se ler. Tem que se ler. O seu livro, Rodrigo, que aloprou a redação inteira do Portal Literal, é uma das melhores coisas que chegaram na mão da gente lá ano passado, fiquei de cara.

 

Tem também Marçal Aquino, Marcelino Freire, Chico Mattoso, João Paulo Cuenca, Daniel Galera, Daniel Pellizzari, nesses eu tô na cola, acompanhando. E o Mutarelli, que surpreende sempre.

 

Mais recentemente, tô com mania de uns americanos de novo, como Dave Eggers, e também leio as coletâneas de contos da Granta e da McSweeney's, o britânico Will Self. Sei lá, é uma lista que eu vou completando. Gosto de ler roteiros de filmes.

 

 

RL - A fragmentação é uma característica da prosa moderna?

 

CG - Marca de geração pós-1990? Ou "moderna" como "a partir de 20 no Brasil? Do que tratamos? Falo meio sério, meio brincando aí. Quando apareceram os primeiros livros do Joca Reiners Terron e do Cuenca, por exemplo, começou uma gritaria de que era tudo quebrado, cadê a linearidade, cadê o Grande Romance Brasileiro? O papo segue, punheta. Hoje, quando falam em "moderna", muitos se referem aos que publicamos dos anos 1990 pra cá, por incrível que pareça. A fragmentação é uma característica que aí está há décadas. Tenho impressão de que só alguns empoeirados, poucos, ainda se dispõem a malhar esse judas com o argumento puro de que "texto fragmentado é subliteratura". Mesmo os que não respiram fora do ambiente acadêmico, desde 1945 suspeitam de que algo acontece do lado de cá. Não que achem boa coisa. Mas aí não é problema nosso.

 

 

RL - O que deve ter um texto para que você o considere seu? Qual é sua marca como escritora?

 

CG - Estou no começo. Meus textos seguem um conselho de Buddy Glass: escrever o que você mesmo, autor, gostaria de ler.

 

 

RL - Quem é o escritor brasileiro?

 

CG - Alguém que escreve nas raspas de horas vagas de empregos; boa parte dos que conheço hoje não são mais assim, não precisam mais bater cartão numa empresa. Mas é a realidade predominante, creio. Graciliano Ramos mesmo chegou a escrever e argumentar que achava estranho que não se comentasse a questão do dinheiro na literatura. Taí, comentemos: literatura é o que o cara faz quando chega do emprego, moído, num intervalo no emprego, nos fins de semana.

 

 

RL - O que a internet mudou a escrita? Mudou alguma coisa?

 

CG - Na minha escrita, acho que nada. Mas tenho o ponto de vista de uma observadora mais voraz em relação a isso - e cuja opinião sai mais ajeitada, porque ela vê isso de fora -, que é a Heloisa Buarque. Ela diz que é ÓBVIO, gritante em nossos livros, as dezenas de tabs (janelas dentro de browsers) e a atividade frenética, simultânea, em múltiplas funções na web. Que isso fez alguma coisa na cabeça da gente e resulta numa maneira de contar as histórias que não estamos preparados ainda pra enxergar como algo muito diferente do que havia antes da internet.

 

 

RL - O e-book tem futuro?

 

CG - No Brasil a Ediouro já despertou para essa realidade, que os gringos já sacaram pouco antes: e-book e publicação sob demanda podem ser a solução que as editoras esperam para vender mais livros.

 

 

RL - O computador trouxe um mundo novo. É admirável esse mundo novo?

 

CG - Eu sou uma viciada. Minha opinião não conta.

 

 

RL - Há mais escritores que leitores? O que fazer para valorizar a leitura?

 

CG - Ler. Não é esse o prazer primordial de quem diz gostar de literatura? Da parte das editoras, investir em autores a longo prazo, ver até onde vão, incentivar uma carreira, um catálogo. É preciso apostar.

 

 

RL - Tem algum mote (epígrafe) que a acompanhe pela vida? Fale sobre ele.

 

CG - "Somos uns animais diferentes dos outros, provavelmente inferiores aos outros, duma sensibilidade excessiva, duma vaidade imensa que nos afasta dos que não são doentes como nós". Graciliano Ramos.

 

Read. Write. Run. Parece slogan da Nike pra nerds, mas é minha vida.

 

Viajar e anotar. Esse também.

 

 

RL - O escritor tem algum papel importante para a construção de um futuro? Qual o papel do escritor na sociedade?

 

CG - Idéias podem mudar tudo. Precisam circular. Escrevam, leiam, editem, trabalhem.

 

 

 

 

março, 2009
 
 
 
 
 
 

Cecilia Giannetti, carioca, é escritora. Lançou em 2007 o romance Lugares que não conheço, pessoas que nunca vi (Agir) e escreve Café fatal para o projeto Amores Expressos. É colunista da Folha de S.Paulo. Tem contos em antologias da Ediouro, Record, Casa da Palavra e La Nuova Frontiera (Itália). Pode ser lida aqui.

 
 

Rodrigo de Souza Leão (Rio de Janeiro, 1965), jornalista. É autor do livro de poemas Há flores na pele, e de Todos os cachorros são azuis (Rio de Janeiro: 7Letras, 2008) entre outros. Participou da antologia Na virada do século - poesia de invenção no Brasil (Landy, 2002). Co-editor da Zunái - Revista de Poesia & Debates. Edita o blogue Lowcura. Mais na Germina.